Bocas do galinheiro
A Janela Indiscreta
Numa altura de isolamento
e confinamento, que parece estar para durar, várias iniciativas
concorrem para que o cinema nos acompanhe nestes tempos
conturbados. Uma delas, e que aconselho, é a iniciativa "40 dias 40
filmes - Cinema em Tempos Cólera", a que se associou o Jornal do
Fundão, uma escolha de cinéfilos e críticos, pelo que a qualidade é
garantida, a que podemos aceder através da página do semanário.
Estou a acompanhar e vou continuar. Porém, ainda não constando da
lista dos quarenta, nem sei se vai constar, aconselho vivamente um
filme que, à semelhança da extensa filmografia do seu autor, é um
marco na história do cinema, uma obra-prima, tal como o são muitos
dos filmes do mestre Alfred Hitchcock.
Com efeito, se há filmes que se
adequam a este tempo, "A Janela Indiscreta" (Rear Window, 1954) é
certamente um deles. O argumento, baseado num conto de Cornell
Woolrich (que sob o pseudónimo William Irish é autor de policiais,
podemos encontrar uma das suas novelas, "A Mulher Fantasma", na
velhinha Colecção Vampiro, agora renovada), que nos leva a
acompanhar o dia a dia entediante do repórter fotográfico
Jefferies, "Jeff" (James Stewart), preso a uma cadeira de rodas com
uma perna partida, engessada, que se entretém a observar o
"espetáculo" que vê através da "rear window", a janela das
traseiras, ou seja, os vizinhos do prédio em frente. Um a um vão
desfilando aos olhos de Jeff, aos nossos olhos, da Miss "Lonely
Heart", à Miss Torso, exibicionista q.b., o jovem casal de recém
casados que ocupam o tempo como queiramos imaginar por detrás das
persianas quase sempre fechadas, o compositor maldito e as suas
tentativas de suicídio, o casal sem filhos que se dedica ao
cãozinho e o outro casal de vizinhos, os Thorwald (Raymond Burr e
Irene Winston), cuja mulher desaparece, o que leva o nosso
fotógrafo a suspeitar de que algo não está bem e a concluir que o
homem assassinou a mulher.
Um filme que nas palavras de
Hitchcock, nas suas conversas com Truffaut, é puramente
cinematográfico: "há o homem imóvel a olhar lá para fora. É o
primeiro bocado do filme. O segundo bocado revela o que ele vê e o
terceiro mostra a sua reacção. Isto representa a mais pura
expressão da ideia cinematográfica que conhecemos", para mais
adiante concluir, referindo-se a Jeff, com o que todos sabemos,
"era um voyeur…, sim o homem era um voyeur, mas não seremos todos
voyeurs? Garanto-lhe que nove em cada dez pessoas, se virem do lado
de lá do pátio uma mulher a despir-se antes de se deitar ou
simplesmente um homem a arrumar o quarto, não conseguem evitar
olhar"(in, "Hitchcok - diálogo com Truffaut", Publicações Dom
Quixote, Lisboa, 1987). E, é a partir desta sua conclusão que
Hitchcock nos põe todos a cuscar aquele prédio e a acompanhar James
Stewart na "investigação" do crime, com Lisa (Grace Kelly) a amiga
colorida de Jeff, que apesar de ele não estar muito entusiasmado
com a ideia, quer casar com ele, e Stella (Thelma Ritter), a
enfermeira/massagista, a quem conta as suas suspeitas, bem como ao
seu amigo e detective Tom Doyle (Wendell Corey). Depois de Lisa
"investigar o apartamento do suspeito em busca de provas do crime
que acabaremos todos por descobrir, sem o tal momento de suspense
hitchcokiano, que culmina com a tentativa de Raymond Burr
assassinar James Stewart, mas que só consegue mandá-lo pela janela,
o que leva a que parta agora a outra perna, mais uma vez a ironia
do mestre vem ao de cima.
Nada melhor para quem está
confinado do que um filme sobre um…confinado. Não pelas mesmas
razões, mas confinados.
Nascido a 13 de Agosto de 1899 e
falecido a 29 de Abril de 1980 (passam agora 40 anos do
falecimento, além desta puramente cinéfila, outra boa razão para o
recordarmos), Hitchcock cedo se interessou pelo cinema, até que em
1920 entrou para um estúdio como desenhador de legendas,
fundamentais nas fitas mudas. Em 1923 já era argumentista. Passado
breve trecho subiu a assistente de realização. No cinema fazia de
tudo. Disso se apercebeu o director do estúdio, Michael Balcon, que
lhe entrega a realização de "The Pleasure Garden". Porém o seu
primeiro grande filme é "The Lodger". E, é nele que vamos encontrar
o embrião das temáticas que marcarão a sua filmografia: suspense,
falsos culpados, louras sensuais e assassinatos. O resto sabe-se
como foi.
Filmes como "Difamação", no dizer
de Truffaut "a quintessência de Hitchcock", "Vértigo", "Chamada
Para a Morte", este "A Janela Indiscreta", "Marnie" ou "Intriga
Internacional", são marcos indeléveis na História do Cinema. Lá
estão as "suas" louras, Grace Kelly, a quem o Rainier deu outro
trono, Kim Novak, Tippi Hedren, Eva Marie-Saint, todas e cada uma
delas encarnação do mal, da culpa, do desejo, da sexualidade, sem
sexo, que perpassa nos seus filmes, ora com subtileza, há quem diga
com puritanismo, fruto da sua educação cristã, onde o Bem e o Mal
lhe ficaram bem marcados, ora com um fino sentido de humor, very
british, ora com uma grande dose de ironia, sempre presente nos
seus filmes.
Presente, está sempre ele.
Ficaram famosas as aparições de Hitchcock nos seus filmes. Os seus
cameos acabaram por ser uma das suas imagens de marca e outro dos
atractivos quando se veem os seus filmes. Neste podemos vê-lo a dar
corda a um relógio de sala.
Apesar da sua popularidade,
Hitchcock, que fez na América uma grande parte dos seus filmes,
nunca recebeu um Oscar para o Melhor Realizador. "Rebecca", o
primeiro que fez em terras do Tio Sam, foi o melhor filme de 1940.
Mas, o Óscar da realização foi para John Ford com "As Vinhas da
Ira". O reconhecimento para Sir Alfred Hitchcock por parte da
Academia de Hollywood veio em 1967 quando lhe outorgou o prémio
Irving Talberg. Na cerimónia de entrega do prémio o seu discurso
limitou-se a um esclarecer "Obrigado". Mas também é verdade que
Hitchcock nunca precisou de estatuetas para ser o realizador mais
popular do mundo.
Até à próxima e bons
filmes!
Luís Dinis da Rosa
Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico
IMDB