Adriano Moreira, em entrevista
Memórias de Adriano
Adriano Moreira é um dos portugueses mais
respeitados quando se fala de ensino e universidades. Foi quase
tudo nesta área e sem o seu impulso provavelmente o rosto do ensino
superior português não seria o que conhecemos. Ao «Ensino Magazine»
partilhou o seu infinito saber, sobre este e outros domínios, bem
como as suas dúvidas e inquietações relativamente a este «Estado
exíguo» chamado Portugal.
O Instituto Superior de Ciências Sociais
e Políticas (ISCSP) ainda hoje é conhecido como «a escola de
Adriano Moreira», instituição na qual foi diretor e professor
catedrático. Quer partilhar connosco a atribulada história e as
sucessivas mudanças de designação desse que ainda hoje é um
baluarte das ciências sociais e políticas em
Portugal?
Deixe-me fazer uma reflexão prévia: importa
recordar que durante séculos Portugal teve apenas uma universidade:
a Universidade de Coimbra. O vasto império não tinha ensino
superior em nenhuma das ex-colónias, exceto em Goa, onde havia uma
escola médica, mas que atribuía títulos que não eram reconhecidos
como formação completa na metrópole. Com o passar das décadas o
mundo tornou-se mais complexo e creio que acompanhámos essa
evolução com atraso. A minha interferência nessa instituição, que
no início da década de 50, se chamava Escola Superior Colonial,
resultou de alguns fatores, a começar pela minha visita a África e
posteriormente pelo tempo que acumulei como membro da delegação
portuguesa nas Nações Unidas. Foram experiências que me deram uma
visão que o ensino teria, necessariamente, que acompanhar a
perspetiva de mudança que se desenhava.
Em concreto, qual foi o novo paradigma
que introduziu?
Em vez de uma escola de quadros, como era a
Escola Superior Colonial, precisávamos realmente de uma escola de
ciências sociais e políticas que correspondesse à mudança que se
acelerara, sobretudo depois da última Grande Guerra Mundial. Foi
deste modo, com a concordância do Almirante Lopes Alves (que era
ministro do Ultramar) e do professor Raúl Ventura (docente da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e subsecretário de
Estado do Ultramar) que começámos por criar um centro de estudos
políticos e sociais na junta de investigação científica do
ultramar, cujo método era organizar esses centros numa escola ou
faculdade para que ela desenvolvesse, na sua área, os problemas que
mais interessavam ao país.
Mais tarde chegou a ministro e o seu
ímpeto reformista não foi bem visto pelo poder político de
então…
Quando fui ministro pude transformar essa minha
ideia em realidade, com a concordância dos reitores da Universidade
Técnica de Lisboa e da Universidade de Coimbra, os professores
Moisés Amzlak e Braga da Cruz, respetivamente, bem como da
Universidade do Porto. A este processo opôs-se o reitor da
Universidade de Lisboa, o prof. Marcello Caetano. Apesar disso, a
universidade foi reconhecida e o currículo reorganizado. As
ciências que me pareciam necessárias eram em primeiro lugar as
relações internacionais (que sempre condicionaram - e ;
muitas vezes severamente - Portugal), a ciência política (o
império euromundista estava em busca de uma formulação de governo)
e, só mais tarde, a estratégia. Foram essas três áreas de que me
ocupei. Posteriormente, fundei as duas primeiras universidades do
Ultramar Português: os Estudos Gerais Universitários de Angola e
Moçambique - um nome que não considero feliz, porque foi adotado
para dar ideia que era o mesmo espírito europeu que levava a
utilizar esta designação. Por grandes resistências que se
verificaram na área política em Lisboa estas instituições ficaram
condicionadas a uma experiência de 3 anos. Se a experiência fosse
bem sucedida ficaria com o currículo completo e foi isso que se
verificou.
Foi uma experiência pioneira e
inovadora…
Usámos ainda outra técnica inovadora, à época,
que foi a seguinte: a Universidade de Coimbra assumiu o patrocínio
da Universidade de Moçambique, que se traduziu no fornecimento do
corpo docente, na sua maioria muito jovem. Receberam bolsas de
estudo, formaram-se e estava-lhes garantido que o grau hierárquico
que tivessem na carreira quando acabasse o seu período em
Moçambique era o mesmo grau com que entravam na Universidade de
Coimbra. O mesmo se fez para Angola com a Universidade Técnica, que
assumiu o patrocínio relativamente a esta entidade do então
Ultramar. Isto significa que houve um movimento de grande
solidariedade.
