Rui Rio, economista
«Se fossemos mais organizados e rigorosos, éramos um povo fantástico»
É nele que muitos
apostam para altos voos políticos. Em entrevista exclusiva, Rio não
abre o jogo quanto ao seu futuro, mas revela algumas das suas
ideias para o país. De corpo inteiro.
Foi recentemente lançada uma biografia
autorizada chamada «Rui Rio - De corpo inteiro», que aborda a sua
vida política e pessoal, com especial destaque para os três
mandatos em que esteve na Câmara Municipal do Porto. Anteriormente,
já tinha estado como deputado no Parlamento. A maior proximidade
entre eleitos e eleitores que existe no poder local potencia, em
simultâneo, as responsabilidades de quem exerce o poder e o
respetivo escrutínio?
Não tenho dúvidas nenhumas sobre isso. O escrutínio
direto sobre os presidentes de câmara é muito maior do que sobre os
deputados. Os deputados são eleitos numa lista fechada e isso leva
a que o voto seja mais no partido e menos no deputado em concreto,
enquanto que nas eleições autárquicas a personalidade do candidato
conta mais do que o emblema partidário. Por isso mesmo, na sua
atuação diária, o autarca está muito mais ligado ao eleitor do que
o deputado o está. E estou convencido que mesmo que se alterasse a
forma de eleição dos deputados, seria sempre assim dada a natureza
das funções e dos órgãos em causa; Câmara Municipal versus
Assembleia da República.
Concluiu-se que os seus 12 anos de gestão na
Câmara do Porto deram lucro e não fosse a construção do Estádio do
Dragão para o Euro 2004 o balanço seria ainda mais auspicioso.
Sente-se ofendido quando lhe chamam
contabilista?
Mais do que lucro, o que está em causa é
superavit orçamental, ou seja, gastar menos do que o que
se recebe, para dessa forma ser possível pagar a dívida em vez de a
aumentar. Foi bom terem-me chamado contabilista, porque a crítica é
tão disparatada que reverteu a meu favor. Conseguiu-se organizar os
serviços, investir muito, tornar a cidade mais competitiva e, ao
mesmo tempo, reduzir fortemente o passivo. Isto foi tão evidente. E
quando as críticas agridem o evidente, quem ganha é o criticado. A
somar a isto, teve um País em bancarrota, o que só dá razão a quem
sempre disse que não nos podemos endividar para lá do
sustentável.
Estudou no Colégio Alemão o que lhe
confere uma formação de matriz germânica. É das raízes educativas
que lhe advém o seu rigor e retidão de processos ou foi o ambiente
familiar que pesou muito sobre a sua forma de ser e estar na
vida?
Acho que a minha forma de ser e de estar na vida
surge fundamentalmente de quatro fatores: a educação que os meus
pais me deram, a formação académica que tive no Colégio Alemão e na
Faculdade de Economia, as experiências que fui tendo na vida e, o
mais importante, as minhas próprias características; o que já
nasceu comigo e comigo vai morrer.
Não é novidade que os portugueses são dos
melhores em diversas áreas, ciência, saúde, investigação, artes,
etc. Falta à alma portuguesa o pragmatismo
germânico?
Falta! À nossa criatividade, à nossa simplicidade,
à nossa sociabilidade, à nossa latinidade, falta algum rigor, algum
método e alguma disciplina. Se fossemos mais organizados e mais
rigorosos, eramos um povo fantástico. Facilmente distorcemos, na
prática, aquilo que antes pensamos e programamos; isso às vezes até
é um ato de inteligência e bom senso, mas, na maioria das
situações, é por falta de rigor e de disciplina.
A vida política tem estado envolta em
escândalos, promiscuidades e muitas suspeições. Pela via do ato de
decidir no poder estar associado a muitos interesses e pressões,
admite que os políticos, de uma forma geral, ficam atemorizados com
a ideia de transparência e boas contas?
Há muito poucos políticos, ou seja, pessoas que
sempre e apenas fizeram política. O que há, são pessoas. Tem-se
trocado os denominados políticos e a seguir fica tudo na mesma do
ponto de vista da imagem pública e da aceitação junto do povo. Nós
precisamos de mudar o sistema, de molde a que ele passe a ser outra
vez capaz de atrair pessoas com características diferentes daquelas
que hoje atrai. Aí é que está a questão de fundo. O sistema foi-se
desgastando com o tempo e moldou-se de uma tal forma que não atrai
quem devia atrair. Blindou-se em torno do que se adequa a uma dada
forma de fazer política. E essa dada forma, tem muitos pontos de
divórcio com a sociedade. Por isso, é óbvio que temos de mudar.
Quanto antes!
Defende que o regime nascido no 25 de abril
carece de reformas profundas. Em que setores identifica as maiores
urgências de mudanças?
