Entrevista

Luís Castro em entrevista
Só há uma verdade e tenho de contá-la

2389428_uDyqD.jpgEsteve preso quatro vezes, foi expulso de vários países, sofreu ameaças de morte. Foi interrogado com uma arma encostada à cabeça, na Guiné. No Iraque, esteve três dias sem dar notícias. A família chorou a sua morte e a RTP também. Sempre ao serviço da RTP reportou 23 guerras ou situações de conflito. Na Primavera Árabe viveu com os revoltosos egípcios na praça Tair. Na Líbia, quase foi capturado pelas tropas de Kadafi e viu passar-lhe à frente um foguete BW21. Poder estar onde se faz a História não tem preço e as amizades que se fazem debaixo de fogo são para toda a vida    

 

Como repórter de guerra, ao serviço da RTP, fez a cobertura de mais de vinte conflitos armados. O que o leva a partir para lugares de onde a maioria da humanidade preferia fugir?

No total, até agora e desde 1997, fiz 23 guerras ou situações de conflito. Há uma frase muito interessante que diz: "quando vires alguém que corre para um local de onde todos os outros fogem, é porque é um repórter de guerra".Vamos sempre em contramão. Quando me perguntavam "é casado, tem dois filhos, porquê é que vai para a guerra?", eu dizia: "somos jornalistas, temos de dar voz aos mais fracos". Na verdade, compreendi mais tarde, o facto de podermos estar onde se faz história, sermos testemunhas activas desses  acontecimentos, não tem valor. Enriquece-nos muito enquanto pessoas, para além de nos enriquecer enquanto profissionais.

 

É por isso afirma: "só há uma verdade e tenho de contá-la nem que isso me custe a vida..."

Ainda não me custou a vida, mas quase. Já estive preso quatro vezes, fui expulso de vários países,  fui ameaçado de morte. Tive de ser resgatado pelas forças especiais portuguesas, de um país em África, por que tinha sido interceptada uma comunicação para me matar. Fui evacuado de Timor para a Austrália, devido a um acidente grave; tive também um acidente grave também nas montanhas do Afeganistão. Felizmente, ainda não foi, mas, continuo agarrado a ela.

 

Qual foi o pior cenário de guerra que pisou?

O pior foi Angola, em 1999. A guerra mais violenta que se travava à face da terra, mas esquecida e banalizada pela comunidade internacional. Nessa altura haviam outras duas guerras mediáticas, a Tchechénia e a ex-Jugoslávia. Angola foi o palco de guerra mais violento, mais cruel, que pisei ao longo destes anos, onde se matava e se morria, a cada minuto que passava. Numa grande operação que durou quinze dias, nas últimas horas, morreram pelo menos 300 homens à minha volta. Fui alvo da UNITA. Estava do outro lado, tinha de me sujeitar também a ser um alvo. Houve outros palcos, quase todos eles aconteceram no Continente Africano. São as guerras mais difíceis de acompanhar. As outras, Iraque, Afeganistão, são guerras com grande exposição mediática, mas não se comparam no seu perigo àquilo que vivi em África.

5832432_mHdrQ.jpg

 

Em Bagdad convidaram-no para fazer a cobertura de um atendado da Al-Quaeda. Quando um grupo da Al-Quaeda  armadilhou um carro e o posterior atentado. Recusou, a revista Time fez depois a reportagem. Na guerra e no jornalismo não vale tudo...    

 Para mim não vale tudo. Acima de tudo vale a minha consciência. Poderia ter feito essa reportagem, como poderia não a ter feito. Escolhi não a fazer. Não censuro quem a fez. Até porque ainda hoje tenho algumas dúvidas se o devia ter feito ou não. Mas, apesar de tudo, há algo que me conforta, a minha consciência. A minha consciência vale mais do que qualquer reportagem. Não ando à procura de fama, nem glória. Ando à procura de uma satisfação profissional, de uma satisfação pessoal e procuro ser honesto com a minha empresa. Se a minha empresa me manda para um palco de guerra, terei de fazer o melhor que puder e souber. Acima desse patamar, só mesmo a minha consciência.

 

Qual foi a história que mais o marcou enquanto repórter de guerra?     