Da década de 60 até aos nossos dias,
destaca alguma conquista do ensino superior
nacional?
De então até agora, multiplicaram-se as
faculdades e as universidades, nomeadamente nas áreas em que fomos
pioneiros. Creio que falta apenas neste momento que o Instituto de
Estudos Superiores Militares seja reconhecido com estatuto
universitário e que o seu diretor passe a pertencer ao Conselho de
Reitores. Isto porque estamos num momento de grande crise e é
necessário, a meu ver, repensar e racionalizar a rede nacional de
ensino superior. Tem sido difícil convencer os sucessivos governos
de que a rede nacional engloba a rede pública de universidades e
politécnicos, a que tem de se somar a rede privada e cooperativa, a
rede católica e a rede militar. Sem esta racionalização, que as
próprias circunstâncias do País exigem, não aproveitaremos
devidamente a capacidade que precisamos de ter para enfrentar a
mudança radical que se deu no mundo depois da experiência de
instalação no ensino superior nas antigas
colónias.
Defende uma racionalização integrada e
global?
Tudo tem de passar pela rede. O conceito de rede
está a ser aceite e debatido em profundidade pelo Conselho de
Reitores. Urge fortalecer a rede à luz das dificuldades que
Portugal atravessa e o ensino superior não é imune. É preciso
entender que não há uma rede pública, há uma rede nacional que é
preciso racionalizar. Não menos importante, creio que é preciso
repensar a maneira como o Processo de Bolonha foi aplicado em
Portugal.
Que principais críticas tece a este
processo?
Como sabe entre os argumentos teóricos para
defender este Processo de Bolonha um deles era que o mercado exigia
uma formação mais rápida dos estudantes, mas as circunstâncias
estão a mostrar que foi completamente errada essa perspetiva. Por
outro lado, deu-se muito relevo ao ritmo do ensino (3+2 ou 4+1)
esquecendo-se os outros. Bolonha é ritmo mais melodia. Era
imperioso modificar os programas. Há fatores históricos que
mereciam ser tidos em atenção. O fim do império - não só do
português, mas o do império euromundista (porque os titulares do
poder colonial eram os países da frente marítima atlântica) -
desvalorizou as fronteiras geográficas, passando as fronteiras de
interesse a serem, nos dias de hoje, dominantes. É essa uma das
razões que leva tão frequentemente a falar do globalismo, embora
não haja nenhuma definição fiável. Devemos encaminhar as
universidades para aquilo que o ex-reitor da Universidade de
Coimbra, Fernando Seabra Santos e o Reitor da Universidade de
Brasília (NDR: Naomar de Almeida Filho) chamaram num livro,
que eu prefaciei, editado em dezembro, de «a quarta missão» da
universidade.
No que é que se traduz essa «quarta
missão»?
As universidades, até há pouco, fixavam-se nas
exigências do país, até porque as fronteiras eram geográficas.
Hoje, tudo mudou e deparamo-nos com as fronteiras não geográficas
do globalismo, que ficam algures. E este cenário não existe só nas
universidades, passa-se na Defesa, Segurança, nos mercados, etc. Os
novos horizontes exigem uma nova consideração, nomeadamente na
definição dos currículos, definição das profissões, no
esclarecimento à juventude para que ela decida em liberdade
informada qual é a via que deve optar e, ao mesmo tempo, além desta
visão universal, há uma perspetiva particular em relação ao país:
até fins do século passado, os estudos da ONU, sobretudo do PNUD
(Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), referiam-se a
países abaixo do Sahara. Neste momento, a fronteira da pobreza
passou para o norte do Mediterrâneo. Portugal está na fronteira da
pobreza. Foi abrangido por essa fronteira. Por isso, faz parte da
«quarta missão» da universidade. É preciso conciliar e racionalizar
o desafio que é global, com a absoluta necessidade de resgatar o
país da situação de pobreza em que se
encontra.
Como é que vê o fenómeno da fuga dos
nossos jovens mais qualificados para o
estrangeiro?
