Entrevista

José Gomes Ferreira, jornalista
«Os cursos superiores têm de ser orientados para a economia»

JGFerreira1 copy.jpgDepois de uma longa apresentação do seu livro, num centro comercial de Lisboa, e uma não menos prolongada sessão de autógrafos, José Gomes Ferreira falou em exclusivo ao «Ensino Magazine».

Quem escreve este livro, «O meu programa de Governo», é o José Gomes Ferreira cidadão ou jornalista?

Durante a apresentação do livro também me chamaram porta-voz do cidadão (risos). Mas quero dizer que são os outros a apelidaram-me como tal, não tenho qualquer pretensão. Independentemente disso, eu apenas quero dar conta às pessoas daquilo que são problemas e má organização social, económica e política, propondo soluções para desbloquear esses constrangimentos, criando condições para uma vida melhor.

Durante uma hora deu autógrafos e conversou com dezenas de pessoas. Qual é o segredo para a admiração que nutrem por si?

Acredito que é o melhor prémio que eu posso ter. Todos nós profissionais, de qualquer área de atividade, a maior gratificação que podemos ter acontece quando temos o reconhecimento público. É ótimo estar a trocar ideias e interagir com pessoas sobre assuntos que dizem respeito à vida de todos nós. Vale muito mais do que muitos prémios oficiais e até monetários.

A sua popularidade já lhe valeu um clube de fãs no Facebook que tem 50 mil aderentes, para além do livro que lidera os tops em várias livrarias. Muitos reclamam que este seu «Programa de Governo» será, mais tarde ou mais cedo, traduzido numa candidatura política. Assume que podemos estar na presença de um movimento cívico informal em torno das suas ideias?

Sim, pode classificá-lo como tal. É informal, não é organizado, não tem pretensões de ser partidário ou converter-se em movimento político, etc. É apenas um grupo de cidadãos que apreciam a mensagem simples que um cidadão, que também é jornalista, veicula, tendo como objetivo resolver os problemas das pessoas. Quanto à página existente no Facebook, sei que foi uma criação espontânea e que não tem parado de crescer. Se é útil e se for possível melhorar as minhas ideias fruto do debate e do intercâmbio de pontos de vista, ótimo. Só posso agradecer. Faço uma declaração de interesses: eu não fomento, nem estou nas redes sociais, simplesmente porque não conseguiria responder a todas as perguntas e solicitações. Por isso prefiro não estar, mas respeito e valorizo as boas iniciativas.

Durante a apresentação do livro falou muitas vezes em «revolta». Está, subliminarmente, a apelar a uma reação mais veemente nas ruas?

JGFerreira2 copy.jpgO termo «revolta» que empreguei e emprego é no sentido pacífico e de tomada de consciência. Nunca no sentido de apelar a manifestações que descambem em atos violentos. Nada disso. Não leva a nada. Eu costumo usar esta expressão: «Eu devo indignar-me quando vejo que as coisas estão mal e agir, propondo ideias». Portanto, o meu direito à indignação não o devo alienar. E é esse o reflexo do que eu penso e que se traduz sob a forma de comentário na televisão, na intervenção pública, em conferências e na escrita no livro que agora lancei.

Entrando propriamente nas questões concretas que mexem com o nosso bolso. Tem-se tentado «vender» a ideia de que todos os portugueses, sem exceção, contribuíram para o caos financeiro a que chegámos. Esta perspetiva é a que está mais próxima da realidade?

Ainda bem que me faz essa pergunta, porque é muito pertinente. Mas, se me permite, deixe-me reformular a sua pergunta: «Vivemos acima das nossas possibilidades?». Eu respondo-lhe, vivemos. E você vai ripostar dizendo que eu estou como os políticos que são hipócritas e querem colocar tudo no mesmo saco, para dizer que somos todos culpados. Não, não é isso. O facto incontornável é este: nós vivemos acima das nossas possibilidades. Nós quem? Nós, 10 milhões de pessoas, cidadãos portugueses, porque nos endividámos coletivamente. Mas tivemos todos o mesmo grau de culpa? Não. Pelo contrário. A nossa culpa de cidadãos é incomparavelmente menor.

Então, a quem aponta o dedo?

