Opinião

“Pedagogia (a)crítica no Superior” (X)
Bibliotecas desabitadas

FotoLSouta2015peq.jpg«Uma época, as coordenadas de uma vida, uma biblioteca traça as fronteiras em que nos movemos»

(Nítido Nulo, Vergílio Ferreira, 1971: 52) 

- Professor, não há download desse livro. Será que a biblioteca da nossa escola o tem? - pergunta ingénua a do estudante, na hora de escolher uma monografia, de entre muitas que constam do programa da uc, e que lhe abrirá pistas (cuida o Prof.S.) para a realização do trabalho de campo que se avizinha.

A temida A3ES, na faina avaliativa dos cursos de licenciatura e mestrado, exige que a ficha da unidade curricular apresente, em 3 mil caracteres (sempre a métrica!), uma bibliografia actualizada. Todavia, não questiona qual a percentagem dessas obras está disponível nas várias bibliotecas do Instituto. Compaginar o esforço de actualização científica com as crónicas (e reduzidas) verbas para a aquisição de livros e revistas, faz com que muitas das obras indicadas nos programas não se encontrem nas estantes da biblioteca (perdão, até este espaço foi espoliado da sua designação identitária; oficialmente, chamam-lhe SDI).

O Prof.S. estava cada vez mais convencido que as listas bibliográficas eram 'para inglês ver' (i.e, A3ES) e a biblioteca, na época da geração ponto com, era um 'luxo' institucional. «Cada dia se publica mais. Cada dia se lê menos.» escreveu António Nóvoa, em 2014, num interessante (mas nada consensual) artigo - «Para que serve a investigação em Educação?». Desvalorizada por estudantes pouco dados a leituras e que, por isso, não lhe sentem grande utilidade. O seu tempo é gasto, quase exclusivamente, a navegarem na net. O deleite da leitura e da consulta bibliográfica fica assim reservado a (alguns) docentes. Daí, considerar que o dinheiro do orçamento estava, de facto, a ser mal empregue. Melhor seria aplicá-lo noutras áreas… informática, de certeza, ou, porque não, no património (o edifício precisava de obras urgentes). A única greve a que assistiu na Escola xpto, promovida pelos estudantes, teve a ver com a exigência de mais computadores. Nunca os viu reivindicar por mais livros ou mais revistas para a biblioteca (perdão, CRECM, estes acrónimos são mesmo difíceis de memorizar).

Numa tentativa (vã) de aumentar a consulta de revistas, o Prof.S., enquanto coordenador do departamento, conseguiu que todos os seus colegas aceitassem incluir nos programas, pelo menos, duas revistas da área científica respectiva (e que fossem assinadas pela escola). Também nas orientações para os trabalhos de avaliação indicava, de forma explícita, que na secção de 'referências' deviam indicar as «fontes bibliográficas, documentais ou outras (e nunca apenas webgrafia)». Mas como eles só andam na net, o que lhe aparece no final do semestre, em regra, são trabalhos com uma listagem de referências que, com rigor, só poderia ser encimada por um título - webgrafia.

Uma colega sua dizia, com graça, que estavamos a assistir a uma gradual invasão de uma espécie de fast-food, no campo da leitura: os alunos querem tudo mastigado e digerido… e isso é o que a Internet lhes possibilita. Ir à biblioteca consultar dicionários, desfolhar umas revistas ou requisitar um livro… dá muito trabalho. De facto, sempre que o Prof.S. passava pelo SDI (ou será Centro de Documentação?) verificava que aquele lugar estava praticamente vazio de estudantes; uns poucos, a fazerem trabalhos de grupo mas pesquisas bibliográficas isso não. A maioria nem lá vai para levantar o jornal Público que diariamente lhes é oferecido (uma acção promocional do 'dar agora para receber no futuro'… da espanholização bancária). Dão-se mal os jovens com aquele espaço de silêncio onde não há movimento, música de fundo, ecrãs tácteis, jogos…

Afinal, o sonho (não confessado) do Prof.S. era ter nas suas aulas gente como aquele 'aluno exemplar' que Maria Carlos Radich descreveu nas Crónicas Docentes (Edições Afrontamento, 1983: 61-7): quando pediu ao professor mais bibliografia, este perguntou-lhe, admirado: «Conseguiu localizar as referências todas?» A resposta foi pronta: «Consegui, sim senhor. Se não estão na primeira biblioteca [ou será Mediateca ?] a que vou, corro as outras. Nalguma acabam por estar.» E no fim, entregava, numa sétima versão, um trabalho «sublime» onde nem faltavam «as nuances» e «uma poeira de loucura».

Luís Souta
Este texto está redigido segundo a “antiga” e identitária ortografia
luis.souta@ese.ips.pt
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
Unesco.jpg LogoIPCB.png

logo_ipl.jpg

IPG_B.jpg logo_ipportalegre.jpg logo_ubi_vprincipal.jpg evora-final.jpg ipseutubal IPC-PRETO