Para começar, acho um erro que um membro do
governo incite à emigração os nossos melhores. Mas também acho que
as pessoas têm o direito e o dever de procurar assegurar o seu
futuro e dos seus descendentes pelos quais são responsáveis.
Mas o meu maior lamento é que os 80 ou 90 por cento de
diplomados que conseguem colocação profissional no estrangeiro vão
ser empregados por conta de outrem. O país precisa é de iniciativa
e é cá. Não estou a criticar que eles vão, não pode é ignorar-se
que o maior capital que nós temos, que é o saber e o saber fazer,
vai ser colocado à disposição de outrem. Vai ser empregado, em vez
de impulsionar a dinâmica empresarial dentro de
portas.
Eu acredito que o país precisa da mentalidade do
Eusébio. Explico: O ex-jogador do Benfica deu uma entrevista onde
revelava como é que conseguiu marcar um golo na baliza adversária
de um ângulo quase impossível. Com uma franqueza desarmante, ele
respondeu: «Vi buraco» (risos). É isto de que o país precisa.
Iniciativa e capacidade de assumir o risco. Não é seguindo o
caminho que estamos a trilhar que vamos vencer a crise que nos fez
arrastar para a fronteira da pobreza.
Os portugueses são reconhecidamente
ótimos profissionais quando demandam outras paragens. Não é
positivo marcar uma imagem de prestígio
além-fronteiras?
Não tenho dúvidas que estes nossos emigrantes vão
ter sucesso, só que provavelmente não voltarão e, o mais grave, vão
trabalhar por conta de outrem. O país empobrece. Sabe que eu sou
muito crítico de os portugueses serem muito sebastianistas, porque
acho estranho que tenham escolhido para patrono um rei que foi
vencido. Eu sou mais partidário do Bartolomeu Dias. Porquê? Porque
ele dobrou o Cabo da Boa Esperança e teve de virar para trás.
Teimoso, acompanhou a viagem do Vasco da Gama, mas tinha ordem para
voltar. Não voltou. Foi na viagem do Pedro Álvares Cabral. O barco
foi ao fundo e ele morreu no mar, sem chegar à Índia. Eu escrevi
num livro, «Bartolomeu Dias, um grande marinheiro que morreu,
tentando». Porque ele estava à procura do «buraco», o mesmo que o
Eusébio viu e marcou…
Disse que o Estado «entrou em licença
sabática», em 1974, referindo-se à desregulação que existiu na
homologação de cursos. O processo pioneiro de fusão entre a
Universidade Clássica de Lisboa e a Universidade Técnica vai
representar um ponto de viragem no
setor?
Naturalmente até pelas funções que desempenho,
visto que sou presidente do conselho geral da Universidade Técnica,
sigo este processo com especial interesse. Considero que é
oportuno, apropriado e esperamos benefícios disso. Sugeria para
meditar bem sobre esse assunto o seguinte: Já imaginou o tempo que
levou na evolução das universidades reunir com a mesma dignidade o
saber humanístico ao saber das ciências duras? Até ao século
passado as faculdades de humanidades eram as mais importantes.
Neste momento estão a ser secundarizadas e isso é um dos elementos
da crise mundial e do tal globalismo que atrás mencionei. Porquê?
Os valores essenciais foram ultrapassados pelos valores
instrumentais. Eu costumo dizer que substituímos o valor das coisas
pelo preço das coisas. Levou muito tempo a que as ciências exatas e
técnicas fizessem parte da universidade. Em Portugal, por exemplo,
é o que explica que a Universidade Técnica seja uma verdadeira
federação, porque foram escolas que nasceram completamente
separadas em ministérios e que posteriormente foram reunidas numa
entidade chamada Universidade Técnica.
De que forma esse novo «xadrez»
universitário vai ter consequências
sociais?
Primeiro ponto: A Europa procura, entre outras
coisas, evitar o conflito de gerações em matéria de saberes. Por
isso, começam a aparecer tantos cursos para a terceira idade, para
minimizar o corte de saber entre gerações. Segunda perspetiva:
depois de se ter ultrapassado a separação entre disciplinas, com a
reiterada insistência na interdisciplina, o desafio atual que se
coloca estou em crer que é mais severo: a transdisciplina. Por
isso, é enriquecedor que esta fusão tenha unidades que sejam
possuidoras de todas as valências. A fusão da Técnica com a
Clássica cria uma universidade com todas as valências, como já
existe na do Porto.
