Propostas

Bocas do Galinheiro
O Capra Touch

FYI---ithappenedonenightpho.jpgUm dos filmes de que mais gosto é "Uma Noite Aconteceu", de Frank Capra, vencedor em 1934 dos cinco maiores prémios da Academia: melhor filme, melhor realizador, melhor actor, Clark Gable, melhor actriz, Claudette Colbert, e melhor argumento (adaptação) para Robert Riskin. A história é simples: uma rica herdeira, Ellie Andrews, interpretada por Colbert, resolve fugir porque o pai é contra o seu casamento com um aviador, galã, playboy e caçador de fortunas, King Westley, no filme Jameson Thomas. Na fuga cruza-se com Peter Warner, Gable, um jornalista que acabara de ser despedido e que quando descobre a verdadeira identidade da jovem planeia escrever uma reportagem sobre ela. Mas, ironia do destino, ou não, acabam por se apaixonar. Mesmo assim Peter vende a prosa para se poder casar com Ellie que, pensando-se abandonada, telefona ao pai e volta para casa e para Jameson Thomas. À reviravolta final já lá vamos.

Tudo parecia banal e linear. Só que por trás está o Capra "Touch", com toda a sua riqueza de acontecimentos e peripécias que fazem deste filme um arquétipo da comédia, aqui e ali a lembrar os filmes de aventuras e o policial: movimento incessante, sensação de perigo, perseguições, recurso a estratagemas e falsas identidades e a grande importância e relevo dado aos exteriores e atmosferas noturnas que reforçam a ação do par em fuga. Um par que nos poderia ser antipático: um jornalista que se move por razões mercenárias na ajuda à herdeira, esta aparentemente fútil e snob, tornam-se de repente em duas personagens simpáticas e por quem começamos a torcer. Para isso contribui decerto a riqueza da intriga e a espontaneidade dos actores. Com efeito tanto Clark Gable como Claudette Colbert estão soberbos, ao que não será alheia uma inteligente direção de atores por parte de Capra.

São célebres as cenas de Gable a ensinar Colbert a fazer sopas com um donut, para não falar da "muralha de Jericó", uma manta a separar as camas do quarto em que os dois dormiam fazendo-se passar por marido e mulher, cena tirada directamente da novela de Samuel Hopkins Adama, "Night Bus", de onde o argumento foi adaptado, ou da lição dele sobre como pedir boleia. Aqui já era irreversível a nossa afeição por Ellie. Capra já a despira de todo o seu snobismo, fazendo-a vestir os pijamas de Peter, já a pusera numa bicha para tomar duche e já a acordara "irritantemente alegre" como sublinhou Gable, já mais inseguro, em contraste com a arrogância dos primeiros planos. Ou seja, com a sua habitual habilidade, Capra já tratara de os tornar cidadãos comuns, como todo o bom americano que confiava no New Deal. Assim não admira que Claudette, apesar da posição incómoda em que se encontrava, escarranchada em cima de uma vedação, não levasse muito a sério esta nova lição de Gable e afirmasse que fazia melhor. E fez! Puxando, suave e provocatoriamente a saia para cima, obriga um incauto automobilista a uma travagem às quatro rodas, de que mais tarde se viria a arrepender. Estava dado o mote: Ellie tomava o controlo da situação. Agora era Peter que andava a reboque. A mordacidade de Capra é bem patente nesta cena, assim como o será na do casamento frustrado da herdeira com o caça fortunas. Sublime, Walter Connoly, enquanto acompanha a filha ao altar vai-lhe contando a verdadeira versão dos factos, preparando o happy end que todos queremos e ele mais que ninguém: a nobreza de carácter de Peter surpreendera-o. Há aqui um toque de melodrama, como já perpassara na cena do miúdo em lágrimas face à mãe desmaiada por inanição, mas sobretudo de romantismo, pela descoberta e consumação do amor entre os dois protagonistas, eficazmente representado no plano final, quando numa cabana turística o toque do trompete assinala a queda da "muralha de Jericó" e o fim do filme, apagadas que foram as luzes do quarto. Enfim, toda a eficácia e talento de Capra num filme que marca a época de ouro da comédia americana.

Nascido em 1897 em Itália, Frank R. Capra começou a sua carreira no cinema em 1922, altura em que era um engenheiro químico desempregado, com a direcção da produção independente da curta-metragem "Fultah Fischer's Boarding House". Nos anos seguintes fez de tudo um pouco: redator de legendas, montador, argumentista e inventor de gags, de que seriam célebres os que criou para Hal Roach e Mack Sennett, até que em 1926 começou a realizar filmes para Harry Langdon, um popular cómico do mudo, como "Atleta à Força" e "Calças Compridas", até ser despedido em 1927 quando Langdon decidiu ser ele a realizar. Capra fica sem trabalho mas filma ainda para a First National "For The Love of Mike", primeiro encontro com Claudette Colbert que se estreava neste filme.

Em 1928 é contratado pela Columbia, um dos três pequenos estúdios a par da United Artists e Universal, os cinco grandes eram a MGM, Paramount, Fox, Warner Brothers e RKO, onde fica até 1941 e onde realizará o melhor da sua obra. Dos 25 filmes para a futura major, nove fá-los nos primeiros doze meses de casa. É obra! Na Columbia torna-se conhecido como artífice de confiança de produções eficientes e rentáveis e de estilo indiferenciado, desde dramas de acção militar, como "Submarine", "Flight" e "Dirigible", histórico de jornais, como "The Power of Press" e melodramas de que se destacam "Ladies of Leisure" e "The Miracle Woman", com Barbara Stanwick. Mas seria a comédia "Platinum Blonde", de 1931 que marcaria a viragem na carreira do jovem realizador. Aí começou também a profícua associação com o argumentista Robert Riskin que se notabilizaria numa série de comédias de sucesso e como instrumentos e veículos do espírito do New Deal de Roosevelt, nas quais criariam o que ficou conhecido como a "Capriskin Formula": o idealista individual contra a instituição corrupta. A primeira produção da dupla, "American Madness", de 1932, introduz a assinatura da equipa no tema, e o herói idealista, um dedicado banqueiro, Walter Huston, pai de John, em luta contra homens de negócios sem escrúpulos.

O reencontro com Riskin acontece exactamente com este "Uma Noite Aconteceu", filme e realizadores como Capra que nos fazem gostar de cinema.

Até à próxima e bons filmes!

Luís Dinis da Rosa
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
Unesco.jpg LogoIPCB.png

logo_ipl.jpg

IPG_B.jpg logo_ipportalegre.jpg logo_ubi_vprincipal.jpg evora-final.jpg ipseutubal IPC-PRETO