As histórias que guardamos são as de maior densidade humana. Uma é em Angola. Portugueses e os seus filhos viveram no mato, durante meses, a fugir dos combates. Quando os encontrei não eram mais do que pele e osso. No meio da guerra, arranjar-lhes certidões de nascimento para os trazer para Portugal foi a minha principal prioridade. Até aí a minha principal prioridade era reportar. Aqueles homens e aquelas crianças tinham de sair rapidamente de Angola, ou então morreriam à fome. Movi montanhas, para conseguir documentos, para que eles pudessem vir para Portugal. Uma outra é com um soldado americano, com quem fiz uma amizade muito intensa. Embora não tenhamos passado muitos dias juntos, passámos esses dias debaixo de combate e, as amizades que se fazem debaixo de combate, ficam-nos para sempre. O soldado McMillam tinha ido para o Iraque para conseguir poupar dinheiro para que a mulher acabasse o curso e quando voltasse para os Estados Unidos acabar também o dele, Medicina. Morreu. Uma bomba colocada na estrada. Eu já tinha vindo embora, soube da morte dele pela mulher. Mandou-me mensagens por email onde dizia que o McMillam falava muito de mim e que tinha ficado a gostar muito de mim, também. As mensagens em que  ela me contava quais tinham sido as últimas palavras dele, em relação a ela, ainda hoje guardo. Vão fazer parte do resto da minha vida. O Mcmillam é alguém que nunca mais esquecerei.

 

Como é que lida com o stress pós traumático?

Em Portugal não há a tradição de um olhar atento sobre as pessoas que vêm destes palcos de guerra. Cada um acaba por se tratar à sua maneira. Quando volto, normalmente vou para o Norte, para Cabeceiras de Basto que é aldeia dos meus pais. Desligo-me durante dez ou quinze dias, vou ouvir passarinhos, dar uns mergulhos no rio, passear nos montes, devolver-me à sanidade mental. Esta é a forma que tenho de arrumar as minhas gavetas. Quando escrevi o meu primeiro livro sobre estas experiências de guerra, tive de arrumar as prateleiras. A minha mulher dizia que eu andava insuportável. Mas como felizmente me considero um rapaz muito "arrumadinho", interiormente, consigo ter as coisas bem acomodadas. Mas está tudo cá dentro.

 

É no livro Repórter de Guerra que estão essas grandes Histórias?

Fui escrevendo aquele livro enquanto a memória estava fresca, porque depois a memória vai-nos pregando partidas. Visionei todas as reportagens que fiz. Tenho um arquivo em bruto com as imagens das guerras por onde passei e fui passando para o livro as minhas experiências, para memória futura. Até que a escritora Margarida Rebelo Pinto, minha amiga, me disse "tens de me deixar ler isso". Deixei-a ler e ela disse-me para publicar. Levou o manuscrito para a Oficina do Livro, que me convidou a editar e a lançar livro. Ainda me achava demasiado novo para contar as minhas memórias, mas em boa hora o fiz. Está lá muito daquilo que é a vida de um repórter e aquilo que foi a minha vida, de uma forma nua e crua, sem esconder praticamente nada. Embora hajam pequenas coisas levamos para a cova, que são do nosso foro íntimo e não vale a pena contá-las. Dá para chorar, dá para rir, são coisas boas, más, muitos erros, exclusivos mundiais que consegui. Foi também uma espécie de catarse.

 

A História está acontecer agora no mundo árabe, não devia estar lá?

Tenho andado a tratar de outros assuntos mais do foro interno e é isto que me faz mal. Aqui há tempos, com o José Rodrigues dos Santos ríamos. Antigamente, era ele do lado de cá, e eu do lado de lá; agora, sou eu do lado de cá, e ele do lado de lá. Tanto a mim como a ele faz-nos muito mal ver a guerra da Regi. Mas a evolução na carreira tem destas coisas. Agora tenho outras funções que me absorvem também cá e não me permitem andar tanto nestes palcos, como há três ou quatro anos. Mas sempre que possível vou.

 

Esteve na Líbia, como é que correram as coisas ?

Na Líbia correu bem, mas podia ter corrido muito mal. Quase fui apanhado à mão pelas tropas de Kadafi. Tinha de estar a filmar onde as coisas aconteciam e a dada altura todos fugiram e eu não tive tempo de fugir. Fiquei sozinho entre as duas frentes. Ao rever as imagens que gravamos, percebemos que vários projécteis nos passaram à frente. Entre mim e o meu Câmara passou-nos à frente um foguete BW21. Estivemos perto de não sairmos de lá vivos.

 

 

 

Também fez cobertura da revolução no Egipto...

Foi uma experiência fantástica estar a viver com os manifestantes na praça Tahir e eles quererem fazer perguntas de como foi o processo revolucionário em Portugal. E quando perceberam que as coisas cá não correram assim tão bem imediatamente, como eles imaginavam, rapidamente viravam-se uns para os outros e diziam: "estás a ver, estás a ver". (Risos) . Perguntavam: "com vocês acabou a ditadura e passaram logo a viver em democracia?". Eu dizia: "não, isso ainda demorou" e eles "estás a ver, estás a ver". (Risos). Como quem diz, isto aqui não vai ser assim tão fácil, ainda vamos ter de batalhar muito. Não se acaba com um processo de décadas de ditadura para se começar uma democracia no dia seguinte. Eles estão a viver o seu PREC, (Processo Revolucionário em Curso), tal como nós o vivemos.