O processo está a correr com plena concordância,
com fácil adesão dos intervenientes e imagino que vamos ter o
projeto concluí-do em breve.
Qual a relevância de esta vir a ser a
quarta maior universidade da Península Ibérica em número de alunos,
com 48 mil?
É relevante, mas o fundamental é o facto de todas
as valências estarem agregadas. Parece-me uma plataforma
indispensável e que se espera seja de utilidade, especialmente no
que diz respeito à «quarta missão», no aspeto em que a universidade
precisa de dar uma contribuição determinante para que Portugal saia
da fronteira da pobreza.
A democratização do acesso ao ensino
superior está ameaçada pela crise económica e financeira. Podemos
regredir para uma elitização do acesso ao
ensino?
Isso é um problema. Eu acho que esta crise foi
causada pelos erros da civilização ocidental e não especificamente
por Portugal ou pela Europa. É o ocidente que está em causa. Os
próprios Estados Unidos estão a ser atingidos. Veja que houve uma
espécie de teologia do mercado que veio transformar-se em premissa
de todas as atividades. É por isso que há uma anarquia na definição
de quem é que manda e estabelece diretivas na própria estrutura
europeia. Isto para lhe dizer que a filosofia do mercado também
invadiu a área do ensino. Se ler os relatórios publicados do antigo
CNAVES (Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior),
entidade a que eu presidi, encontra lá frequentes advertências de
que se está a transformar o ensino numa atividade subordinada à
filosofia de mercado.
A
obrigação de pagar propinas insere-se nesta
filosofia?
Quando se chama às propinas receitas próprias
deve entender-se que estamos a falar de taxas que são do direito
financeiro. Isto transforma o aluno em cliente e eu não consigo
olhar para alunos meus e considerá-los clientes. Há uma espécie de
mentalidade que muda. O tema que o ensino é uma questão de
soberania deve ser debatido com maior frequência. É evidente que a
soberania muda, é evidente que tem de existir uma relação entre
meios e objetivos. É evidente que Portugal passou por um processo
de degradação que nos tornou, em primeiro lugar, um país exógeno,
ou seja, sofreu consequências de acontecimentos em que não tinha
participado. Na guerra de 1914-18, que foi custosíssima para o
país, não tivemos parte nas causas, mas nos efeitos participámos de
maneira severa. Depois, na guerra de 1939-45, não participámos nas
causas, mas sofremos as consequências. O país precisa de olhar para
isto. ;
Como podemos escapar ao condicionamento
dos fatores exógenos?
Á medida que a sociedade se tornou complexa, o
Estado português evoluiu de forma clara para o «Estado exíguo»,
inclusive cheguei a publicar um livro com esse nome. E isso
significa falta de proporção entre recursos e objetivos. Não se
olhou para isso e neste momento o país está em regime de
protetorado. O que não podemos suprimir é o Estado Social porque na
Constituição Portuguesa não é imperativo, é um principiologia.
Suprimir o Estado Social seria atirar a esperança pela janela. Não
se pode fazer.
O «Estado exíguo» de que fala pode ser um
país irrelevante?
Por vezes é. Aquando da última definição dos
impérios da Europa sofremos o ultimato (1890). Quando foi da guerra
de 1939/45 sofremos uma espécie de ultimato e tivemos de corporizar
a situação de «neutralidade colaborante», que provavelmente nunca
mais se repetirá. Mais recentemente, na guerra do Yom Kippur, os
Estados Unidos também fizeram a imposição, tal como em 1939/45,
para passar pelos Açores.
Assiste-se a uma crescente subjugação das
pequenas nações às grandes
potências?
Repare, estamos a assistir a este fenómeno
interessante: a hierarquia das próprias potências está a
modificar-se. As superpotências denominam-se como tal porque têm
capacidade militar e financeira. Neste momento, nomeadamente em
tempo de paz, quem prevalece é quem tem capacidade financeira. O
caso da Alemanha é evidentíssimo. É por isso que Portugal tem o
maior interesse na estrutura europeia.
Diz que a Europa é o nosso único amparo.
Quer concretizar?
