Entrevista

Joaquim Gomes, ex-ciclista, Diretor da prova rainha do ciclismo português
As voltas que a Volta dá

76VOLTA_apres095.jpgGanhou a Volta a Portugal em bicicleta por duas vezes e agora dirige-a, a partir dos bastidores, com a paixão que alimenta desde muito novo. A palavra ao diretor da mais importante prova velocipédica nacional, Joaquim Gomes.

Não se cansa de repetir que a Volta é o objetivo desde a sua adolescência.  Depois de 18 voltas em cima da bicicleta, esta é a sua 11ª prova na condição de diretor. É esta a sua obsessão predileta?

De facto, desde os 15 anos que a Volta é o meu objetivo. Fiz a minha primeira Volta com 19 anos, em 1985, e a última em 2002. Todos os meus sacrifícios estiveram focados nesta competição, com especial entusiasmo desde que enveredei pela carreira de profissional.  Tantos anos volvidos, agora numa posição mais de bastidores e dentro do carro, em plena corrida, continuo focado num dos mais eventos desportivos mais populares do país.

O que faz um diretor da Volta, antes, durante e depois da corrida?

A estrutura da Volta a Portugal é muito reduzida, comparada com as estruturas da Vuelta ou do Tour, por isso, sou obrigado a desdobrar-me em funções, assimilando tarefas que, em condições normais, competiriam a 4 ou 5 pessoas. A Volta é um evento muito mediático e publicitário e, para ser rigoroso, é muito mais do que uma corrida de bicicletas. Não se pode descurar a vertente do marketing, comercial e da comunicação, em articulação com o lado desportivo, para manter os níveis de popularidade da competição intactos. Trabalho muito, mas não me queixo. Adoro o que faço.

Para além da função crucial de manter a máquina oleada e articulada, o trabalho de relações públicas deve ser permanente…

Sem dúvida. Como sou um apaixonado pelo perfecionismo e pelas curiosidades, estimei que ao longo dos 11 dias de prova tenha de lidar com cerca de 2500 pessoas diferentes, desde responsáveis das equipas, ciclistas, forças de segurança, colaboradores da caravana, jornalistas, etc. É um número impressionante. Por vezes torna-se complicado gerir a informação e coordenar os trabalhos com as várias equipas da organização no terreno, numa gestão que por ser em cadeia está longe de ser fácil. Este desporto tem a particularidade de não estar parado e termos de andar com a casa as costas, ao longo de 11 dias. Mas já foi ainda mais difícil, quando a Volta era composta por 21 dias de prova.

Intervém no delinear dos percursos e itinerários da Volta?

Essa é uma competência de que eu não abro mão (risos).  É uma das atividades que mais satisfação me dá porque me permite usar toda a minha experiência, primeiro enquanto ciclista e depois como responsável.

Como reage às criticas de a Volta ser corrida quase toda a norte?

Nem sempre podemos levar a Volta onde queremos.  Os orçamentos não esticam e o da Volta, que é cerca de 4 milhões de euros, também não. Temos três municípios-âncora, que de há bastante tempo a esta parte são Viseu, Castelo Branco e Lisboa, e é em função deles que são contactados cerca de 40 ou 50 autarquias que, após negociações, permitem montar o puzzle do traçado da prova. Deixe-me sublinhar que apesar de a Volta não conseguir chegar ao pais todo, nomeadamente ao Algarve, ao Alentejo e ao nordeste transmontano, vamos ter nesta edição quatro municípios que se estreiam na competição, o que me enche de orgulho.

O que é que a 76ª edição tem de novo que possa surpreender os adeptos da modalidade?

A etapa do dia 2 de agosto, que termina na Serra do Larouco, em Montalegre, vai ser uma grande surpresa. Estou certo que vamos ter uma nova subida ao jeito da popular ascensão ao alto da Senhora da Graça, em Mondim de Basto, que vai entrar na tradição da prova e da modalidade.

Aposta na Serra do Larouco como uma nova atração para os amantes da velocipedia?