É fundamental reformar o sistema político, reformar
a Justiça e responsabilizar mais a comunicação social, em ordem a
reforçar a defesa dos direitos dos cidadãos e a própria liberdade.
Porque a liberdade não é infinita; a minha liberdade termina à
porta da liberdade dos outros, e a comunicação "social" raramente o
entende. Também temos de reformar o Estado, seja do ponto de vista
da gestão, seja do ponto de vista político. No entanto, se me
perguntar qual a reforma que eu poria em primeiro lugar, eu diria:
a mais difícil, ou seja, a Justiça.
Muitos afirmam que a justiça e a educação são
os grandes fracassos de 40 anos de democracia. Concorda? O que é
preciso transformar nestes setores
específicos?
Concordo que a Justiça é, de longe, o grande
fracasso do pós-25 de abril. Aliás, acho que, no fundo, o 25 de
abril praticamente não chegou à Justiça. Quanto à educação, já não
tenho exatamente a mesma opinião. Acho que o nosso sistema
educativo está longe de estar bem - também por responsabilidade da
UE - mas não considero que deva ser eleito como um grande fracasso.
Olhe que antes do 25 de abril, e mesmo logo a seguir, havia coisas
muito más. Havia um ensino demasiado distante da realidade e muito
pouco criativo.
Defende que não é possível reformar sem que haja pelo
menos um consenso político. Para chegar a esse desiderato, crê que
são precisos novos políticos ou novas políticas?
Sem consenso político nunca haverá qualquer reforma pacífica
em matérias de regime. Isso é evidente, porque tal não é possível
fazer com maiorias simples. Para chegar a esse desiderato não são
necessárias novas políticas, porque isso é precisamente o que, no
fundo, se pretende ter como output da reforma do regime. O que são
necessários são novos protagonistas. É necessário que cheguem a
cargos decisivos no sistema político português pessoas que tenham
consciência desta necessidade e que tenham sentido de Estado para
que, em nome do interesse coletivo, sejam capazes de pôr os seus
pequenos interesses de lado. Pela via pacífica, não vejo outra
forma.
Fala-se muito em fiscalidade, mas a verdade é
que em Portugal continuam a ser escassas as contrapartidas que
recebemos pelos impostos que pagamos. Por que é que defende que no
IRS se devia privilegiar as vertentes da educação e da
poupança?
A contrapartida é escassa porque uma grande parte
vai para pagamento de juros da dívida pública e para sustentar
serviços com muito baixa produtividade e muita burocracia. Dado o
valor estratégico da educação, acho que devia haver um maior
incentivo em termos de IRS. Alguém que tem os seus filhos no ensino
privado está a pagar a escola pública via impostos e não está a
usufruir nada. Está ainda a ajudar a potenciar uma melhor escola
pública, porque quantos menos alunos cada sala de aula tiver,
melhores condições há para aprender. Ora estas situações deviam ser
mais reconhecidas fiscalmente. Por uma questão de justiça fiscal,
mas também como incentivo a uma crescente aposta na qualidade do
ensino. Quanto à poupança, devíamos iniciar um trajeto que voltasse
a incutir nos portugueses o gosto pela poupança e pela salvaguarda
do seu futuro. Há uns anos atrás existia essa importante cultura
que, ao longo do tempo, foi sendo capturada por uma sociedade de
consumo profundamente materialista e demasiado virada para o
endividamento.
Defende que o investimento na educação é o
melhor que se pode ter para o futuro do país. Mas o que se tem
assistido é ao encerramento de escolas, cortes na investigação e
bolsas, etc. Vamos pagar caro a austeridade aplicada neste
setor?
Eu compreendo que, em quase tudo, há elementos de
subjetividade e alguma margem de manobra, mas, ao se endividar da
forma estúpida como o fez, o País colocou-se numa posição de enorme
vulnerabilidade. Antes de ter feito as asneiras que fez, devia ter
havia a consciência cívica e o sentido da responsabilidade
suficiente para perceber o que ia acontecer, em face do despesismo
que se instalou em Portugal a partir de 1996. Ora esses cortes que
refere são, no fundo, o resultado desses erros passados. Ou seja -
dito curto e grosso - o condicionamento do nosso futuro que refere
é uma resultante direta da nossa estupidez. Como o meu pai sempre
me disse: «na vida vais puxar sempre, só tens que escolher se é com
a cabeça ou com o corpo». Nós escolhemos puxar com o
corpo.
Lamento não ser original, mas a minha última questão
prende-se com o seu futuro político. Santana Lopes afirmou que o
senhor e António Costa são dois mitos da
política portuguesa. É dos que garante que não sonha com o cargo de
Primeiro-Ministro ou Presidente da República nem que Cristo desça à
terra ou o futuro a Deus pertence?
A vida já me ensinou que,
realmente, «o futuro a Deus pertence», e que nós contamos bem menos
do que gostaríamos na definição do nosso próprio futuro.
Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados