Entrevista

Inês Pedrosa, Escritora
«O ensino atual cria papagaios de repetição e cidadãos passivos»

Inês Pedrosa©Luís Carvalho.jpgInês Pedrosa arrasa o sistema de ensino defendendo a sua reestruturação a fundo a par com os programas de educação. A escritora e jornalista fala do «desaparecimento da política», do «tenebroso vício das "cunhas"» e afirma que seria um sinal de mudança importante ter uma mulher no Palácio de Belém, tal como ficciona no seu último romance, «Desamparo».

O seu mais recente romance, «Desamparo», é uma metáfora de um país com cicatrizes e sequelas dos anos da troika?

O desamparo descrito neste romance não se cinge aos anos da troika, nem a Portugal. Há nele histórias de emigrantes portugueses e imigrantes do Brasil em Portugal. Diria que se trata de uma parábola sobre o desenraizamento, a solidão, o abandono e a traição,    sentimentos dominantes numa época em o mundo se nos tornou ilusoriamente próximo e ao mesmo tempo atingiu um grau gigantesco de imprevisibilidade. Uma época em que as escolhas parecem, simultaneamente, infinitas e muito reduzidas. Uma época de deslocados e exilados, em que questões como a identidade, a segurança e a pertença estão em total reformulação. Os protagonistas deste livro são pessoas de várias idades, experiências e origens,  que perderam tudo ou quase tudo e tentam perceber quem são e de que modo podem ainda viver. As situações-limite convocam o pior e o melhor das pessoas, mas são sobretudo momentos de esclarecimento.

Li uma frase sua em que diz: «Não é de serem felizes que as pessoas têm medo: é de escolher - da responsabilidade da escolha, do compromisso que ela acarreta». Vivemos numa sociedade apavorada pelo risco e com medo de ter medo?

O pânico de arriscar e o medo do próprio medo são hoje muito visíveis, em particular em países antigos, acomodados e pouco experientes em processos democráticos, como é claramente o caso de Portugal. Mas essa frase refere-se a uma outra coisa, parcialmente decorrente desse hábito de passividade, que é o medo de assumir e defender as escolhas feitas, uma espécie de adolescência arreigada que muitas vezes nos impede, não só de apreciar o que somos, temos ou fazemos, mas até de sermos capazes de escolher. Quando o fascínio pela novidade, característico desta era de endeusamento da juventude, se associa ao culto da desresponsabilização, muito próprio de países com fortes tradições burocráticas e ditatoriais, como é Portugal, surge uma paralisia existencial composta de indecisões e abandonos sucessivos.

Diz que "liberdade" é a palavra que melhor a define. Numa sociedade cada vez mais controlada e vigiada, onde imperam as redes sociais, não pensa que a democracia, as liberdades e as garantias estão cada vez mais frágeis?

A fragilização das liberdades e garantias das pessoas, e portanto da democracia, advém tanto da excessiva e obscura vigilância - nunca sabemos quem nos espia, e ai de nós se tivermos um inimigo numa repartição judicial ou fiscal - , como da total falta de controlo das redes sociais. A difamação tornou-se quotidiana e as queixas de perseguições obsessivas e atentatórias do bom nome de alguém nas redes sociais, na grande maioria das vezes, não encontram provimento. A verdade é que as redes sociais têm servido mais como instrumentos de intimidação, alienação e contra-informação do que como mecanismos de ampliação da democracia. Penso que é urgente criar um enquadramento legislativo, a nível internacional, que resolva este problema.

Os políticos são normalmente apontados como os "maus da fita" pelo estado a que chegámos. Considera que os políticos são maus porque os portugueses não exigem melhor?

Ines Pedrosa (c) Alfredo Cunha.jpgOs políticos são também cidadãos, têm as qualidades e defeitos daqueles que os elegem. Penso que os eleitores se informam pouco sobre os políticos que elegem, e por isso se sentem tantas vezes tão enganados. Mas o problema de fundo é o do desaparecimento da política, esmagada pela ação incontrolável dos mercados e pelas finanças, que por sua vez vieram substituir a economia, que era uma ciência política. A política perdeu quase todo o poder que tinha - a gravíssima crise europeia demonstra-o claramente. A crise é, antes de mais, de ideias e de lideranças políticas.

Que culpas no cartório aponta às nossas elites políticas, académicas e intelectuais?