A maior culpa dos cidadãos é terem deixado as coisas aconteceram de uma forma insustentável. É a culpa da indiferença. Os outros, esses sim, tiveram a maior culpa, porque assinaram as promissórias de pagamento, permitiram os créditos, contraíram as dívidas, distribuíram benesses, passaram os cheques para os amigos, para grandes negócios em nome do Estado, cuja titularidade da dívida ficou em nós todos.

E quem são os «outros» de que fala?

Foram políticos, banqueiros, grandes gestores, grandes empresários, acionistas de grandes grupos, advogados, consultores e muitos professores universitários que teorizaram para defender este modelo. E nós somos "convidados" a pagar a conta sem termos assinado esses títulos de crédito.

Está a falar das PPP, da Expo 98, do Euro 2004 e de outros empreendimentos semelhantes?

Sim. Formas diretas ou indiretas de nos comprometer a todos com pagamentos futuros muito pesados.

A raiz do mal está nos políticos ou nas políticas?

Não adianta pensar que uma coisa está desligada da outra. As políticas são feitas pelos políticos e estes são, umas vezes irresponsáveis, outras vezes corruptos, outras vezes possuem agendas paralelas. Há de tudo. E também os há bem intencionados. Os que agora estão a cortar as rendas certas e permanentes das PPP e das energias são políticos que devíamos respeitar, aplaudir e incentivar. O que muitas vezes acontece é que dizemos mal deles, sem motivo. Como cidadãos atentos temos de manter os olhos e os ouvidos bem abertos e atentos para impedir que se repitam os erros e os negócios que ainda estamos e continuaremos a pagar por muito mais tempo.

Se os políticos, nomeadamente os deputados, fossem mais bem pagos seriam menos tentados a entrar em negócios e a alimentar as suas vidas profissionais paralelas ao Parlamento?

Eu defendo para os deputados: responsabilização, regime de incompatibilidades e melhor pagamento. Vamos por partes. Eu acho que é altura para se pagar melhor aos políticos, se possível sem agravar as contas públicas. Se reduzirmos a classe dos deputados para metade ou dois terços e distribuirmos o ordenado pelos que ficam, estes veem o seu rendimento aumentado, podendo, deste modo, que lhes exijamos que sejam absolutamente exclusivos na sua função. Desta forma, será possível que os responsabilizemos pelos diplomas que aprovam. Na atual situação, não há responsabilização e eles insistem no argumento que por ganharem pouco têm de acumular funções fora do Parlamento.

Temos um elevado histórico de quedas de governos, porventura só superado pela Itália. A permanente instabilidade política não torna ilusória qualquer esforço de continuidade?

Esse número pode levar à ilação que este país só se governa em ditadura, mas eu não acredito e não defendo isso. Eu não tenho saudades do passado, porque vivi no antigo regime e assisti a exemplos de falta de liberdade e indignidade da condição humana. Acho que é melhor governar em democracia e procurar soluções por consenso, do que andar com tentações ditatoriais. Sobre a sua pergunta em concreto, posso afirmar que entendo que este país teve demasiados governos e demasiada instabilidade, mas devo ressalvar que num contexto de intervenção externa um executivo manter-se 2 anos em funções eu diria que até é surpreendente. Este até podia já ter caído. Foi feita muita coisa boa, há indicadores positivos, mas houve aspetos que falharam indiscutivelmente. Seria desejável, independentemente dos governos, que se cumprissem legislaturas até ao fim.

O seu livro tem dois capítulos dedicados à educação. Um deles chama-se «formar mão de obra de que as empresas precisam» e o outro «reorientar a educação e formação dos jovens portugueses». Primeira pergunta: tem-se diplomado mais para a estatística do que para suprir as reais necessidades do país?

Sem dúvida. Há muitos cursos que têm muito poucas saídas profissionais, mas temos vindo a assistir ao encerramento de alguns desses cursos. Lá está, entre as coisas mal feitas, há coisas bem feitas, que é a racionalização dos cursos em função do rácio de empregabilidade de cada curso tendo por base critérios objetivos. Mas pelos vistos nem todos concordam. Ainda hoje, no dia em que estamos a falar, ouvi o presidente do Conselho de Reitores referir que este critério era «grosseiro» e que permitia que se fechassem cursos que a economia precisava. 

Discorda?

Claro que discordo. Desculpem lá - com toda a expressão popular portuguesa - por uma vez usem um critério e não arranjem desculpas para nunca aplicarem esse critério. Isso é como a avaliação dos professores. Respeito muito esta classe, mas de uma vez têm de ser avaliados e responsabilizados. Eu também sou avaliado no meu trabalho, nas conversas, nos comentários que faço, etc. Se eu falhar, toda a gente me cobra. 

Entende, então, que os cursos estão desligados da realidade?

Os cursos superiores têm de ser orientados para a economia. Porque eu continuo a ver no meu país, certas universidades, mesmo privadas, a fazerem propaganda de cursos de Línguas, Relações Internacionais, só para dar dois exemplos, que não conseguimos absorver…

São os chamados cursos de caneta e papel…

Tal e qual. É um atropelo aos interesses dos cidadãos que ao não possuírem a informação necessária são «convidados» a matricularem-se nestes cursos e depois quando saem de lá com o canudo na mão não têm emprego. E o país gastou recursos neles. Os estudantes acumulam frustrações, sentem-se defraudados. É o caso do meu curso, Comunicação Social. O mercado está saturado, para quê continuar a formar se há excesso de oferta? Perante isto é preciso reorientar os cursos. 

Cita, na página 421 do seu livro, a crítica que no século XIX Eça de Queiroz fazia ao «País dos doutores, dos letrados e dos intelectuais». Trata-se de uma mentalidade, com cerca de dois séculos, que se mantém viva?

Ainda existe. Tudo o que tem a ver com Humanidades e cursos relacionados com Ciências Sociais, Direito e até Gestão é o querer, através do diploma, ter um estatuto que o próprio curso já não dá e a economia não remunera e, pior do que isso, não absorve. É uma ilusão. Eu ainda hoje vejo neste Portugal em que vivemos institutos politécnicos e universidades com laboratórios que são autênticas televisões montadas, apetrechadas com equipamentos muito caros, muitos deles pagos pela União Europeia, que continuam a investir nessa área, quando essa área, manifestamente, não faz falta à economia. Dou outro exemplo. Os advogados. Continuam a formar-se em excesso. 

E do que é que precisamos? 

Olhe, muita coisa. Continuamos a importar mão de obra especializada de soldadura, de torneiro mecânico, etc. E isto acontece pelo crime cometido em 1976 com o desmantelamento das escolas industriais e comerciais. A minha escola, a escola industrial e comercial de Tomar, Jácome Ratton, tinha no seu interior, nas oficinas, dois motores de aviões. Todos os anos eram montados e desmontados pelos alunos. Eu entrei na escola em 1976 e vi com os meus olhos as ferramentas e os motores abandonados e por montar. Desmantelaram pavilhões inteiros que serviam para ensinar artes e ofícios e que eram necessários em Portugal. Não tenho medo das palavras: foi um crime. Económico, social e político. Felizmente está-se a tentar recuperar esse erro histórico, e honra seja feita, foi o governo anterior, o de José Sócrates, que apostou de novo nos cursos profissionais. O atual governo percebeu que era importante e está a dar seguimento.

Defende que o setor da educação tem pessoas a mais. Refere-se, nomeadamente, aos professores?

Sim. É público. Professores sem horário e outros com contratos que o Estado não pode sustentar. Portanto, eu acho que deve haver uma reorientação no sentido de ajustar a força de trabalho nesta área às necessidades do país. E isso, obviamente, significa reduzir pessoal. Não concordo é que se despeça da noite para o dia. É preciso mexer neste processo com ponderação, embora o tempo para o fazer já tivesse começado a contar quando este governo tomou posse, em 2011.

A propalada reforma do Estado ainda não viu a luz do dia. Será mais de cortes e menos de reorganização?