76VOLTA_apres227.jpgEstou em crer que vamos presenciar uma das mais belas etapas de sempre, que vai ser corrida em boa parte no Gerês e vai passar por barragens, uma delas a do alto do Rabagão, que tem dois quilómetros de paredão, o que vai permitir imagens televisivas muito impactantes.  Mas o final vai surpreender muita gente. Aliás, aquele local começou por me surpreender a mim.  O presidente da Câmara de Montalegre perguntou-me em jeito de desafio, se sabia qual era a segunda serra mais alta de Portugal continental e eu fiquei a patinar.

Confesso que também não me ocorre…

A resposta certa é a Serra do Larouco, inserida no sistema montanhoso Peneda/Gerês, com 1525 metros.

A perda de popularidade do ciclismo deve-se, de alguma maneira, à asfixiante monocultura futebolística veiculada pelos órgãos de comunicação social?

A minoria pensante não tem tido força suficiente para alterar a atitude, por vezes, excessiva e despropositada de alguns órgãos de comunicação social para com o futebol, quando é sabido que a pedagogia que se exerce na sociedade passa muito pelo que se  passa nos mass media. Eu lembro-me que o ex-presidente do Sporting, Dias da Cunha, insurgia-se contra a dificuldade de mudar o sistema. E o ciclismo sente esse obstáculo quase intransponível, apesar de também admitir que a modalidade tem culpas no cartório, nomeadamente na deficiente estratégia de comunicação seguida quando se deu à multiplicação dos casos de doping envolvendo ciclistas. Estamos a pagar um preço alto e não vai ser fácil recuperar o prestígio que a modalidade já teve e que foi afetado.

A transparência é o único rumo para recuperar a credibilidade?

Creio que já se segue nesse caminho. Nesta perseguição entre o rato e o gato, a modalidade saiu a perder. Os métodos de deteção de substâncias na medicina desportiva evoluiram muito graças à introdução do passaporte biológico, que permite monitorizar o perfil hematológico do atleta e agir sempre que esse perfil se altera, em vez de estar permanentemente a perseguir e punir.
Não posso por as mãos no lume, mas estou em crer que a possibilidade de haver casos graves dificilmente se repetirá. O patamar cientifico que se atingiu é de tal ordem, que só de cheirar substancias dá positivo (risos)…

O número de praticantes foi reduzido?

Pelo contrário. A popularidade do ciclismo é de tal modo impressionante que a Federação Portuguesa de Ciclismo, em contra ciclo com a economia, viu aumentar o número de atletas federados, sendo de realçar que muitos optam por outras vertentes como o BTT ou o BMX, e mais tarde, quando mais velhos, acabam por evoluir para o ciclismo profissional em estrada.

E de que modo é que os patrocinadores e a publicidade, a grande fonte de sobrevivência da modalidade, reagiram a estas convulsões e sombras de dúvidas?

É sempre um risco apostar no desporto. Em qualquer desporto. E os patrocinadores identificam-se com atletas vencedores, combativos e com determinados valores que não passam pela fraude. Dou-lhe um caso concreto, o da Liberty Seguros, que em 2009 devido a três casos de doping na equipa que patrocinava abandonou a modalidade e pouco depois tornou-se o principal patrocinador da Volta a Portugal, mantendo-se também na edição de 2014, por reconhecer que este evento é uma excelente forma de promoção do seu produto.

Para além da visibilidade dos casos de doping, o que mudou no ciclismo, no seu tempo em que pedalava nas estradas e os dias de hoje?

JGomes2.jpgEu comecei no Sporting, em 1986/87, ao lado de vultos como o Marco Chagas ou o Alexandre Ruas, ciclistas que eu venerava e, meses antes, guardava religiosamente os cromos dos que eram os meus heróis. Esse período coincidiu com uma fase em que os clubes abandonaram a modalidade e as marcas começaram a despontar.  A grande diferença é que se ganhava, de longe, melhor nos anos 80/90 do que se ganha agora. Estou em crer que se o ciclismo atual respirasse a saúde desses tempos, o Rui Costa e o Tiago Machado estariam em equipas portuguesas, preferindo correr, a maior parte do ano, junto do seu público. Para fazer uma ideia, eu tinha vencimentos anuais que correspondiam a orçamentos anuais de certas equipas presentemente.  Neste momento, um ciclista do pelotão português pode auferir, em média, entre 1000 e 1500 euros por mês.  Um ciclista de elite, que corre a Volta  a França, pode receber um ordenado médio de 200 mil euros anuais.