Teremos, de facto, elites? Tenho muitas dúvidas. As elites portuguesas formaram-se através dos títulos nobiliárquicos, do dinheiro, das famílias e dos favores,  não através da cultura e da educação. As figuras de referência intelectual foram e continuam a ser franco-atiradores, pregadores no deserto, muitas vezes exilados, por não terem encontrado condições de desenvolvimento no país. Precisaríamos, para começar, de reestruturar a fundo o sistema de ensino, e os programas de Educação, de modo a estimularmos o sentido crítico dos jovens. Desvaloriza-se o ensino das  Humanidades e das Artes (a quase inexistência de educação musical é vergonhosa), sobrevalorizam-se as ciências ditas exactas, não se criam espaços de debate na escola, retiram-se dos programas os clássicos incómodos, com o argumento desonesto e preguiçoso de que não atraem os mais novos, e carrega-se nos chavões linguísticos (a terrível TLEBS) e na capacidade de memorização. O ensino atual cria papagaios de repetição e cidadãos passivos, não cabeças activas e curiosas. Assim, nunca mais mudamos.

Os desígnios mobilizadores costumam unir os portugueses. O que é que considera que podia congregar os nossos compatriotas num desiderato comum?

Sou otimista, por natureza e por estratégia de sobrevivência, mas confesso que, à parte o futebol, não vejo nos portugueses essa capacidade de mobilização. Somos demasiado individualistas, cada um por si, cada qual que se desenrasque como puder - com as famílias e o tenebroso vício das "cunhas" como único traço de união. Habituámo-nos a ver o Estado como um pai providencial, mesmo que cruel, e não somos dados a associações. A desconfiança atávica que a generalidade dos portugueses tem em relação aos partidos - que são associações de cidadãos em torno de ideias, não esqueçamos - ou aos sindicatos é eloquente. As ditaduras deformam os cidadãos, e nós vivemos séculos e séculos de ditadura: achamos, ainda hoje, que nada podemos. Agora, a classe média empobreceu de tal forma que começou finalmente a mostrar alguns sinais de rebelião. Mas ainda muito ténues, e pontuais.

Presidiu à Casa Fernando Pessoa, um dos maiores vultos da língua e da cultura lusa. Sei que teve poucos apoios para fazer o seu trabalho e muitos dos recursos foram mobilizados por sua iniciativa. Não se aposta na cultura porque não dá votos ou, como agora se diz, porque não é uma área sexy?

Para mim, a cultura é a área mais sexy de todas, porque é aquela que transforma as pessoas e as torna capazes de pensar, criar, mudar o mundo. Alguns votos sempre dará, porque em épocas eleitorais os políticos tentam usar figuras da cultura nas suas campanhas. Ao longo dos seis anos em que trabalhei na Casa Fernando Pessoa, fui percebendo que a cultura é entendida pelos diversos poderes políticos e económicos como mera decoração e só interessa enquanto propaganda, ilusão de pensamento e instrumento ao serviço de lóbis determinados. Acresce que não temos, em Portugal, uma tradição do mecenato. Bati a muitíssimas portas para procurar apoios para ações de cultura e educação, e poucas se abriram. Mas essas poucas entidades foram preciosas, e permitiram três coisas que julgo fundamentais: levar a poesia e as artes às escolas mais desprovidas de meios, estreitar o conhecimento mútuo entre as culturas portuguesa e brasileira, preservar o tesouro nacional que é a Biblioteca Particular de Fernando Pessoa e oferecê-lo aos estudiosos de todo o mundo, através da internet.

A cultura virou uma indústria de entretenimento, completamente subvertida dos valores essenciais. Na cultura, no ensino e também na comunicação social o entretenimento esmaga a análise ponderada dos problemas de raiz. É esta atração pela superficialidade e a espuma dos dias que narcotiza a sociedade?

Exactamente. A generalidade dos responsáveis televisivos repete que dá ao povo o que o povo quer, e eu pergunto: quem disse que as pessoas só querem o chamado entretenimento básico? Já lhes perguntaram? Já experimentaram dar-lhes outras coisas? Tenho andado pelo país e encontro bibliotecas e cafés cheios para tertúlias literárias. Na Casa Fernando Pessoa verifiquei que havia muito público para recitais de poesia, música clássica, conferências e debates em torno de temas literários e maratonas de leitura. E vi crianças, mesmo as de três a cinco anos, porque começámos a trabalhar também com os mais pequeninos, vibrarem com os poemas e os amigos imaginários de Pessoa.