Os funcionários não devem ser perseguidos, até porque há gente muito capaz e que trabalha bem e acima do horário das 35 horas, mas é preciso reduzir em muitas áreas. Há muitos setores do Estado (na administração central, local e regional) com excesso de oferta de mão de obra. Institutos e departamentos que prestam um serviço que não é útil. Pode traduzir-se em estudos, pareceres, análises, planeamento, processos de licenciamento, etc. Conheço o caso de câmaras municipais, na área da Grande Lisboa, com 600 pessoas no departamento de urbanismo onde entram um ou dois projetos por semana. O que é que está lá tanta gente a fazer? Das duas uma: ou mandem-nas para outros departamentos do Estado onde ainda há falta de gente ou convidem-nas a ir embora ou a ficar em casa - que é uma ideia que pode ser seguida.

Quais as vantagens de ao não despedir, convidar as pessoas a ficar em casa?

Há uma poupança de cerca de 15 por cento em horas extra, subsídios de almoço, subsídios de transporte, etc. E há outros 15 por cento que integram tudo o que são gastos com papel, canetas, tinteiro para impressoras, eletricidade, água, gás, manutenção de edifício, etc. Podia-se poupar em todos estes aspetos sem a presença das pessoas. Mantendo, claro, o seu ordenado base. Mas atenção, não era só ficar em casa. Ao mesmo tempo, ficariam livres para poder procurar emprego, como trabalhadores por conta de outrem, por contra própria ou decidir emigrar. Quando decidissem a sua vida, comunicavam ao Estado. Esta é uma proposta, que é de vários economistas, mas eu recuperei para o meu livro.

Os fracos frutos do investimento na educação devem-se à errada orientação estratégica?

Explica-se porque o tipo de formação que se fez não serve os interesses da economia. Quantas empresas de metalomecânica precisam de técnicos? Quantas empresas que exportam bens e serviços para todo o mundo precisam de técnicos? E também há o trabalho mais manual e naturalmente menos qualificado, como nas áreas do têxtil e calçado, por não existirem recursos humanos portugueses, que têm de ser supridos com imigração. Esta é outra questão: nem todas as pessoas se sujeitam a trabalhar em qualquer ofício e muito menos mal pago. No atual contexto, creio que deve emergir uma atitude diferente perante o mercado de trabalho. É preciso mudar a cultura instalada.

Disse numa entrevista que quando vivia na sua aldeia, nos arredores de Tomar, chegava a andar quilómetros e quilómetros para chegar à escola primária primeiro, depois ao ciclo preparatório e depois ao liceu. As origens familiares e o meio envolvente são determinantes para a atitude em adulto perante a vida?

Quando as pessoas nascem em meio agreste em que contam só consigo próprias e com o meio familiar e a vizinhança para sobreviver, a conceção do mundo é, à partida, de muita versatilidade, adaptabilidade e de socorrer-se de todos os recursos disponíveis para atingir resultados maiores. É uma espécie de sina para a vida.

Dispenso meios sofisticados, procuro fazer uso de ferramentas simples, de forma a obter resultados melhores. A receita que norteia o meu dia a dia é sobriedade, noção das proporções e tentativa de respostas simples a questões complexas.

Não quero ser muito pretensioso ao dizer isto, mas acredite que não preciso de muitos recursos para viver o meu dia a dia e desenvolver a minha atividade profissional. Em termos alimentares sou do mais simples que possa existir, o vestuário é o essencial, obviamente respeitando o formalismo que a minha presença na TV obriga.

A vida ensinou-me que soluções muito complexas e elaboradas escondem interesses secundários e agendas paralelas. Grandes problemas, soluções simples, posso dizer que é o meu lema, o meu modelo de vida. Se acharem que está correto e for o meu modelo para outros, ótimo. Não o quero é impor a ninguém.

Falou do modo de vida. Esta crise vai tornar os portugueses mais frugais, nomeadamente nos atos de consumo?

Já tornou. E ainda bem. Sabe o que lhe digo? Não era só a nossa dívida pública e a nossa dependência externa, através da importação de tudo e mais alguma coisa, que começaram a mudar o nosso rumo para um plano inclinado. Foram também as chamadas «lojas gourmet», os ginásios para pura ostentação, as refeições de cozinha de autor, sofisticada e caríssima. Estes negócios não têm que existir. Correspondem a um gasto de recursos que nós não temos para sustentar esse nível de vida. E quem abandonar este negócio não tem outra solução que não seja procurar empregos mais sustentáveis.

Nuno Dias da Silva
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