A Europa é para Portugal o centro do nosso apoio
externo. Neste momento quem tem dimensão para estar no Conselho de
Segurança da ONU não é a França, nem a Inglaterra. Nenhum destes
países tem capacidade para enfrentar o globalismo. É a Europa como
um todo, se se mantiver unida. O pior é que a Europa está a perder
influência na cena internacional.
A Europa
corre o risco de se tornar um museu onde o resto do mundo vem
apenas visitar como meros turistas?
Se vierem…A Europa não está a cumprir os
princípios dos homens que a fundaram, que acho que tinham uma certa
aura de santidade. Os criadores da Europa tinham saído de uma
guerra terrível e tiveram o engenho de transformar sofrimento em
sabedoria. Eles perceberam que precisavam de se unir. Estou em crer
se os princípios de solidariedade forem feridos a Europa perde a
voz no mundo. A Europa tem que se afirmar como um bloco forte e
representativo de uma região, como acontece na América do Sul, em
África e até no Oriente, onde tem emergido um regionalismo poderoso
e que tem capacidade de representação. Se o «velho continente»
perder a unidade, também perde a voz. O que acontece é que as
lideranças europeias são muito fracas e ainda o são mais quando
evocamos as vozes encantatórias que foram as dos fundadores da
Europa, depois de dois conflitos em que morreraram 50 milhões de
pessoas. Extraordinário. Onde é que estão essas vozes inspiradoras,
neste momento? Não temos.
O projeto europeu ainda corre riscos de
sobrevivência?
Acontece com os países o que acontece também
muito frequentemente com as pessoas. Eles conservam a convicção da
sua superioridade quando já não a têm e é isso que em grande parte
explica a composição atual do Conselho de Segurança da ONU e até a
ausência das Nações Unidas em situações recentes
fundamentais.
As Nações Unidas têm feito tudo o que
está ao seu alcance?
Toda a gente aponta que a crise económica e
financeira é mundial. Ouviu que tenham convocado o Conselho
Económico e Social da ONU? Eu não. Se a crise é mundial, devia ter
sido convocado. Não quero atribuir as culpas ao secretário geral da
ONU, até porque ele tem o problema da gestão dos recursos. Mas
repare que o emblemático «Programa do Milénio» também não será
realizado. Os objetivos enunciados na conferencia do Rio de Janeiro
também muito dificilmente serão alcançados. Eu por vezes digo,
admito que algo exageradamente, que as Nações Unidas parecem
evolucionar para tempos de oração a um deus desconhecido. É há
problemas que subsistem se nada for feito. Relativamente à paz, a
fome é tão ameaçadora como a bomba atómica. Os próprios Estados
Unidos já dão mostras da falta de recursos. Quem são os donos da
dívida soberana americana? A China. Por isso é que os americanos só
têm olhos para o Pacífico. Deixe-me recordar-lhe que ainda há pouco
a imprensa americana ficou muito alarmada com o facto de os
chineses terem colocado o primeiro porta-aviões no mar. Quem dá
este passo está a fazer grandes progressos do ponto de vista da
capacidade estratégica. E quem consegue aliar a capacidade
estratégica à capacidade financeira só pode ser uma grande
potência. A China vai a caminho disso.
Direcionando a conversa para assuntos
domésticos. Disse que «o credo dos mercados suplantou o credo dos
valores». Pode dizer-se que este governo ganhou os mercados, mas
perdeu o país?
Perdeu-se a escala de valores. A atitude da
civilização ocidental guiava-se por valores essenciais que
resumíamos na ideia da dignidade humana. Eu digo que cada homem,
cada mulher, é um fenómeno irrepetível na história da Humanidade, o
que faz de cada um de nós um valor único. Os valores instrumentais
dizem respeito ao saber fazer e neste momento, o que acontece, é
que o valor das coisas está substituído pelo preço das coisas. De
tal maneira, que os homens começam a ser traduzidos em números. É
uma espécie de voltar a ter confiança nas comunicações sem fios,
porque a estatística é uma comunicação sem
fios.
O aumento da carga fiscal para níveis
nunca visto é a redução dos objetivos a
números?