 

O mais próximo que se está de um acontecimento é a viver com os seus protagonistas?

Se queremos compreendê-los temos de  viver e sentir como eles. Caso contrário, vamos olhá-los à luz dos nossos valores e da nossa realidade e cometer erros de análise e interpretação. Um dos homens da propaganda do Hitler tinha uma frase muito interessante que dizia "tudo depende do ângulo da câmara e de quem conta a história".Se continuamos a contar a história do nosso ângulo, vamos cometer erros gravíssimos. Temos de estar lá, viver, comer, dormir, sentir com eles para perceber porque é que as coisas acontecem. Porque que se faz um atentado, porque se está disposto a morrer pela pátria. Como é que nós iríamos reagir se tivéssemos todos os dias um tanque atravessado na nossa rua, se todos os dias nos faziam revista, nos impediam de entrar ou sair normalmente de casa, acordávamos com as portas rebentadas e o cano de uma M16 encostada ao pescoço. A nossa mulher e os nossos filhos eram arrastados para a rua, revistados, humilhados com um pé em cima do pescoço. Ao fim de uns meses também nós seríamos considerados terroristas, não iríamos tolerar que isso acontecesse. Esse é um dos erros graves que as tropas estrangeiras cometem nesse países. É verdade que todos estão numa luta pela sobrevivência. O pentágono reconhece que aos seus soldados lhe falta cabeça e coração. Sabem como chegar, destruir e derrubar mas não sabem como conquistar. Ao contrário dos portugueses que somos claramente dos melhores, se não os melhores. Sabemos chegar e conquistar por que depois vivemos com eles. Como se costuma dizer "Deus fez o Preto e o Branco e o português fez o Mulato". Houve uma altura, em que no Iraque me perguntavam se era americano, quando respondia que era português diziam " português, senta irmão, come, come". Eles olhavam-nos como iguais, ao contrário daqueles que os atacavam. No Iraque estive preso pelos iraquianos, com quem me dei sempre muito bem.

 

Foi também no Iraque que teve problemas com as tropas americanas…

Fui preso pelos americanos por que estava a reportar sem qualquer filtro, sem que eles vissem as reportagens antes de serem emitidas. A coisa correu mal quando eles perceberam que não estávamos engajados. Queriam que o mundo visse o que estava acontecer pelos seus olhos e não pelo ângulo dos jornalistas. Estive três dias preso, fui humilhado, agredido. Não passei o que passaram os presos de Ab Ghraib, mas bebi do cálice da humilhação. Durante três dias tive a família a chorar a minha morte, na RTP também. Esse foi talvez o episódio mais marcante para a minha família.

 

A Medalha de D. Afonso Henriques, concedida pelo Estado Maior do Exército, que significado tem para si?

Foi a mais alta distinção que recebi até hoje e é a mais alta condecoração que o exército atribui a um civil. Não é isso que me move, mas orgulha-me. Perceber que o nosso trabalho é reconhecido, que ajudamos, porque ao informar nós estamos a ajudar e a esclarecer. Também pelos muitos trabalhos que fiz, pelos diversos países do mundo, onde os nossos militares se encontram. É muito também sobre eles que tenho dado o meu olhar, para reforçar e dar visibilidade ao trabalho fantástico que fazem e à forma como perpetuam o nome de Portugal, no mundo.

 

Somos mais forte quando lutamos pelos outros?

Sem qualquer dúvida. Somos mais fortes quando passamos por estes cenários. Isto enriquece-nos. Quando voltamos, voltamos pessoas diferentes. O nosso ranking de prioridades inverteu radicalmente. Quero lá saber se tenho ou não um telemóvel de última geração; se me ultrapassam pela direita; se me buzinam. Problemas têm eles que lá ficaram, eu voltei. Eles é que continuam a lutar por sobreviver. Problema é descolar aqui do aeroporto e não saber se volto vivo; problema é  ter um bebé a morrer-me nos braços e não saber como o salvar, em Angola; problema é ter um soldado a esvair-se em sangue e não ter medicamentos para o salvar; problema é ser interrogado como aconteceu na Guiné, com uma pistola encostada à cabeça. Depois, aquilo que nós chamamos problemas, aqui no nosso dia-a-dia, são banalidades.

Direitos reservados
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
Unesco.jpg LogoIPCB.png

logo_ipl.jpg

IPG_B.jpg logo_ipportalegre.jpg logo_ubi_vprincipal.jpg evora-final.jpg ipseutubal IPC-PRETO