“Pedagogia (a)crítica no Superior” (X)
Bibliotecas desabitadas
«Uma
época, as coordenadas de uma vida, uma biblioteca traça as
fronteiras em que nos movemos»
(Nítido Nulo, Vergílio
Ferreira, 1971: 52)
- Professor, não há
download desse livro. Será que a biblioteca da nossa
escola o tem? - pergunta ingénua a do estudante, na hora de
escolher uma monografia, de entre muitas que constam do programa da
uc, e que lhe abrirá pistas (cuida o Prof.S.) para a realização do
trabalho de campo que se avizinha.
A temida A3ES, na faina avaliativa
dos cursos de licenciatura e mestrado, exige que a ficha da unidade
curricular apresente, em 3 mil caracteres (sempre a métrica!), uma
bibliografia actualizada. Todavia, não questiona qual a percentagem
dessas obras está disponível nas várias bibliotecas do Instituto.
Compaginar o esforço de actualização científica com as crónicas (e
reduzidas) verbas para a aquisição de livros e revistas, faz com
que muitas das obras indicadas nos programas não se encontrem nas
estantes da biblioteca (perdão, até este espaço foi espoliado da
sua designação identitária; oficialmente, chamam-lhe SDI).
O Prof.S. estava cada vez mais
convencido que as listas bibliográficas eram 'para inglês ver'
(i.e, A3ES) e a biblioteca, na época da geração ponto com,
era um 'luxo' institucional. «Cada dia se publica mais. Cada dia se
lê menos.» escreveu António Nóvoa, em 2014, num interessante (mas
nada consensual) artigo - «Para que serve a investigação em
Educação?». Desvalorizada por estudantes pouco dados a leituras e
que, por isso, não lhe sentem grande utilidade. O seu tempo é
gasto, quase exclusivamente, a navegarem na net. O deleite da
leitura e da consulta bibliográfica fica assim reservado a (alguns)
docentes. Daí, considerar que o dinheiro do orçamento estava, de
facto, a ser mal empregue. Melhor seria aplicá-lo noutras áreas…
informática, de certeza, ou, porque não, no património (o edifício
precisava de obras urgentes). A única greve a que assistiu na
Escola xpto, promovida pelos estudantes, teve a ver com a exigência
de mais computadores. Nunca os viu reivindicar por mais livros ou
mais revistas para a biblioteca (perdão, CRECM, estes acrónimos são
mesmo difíceis de memorizar).
Numa tentativa (vã) de aumentar a
consulta de revistas, o Prof.S., enquanto coordenador do
departamento, conseguiu que todos os seus colegas aceitassem
incluir nos programas, pelo menos, duas revistas da área científica
respectiva (e que fossem assinadas pela escola). Também nas
orientações para os trabalhos de avaliação indicava, de forma
explícita, que na secção de 'referências' deviam indicar as «fontes
bibliográficas, documentais ou outras (e nunca apenas webgrafia)».
Mas como eles só andam na net, o que lhe aparece no final do
semestre, em regra, são trabalhos com uma listagem de referências
que, com rigor, só poderia ser encimada por um título -
webgrafia.
Uma colega sua dizia, com graça,
que estavamos a assistir a uma gradual invasão de uma espécie de
fast-food, no campo da leitura: os alunos querem tudo
mastigado e digerido… e isso é o que a Internet lhes
possibilita. Ir à biblioteca consultar dicionários, desfolhar umas
revistas ou requisitar um livro… dá muito trabalho. De facto,
sempre que o Prof.S. passava pelo SDI (ou será Centro de
Documentação?) verificava que aquele lugar estava praticamente
vazio de estudantes; uns poucos, a fazerem trabalhos de grupo mas
pesquisas bibliográficas isso não. A maioria nem lá vai para
levantar o jornal Público que diariamente lhes é oferecido
(uma acção promocional do 'dar agora para receber no futuro'… da
espanholização bancária). Dão-se mal os jovens com aquele espaço de
silêncio onde não há movimento, música de fundo, ecrãs tácteis,
jogos…
Afinal, o sonho (não confessado) do
Prof.S. era ter nas suas aulas gente como aquele 'aluno exemplar'
que Maria Carlos Radich descreveu nas Crónicas Docentes (Edições
Afrontamento, 1983: 61-7): quando pediu ao professor mais
bibliografia, este perguntou-lhe, admirado: «Conseguiu localizar as
referências todas?» A resposta foi pronta: «Consegui, sim senhor.
Se não estão na primeira biblioteca [ou será Mediateca ?] a que
vou, corro as outras. Nalguma acabam por estar.» E no fim,
entregava, numa sétima versão, um trabalho «sublime» onde nem
faltavam «as nuances» e «uma poeira de loucura».