Os próximos oito meses serão frenéticos. Avizinham-se as legislativas e só depois as presidenciais. Como está a ver o debate e a "bolsa de apostas" sobre as eleições presidenciais? Admite que na sociedade em  que habitamos a visibilidade mediática ofusca a qualidade ética e os méritos intelectuais?

I Pedrosa(c) Alfredo Cunha.jpgA visibilidade mediática pode decorrer do mérito e das qualidades pessoais - acontece no desporto, por exemplo - mas não há uma relação automática entre as duas coisas, até porque há muitas atividades e saberes que não são mediáticos, ou assumidos como tal. Na política, os interesses e as estratégias sobrepõem-se demasiadas vezes ao trabalho efetivo e à qualidade das pessoas.
Entristece-me, para começar, que na tal "bolsa de apostas" não se incluam mulheres. Não partilho o discurso da "diferença cultural do feminino", porque me parece estúpido atribuir a um género o encargo dos valores: as mulheres devem ter lugar na política porque devem ter os mesmos direitos, oportunidades e consideração que os homens, e não por serem mais boazinhas ou honestas do que eles. Há uma série de mulheres, nos vários partidos políticos, que têm provas dadas e percursos que as tornariam excelentes candidatas à Presidência, mas não se fala delas. Infelizmente, aliás, quando falo disto, verifico que são as próprias mulheres a descartarem esta hipótese, encontrando nas possíveis candidatas inúmeros defeitos que parecem não encontrar nos candidatos homens. Simbolicamente, uma mulher Presidente seria um sinal de mudança importante. Por isso, no fim do meu livro, «Desamparo», encontramos uma mulher na Presidência da República, em Portugal.

Disse numa entrevista recente no semanário «Sol», onde é cronista, que a sua filha tem 17 anos e pretende estudar Cinema. Como vê a questão da exiguidade das saídas profissionais, do flagelo do desemprego jovem e da hipótese da emigração? A geração da sua filha é o que se pode chamar uma geração traída e de sonhos adiados?

A geração da minha filha tem sido chicoteada pelos discursos oficiais nos últimos anos. É uma geração que cresce a ouvir dizer que jamais terá emprego, que não poderá contar com os mínimos de segurança social ou de saúde, que deve desistir dos seus sonhos. Conheço miúdos aos quais os pais obrigam a aprender mandarim, achando que assim poderão ter emprego. Conheço outros aos quais os pais proíbem a escolha de áreas de estudo artístico.  O que se tem feito a esta geração devia ser integrado na lista dos maus-tratos psicológicos, e punido como tal. A culpa principal é deste Governo, que tem reiterado este discurso até ao nível do desespero, mas os pais e educadores também são coniventes. Repito à minha filha que o mundo vive um tempo de mudança extraordinária, a todos os níveis, e que ninguém pode garantir o que acontecerá daqui a dez anos, de modo que o que ela deve fazer é, acima de tudo, lutar pelos seus sonhos. Ela vive com esperança e alegria, elementos tão essenciais como as vitaminas e as proteínas, mas infelizmente não consigo fazer com que goste de Portugal: os contínuos discursos sobre a crise, os sacrifícios e a pobreza portuguesa levam-na a desejar sair daqui para fora o mais depressa possível. E, como ela, milhares de outros jovens.

Escreveu numa das suas recentes crónicas que «O trabalho continuado, o investimento no país, o mérito e o currículo de obra feita não contam em Portugal». O que conta então?

As cunhas, os compadrios, a organizaçãozinha dos pequenos, médios e grandes interesses. Há exceções, mas ainda poucas. Portugal trabalha mais horas do que a generalidade dos países europeus, e está no fim da lista da produtividade. Isto resulta da má gestão, da incompetência na organização do trabalho e dos objetivos.

Esteve no início do jornal «Independente», com Paulo Portas e Miguel Esteves Cardoso. No Portugal de hoje um projeto dessa natureza fazia sentido?

Tive a felicidade de ser convidada para integrar a equipa inicial do «Independente», mas não fui uma das fundadoras: esse mérito cabe integralmente ao Miguel Esteves Cardoso e ao Paulo Portas, que foram os autores do conceito - inovador, arrojado, criativo e inteligente - do jornal. No Portugal de hoje, estas qualidades continuam a fazer muita falta, e o jornalismo está numa queda tão acentuada que faz falta um projeto destes, sim. Mas não vejo quem queira investir nele…

Nuno Dias da Silva
Alfredo Cunha, Luís Carvalho
 
 
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