Memórias Ficcionadas
Tresler
«Que eu não sei bem pelo que
espero.
Se aprender o que não sei,
se esquecer o que aprendi»
("Chuva na areia" in Moinho Perpétuo, António Gedeão)
Adoravam o livro de leitura. As
ilustrações coloridas prendiam-nos e sobre elas teciam comentários
sem fim. Os textos, liam-nos por obrigação, sem entoação ou ritmo,
pouco entendendo aquele arrazoado: «com o Estado Novo abriu-se para
Portugal uma época de prosperidade e de grandeza, comparável às
mais brilhantes de toda a sua história» (p. 161 do Livro de Leitura
da 3ª Classe).
Residiam numa terra pequena, às
portas de Lisboa, pejada de indústria. Mas os textos nada diziam do
mundo operário. Ao longo do livro, os títulos eram reveladores da
opção ruralista - "As aldeias", "Serões da aldeia", "A vida no
campo", "A casa do lavrador", "As mondas", "Os ceifeiros", "As
vindimas", "Os rebanhos"; tudo remetia para as origens beirãs de
Arcílio, onde continuava a ir de férias, a casa de seus tios,
agricultores. Todavia, nem uma cidade, nem uma fábrica aparecia
naquelas 213 páginas! Os textos eram lidos de fio a pavio, excepto
aqueles como "Na aula de trabalhos femininos" ou "A Joaninha"
(«pobrezinha, mas muito lavada»), em que apareciam meninas e
lavores; esses, o professor Silva Lobo saltava, pois entendia, e
bem, que tais conteúdos não tinham muito sentido naquela turma de
quarenta galfarros. O seu ateísmo levava-o também a esquecer as
últimas 28 páginas, dedicadas à "Doutrina Cristã". Arcílio, no
entanto, lá pelo 3
º período, andou a vasculhá-las;
assemelhavam-se às lições do catecismo e às prédicas do Padre
Mariano: «Hei-de ter sempre na lembrança que, a partir dos sete
anos, todos os cristãos são obrigados a ouvir Missa inteira aos
Domingos e Festas de Guarda» (assim terminava o livro da
3ª). Tinha que mostrar aquela
passagem ao seu irmão que, aos domingos, ficava até tarde no
ripanço e só se esforçava por ir ao «santo sacrifício da saída da
missa». Para não ter de ouvir o raspanço do pai, mas ia lá,
principalmente, para cocar as meninas do coro nos seus leves
vestidos de ver-a-deus. Postava-se, mais o seu grupo de amigos, na
porta lateral da igreja. Naquela saída estreita, elas tinham que
passar-lhes rente e não havia forma de não os saudar. Os moinantes
achavam, com isso, que já tinham "ganho o dia". «Não está certo,
para quem já tem 12 anos e anda num colégio de frades…» reflectia
Arcílio, mal sabendo que, daí a uns anos, estava a proceder de
igual modo.
Entretanto, Giga, seu colega de
carteira, ao ler aquela mesma passagem do livro de leitura,
virou-se para trás e começou atazanar o filho do cabo da GNR:
- Oh Nazário, que «Festas de
Guarda» são estas? Metem cassetete, mauser, algemas e forças em
parada?
- Parvalhão, és muito ignorante.
Pede "explicações" ao Padre Mariano.
- Não desconverses. Esse, se me
apanha, ainda me obriga a ir à missa no domingo. E este
fim-de-semana estou ocupado na columbófila. Há corrida de pombos;
são lançados de Mérida.
Como eles invejavam o Giga!
Naquelas corridas loucas, rua abaixo, para colocar as anilhas dos
pombos-correio no relógio, colocado sobre um banco, em frente à
loja nova, uma "sucursal" da Casa da Beira «mercearias finas,
frutas e cereaes».
- Olha Giga, fica-te com esta:
«Domingo Lázaro apanhei um pássaro. Domingo de Ramos o depenei.
Domingo de Páscoa o almocei. E guardei uma costela para domingo de
Pascoela» - "disparou" o despeitado Nazário - Toma e
embrulha!