Não é possível dizer que é possível aumentar os
impostos até onde for necessário. Eu entendo que há um limite para
a carga fiscal. Numa entrevista televisiva perguntaram-me se eu
achava que este aparente pacifismo da população que protestava não
podia, um dia, descambar para a violência? A minha resposta foi
esta, que mantenho: a fome não é um dever constitucional. Portanto,
há um limite, que é a fadiga tributária.
Como é que os seus valores
democratas-cristãos, a sua matriz politica, têm vindo a lidar com
estas políticas neoliberais?
Deixe-me responder-lhe voltando ao Estado Social.
Desde o Concílio Vaticano II que apareceu o apoio ao Estado
social e colocou em evidência a responsabilidade dos pobres. O
limite da dignidade humana devia ser um valor fundamental das
democracias cristãs. Por isso é que sou frontalmente contra a
supressão do Estado Social. E deixe-me fazer uma ressalva: o Estado
Social resulta de uma convergência da Doutrina Social da Igreja com
o socialismo democrático e até com o "Manifesto" do Karl Marx. Eu
já desenvolvi o que costumo chamar, o poder da palavra contra a
palavra do poder. O consequencialismo disso é sempre imprevisível.
Acha que o Karl Marx imaginou o que aconteceria na Rússia quando
escreveu o "Manifesto"? Não creio.
Foi deputado e vice-presidente da
Assembleia da República. A desconfiança entre eleitos e eleitores
significa que o sistema carece de uma renovação democrática com
epicentro no Parlamento?
O país tem definitivamente de encontrar uma
reconciliação com a figura do Chefe de Estado, que não existe desde
a morte do Rei D. Carlos. O Presidente da República não precisa de
aumentar os seus poderes, precisa é de aumentar a autoridade. A
autoridade do Supremo Magistrado da Nação precisa de ser reforçada.
É um aspeto fundamental. Em segundo lugar, as eleições para o
Parlamento não estabelecem um vínculo entre deputados e eleitores,
porque as pessoas votam é em partidos. Creio que é nuclear
fortalecer essa relação e isso só é concretizável se os deputados
forem escolhidos através de uma eleição pessoal, com
responsabilidades perante os eleitores.
Os 230 deputados que têm assento em S.
Bento deviam ser reduzidos?
Acho que o número de deputados não devia de ser
tanto, isto apesar do argumento de que algumas correntes não teriam
representação no Parlamento. Mas há muitas correntes e movimentos
que não estão neste momento representados em S. Bento. Por
isso, não vejo que isso obste a uma mudança. A definição tem que
ser feita com sabedoria, para que as forças politicas sejam
coerentes internamente, mas plurais.
Um tema que lhe é muito caro é a
definição do Conceito Estratégico Nacional, que afirma que não
existe. Que desígnios são, para si, decisivos numa perspetiva de
futuro: a educação, o mar ou a
Lusofonia?
Antes de mais, entendo que a definição do
Conceito Estratégico Nacional tem sido confundida com o Conceito
Estratégico de Defesa e Segurança, que vai ser discutido da
Assembleia da República. Para se ter um Conceito Estratégico de
Defesa e Segurança preciso de dizer ao país o que é que ele tem de
defender e qual é a segurança que precisa. Se ler na crónica de
Zurara que relata a reunião que o D. João I teve com os filhos
antes de decidir ir para o mar verificará que foram fixados
objetivos e avaliada a relação entre capacidade e objetivos.
Isto para dizer o seguinte: Para além de precisar do amparo da
Europa, Portugal tem janelas de liberdade, como os outros países
têm.
Quais são as «janelas de liberdade» de
Portugal a que se refere?
A CPLP é uma delas. Todos os países que a compõem
são pobres, exceto o Brasil, que tem uma imensa população, são
todos marítimos, no fundo, todos precisam do mar. Lamento que o
conceito de reserva estratégica alimentar, que antigamente se
ensinava na instrução primária, tenha sido esquecido. Eu entendo o
seguinte: a terra que não se pisa, e a água que não se navega,
deixa de ser nossa. É preciso defender o território e o mar. Não
ouve discutir a plataforma continental que é a riqueza futura de
Portugal se efetivamente as Nações Unidas reconhecerem que é
propriedade nossa. É a maior do mundo e é riquíssima. Os estudos
das universidades dos Açores, de Aveiro e do Algarve são
importantíssimos na discussão sobre a importância do mar que os
jornais começam a dar eco com alguma
frequência.