Olhando para trás, arrepende-se de algum coisa?

Sim, devia ter aceite as propostas que recebi para emigrar.  Preferi assumir uma posição mais confortável e fiquei por cá.

Admite, mesmo num contexto económico adverso,  o regresso dos clubes «grandes» à estrada?

É difícil, mas é uma possibilidade a explorar.  Contudo, há uma circunstância que não se pode negligenciar e que seria negativa para a modalidade. O ciclismo, como modalidade puramente publicitária, ficaria menos apetecível para os patrocinadores, visto que qualquer sponsor que desejasse investir num Benfica, Sporting ou FC Porto arriscava-se a ficar na sombra do nome do clube, por haver uma rejeição inconsciente à marca. Isto excetuando uma empresa com um grande estofo, como um grande banco ou um operador de telecomunicações.

Rui Costa é, na atualidade, o grande ciclista português, tendo-se sagrado campeão mundial, o ano passado, em Florença. Até onde é que ele pode ir?

Conheço bem o Rui, desde miúdo. Ele  não tem que provar nada. Foi descoberto pelo Manuel Correia, um ex-colega meu no Sporting.  Aos 27 anos, tem uma leitura de corrida impressionante e em 10 oportunidades aproveita nove. Beneficia de se socorrer dos melhores métodos de treino que os corredores profissionais têm e de uma formação acima da média, fruto também da evolução que se deu na sociedade portuguesa.  Até os diretores desportivos, normalmente ex-corredores, são hoje pessoas muito mais formadas e informadas, em temas e matérias que vão muito para lá do ciclismo.
O Rui Costa tem um currículo respeitável (nomeadamente o mundial de estrada em Florença, as três voltas à Suíça e as três etapas ganhas no Tour), mas creio que as suas verdadeiras capacidades ainda não foram postas à prova. A equipa onde ele milita, os italianos da Lampre, exige-lhe isso. No dia em que falamos (17 de julho) o Rui está nos 10 primeiros do Tour, acabou por desistir por problemas de saúde, mas todos sabem que uma etapa  ganha  na Volta  a França vale muito mais do que um 8.º, 9.º, ou um 10.º lugar na ronda francesa.

O que é que o aproxima e distancia de Joaquim Agostinho, o maior ciclista português de sempre?

O ciclismo mudou muito. Os métodos ancestrais não têm lugar no atual contexto da alta competição. Hoje em dia é nos detalhes que se marca a diferença, nomeadamente ao nível da medicina desportiva e na capacidade de recuperação. Agostinho foi uma força da natureza, que só sabia o que era ter uma picareta e uma enxada na mão ate aos 25 anos. Ele não teve qualquer adaptação prévia à modalidade. Foi o meu sogro, João Roque, que o descobriu. Ao fim de 2 anos estava no Tour ao lado de «lobos» como Eddy Merckx e Bernard Hinault. Ele tinha uma forma desprendida de estar e agia, além fronteiras, como um emigrante. Foi  um diamante por lapidar que conseguiu feitos incríveis. Encarnou o lado romântico da modalidade e as histórias envolvendo-o são imensas. Conto apenas uma: Agostinho detestava estar fora da sua casa durante muito tempo e inventava desculpas para não ir às provas de preparação da Volta a França, como o Dauphiné Libréré, tudo com o propósito de regressar a Portugal para tratar da horta e dos animais. Ainda assim, participou no Tour, em 1978 e 1979 e conseguiu dois pódios, no terceiro lugar.

Nuno Dias da Silva
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