Opinião

‘Pedagogia (a)crítica no Superior’ (XXIII)
Books fast food

FotoLSouta2015peq.jpg «uma casa que também é um livro»
(O Livro Branco da Melancolia, José Jorge Letria, 2001:62)

Mais um ano lectivo chega ao fim. Acabadas as aulas, lançadas as notas, entregues os livros de termos, os professores arrastam-se, nos dois meses subsequentes, em exames… onde a grande maioria dos reprovados na avaliação contínua não comparece. Os estudantes bazaram, ansiosos por férias, ondas e festivais de música. Já os professores, são ocupados em tarefas menores e em reuniões para isto, aquilo e coisa nenhuma. Nas do CTC, apreciam-se relatórios justificativos de contratações (anuais ou semestrais) de docentes a tempo parcial (os «precários» que a propaganda diz ter integrado). E naquela maratona de votações, sob o escudo do voto secreto, assomam, aqui e ali, animosidades pessoais e académicas.

Mas eis que os canais comunicacionais internos dão notícia de alguma animação em Julho. Lá para os fins do mês, o Instituto acolhe 25 crianças para um acampamento «nos jardins» de uma das suas unidades orgânicas. O Prof.S., que trabalha nessa escola desde a sua inauguração, nunca reparou que, para além de relva, sobreiros e umas esparsas plantas de sequeiro, houvesse 'jardim' algum no campus («o usual exagero do marketing promocional», pensou). A iniciativa - 'Acampar com Histórias - Noites Happy Readers' - é desenvolvida, desde 2015, por uma distinta organização a APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros); esta é a 10ª cidade a receber tal 'evento', no presente ano (seguem-se outras 8 localidades). O propósito explícito da acção é merecedor de encómios: «promover hábitos de leitura junto dos mais novos» (os destinatários são crianças dos 8 aos 11 anos). Mas ainda que a «experiência» seja curta no referente ao acampamento (das 18h de sábado às 11:30h da manhã seguinte), já programa, ao invés, aponta para altas expectativas: os animadores «transformam o livro num teatro vivo e cheio de magia». E até está previsto «um momento de recepção aos pais» a quem os promotores tranquilizam, no que respeita à segurança das crianças: «serão acompanhadas em permanência por uma equipa de cinco monitores». No recheado programa, «cada criança recebe um livro de oferta» (e, estamos em crer, um exemplar da Happy Kids, a revista «com conteúdos 'edutainment'»!) e «o jantar, ceia e pequeno-almoço estão incluídos». Tudo isto ao preço da uva mijona, 10 por criança. Em suma, uma noite «mega divertida» e, aparentemente, muito pc (pedagogicamente correcta).

Só que o Prof.S., que navega noutras águas, as da 'pedagogia crítica', a que cultiva a prática de em tudo procurar 'o verso e o reverso', ficou de pé atrás quando se apercebeu que o 'Acampar com Histórias' contava «com o apoio da McDonald's Portugal» (fornecedora das três refeições). Talvez a hierarquia de objectivos do evento fosse outra: os livros são a 'cenoura' quando o que se pretende reforçar são outros hábitos… os do fast food. Assim, colados aos livros (e com a chancela do Plano Nacional de Leitura), fica a multinacional mais resguardada das críticas dos nutricionistas e educadores que fazem dela o 'bombo da festa'.

Então, sai um Happy Meal cheeseburguer, com um Iced Fruit Smoothie, e, como sobremesa, um Mini Mcflurry Kit Kat; à ceia um McWrap Chicken Rustic Crispy; quanto ao pequeno almoço, um Bacon & Egg McMuffin. Talvez o Prof.S. se engane e a McDonald's Portugal lhes faculte um menu com um toque mais lusitano, incluindo uma sopa Caldo Verde ou uma Mcbifana. E nesta encenação não podia faltar «a visita do Ronald, mascote da MacDonalds», que vem também dar uma ajudinha no combate aos «mitos e boatos» sobre a mais que duvidosa qualidade alimentar da empresa.

Que este tipo de acções conte com apoios institucionais como o PNL e a CONFAP, não admira, pois o dinheiro das multinacionais consegue até criar 'sinergias' espúrias. Mas estas sessões, também elas de formação, só teriam a ganhar se envolvessem o corpo docente interdepartamental da escola superior 'hospedeira', designadamente, os mais directamente ligados à literatura infanto-juvenil e à literacia nutricional, assim como os estudantes dos cursos de animação e educação básica, p.e..
Esta joint venture, entre a APEL e a MacDonalds, ao adoptar um programa estandardizado, corre o risco de não ter em conta as especificidades do território onde vai operar. No caso presente, a «entidade promotora local» devia-os ter acautelado para o facto de aquele espaço escolar ter sido construído sobre uma antiga zona pantanosa, daí os indesejados 'residentes' de Verão, melgas e mosquitos, ali designados por «estefanilhos». E já que a Protecção Civil proíbe «os meninos à volta da fogueira», haveria toda a necessidade de incluir no kit pessoal um repelente de insectos. Eles são a verdadeira praga, mais que um hambúrguer ou um mau livro.

Luís Souta
(Este texto está redigido segundo
luis.souta@ese.ips.pt
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
Unesco.jpg LogoIPCB.png

logo_ipl.jpg

IPG_B.jpg logo_ipportalegre.jpg logo_ubi_vprincipal.jpg evora-final.jpg ipseutubal IPC-PRETO