Editorial
A tribo da escola
A escola é um referente tribal, na
verdadeira acepção da palavra: com o seu conselho de seniores
educadores, com os seus jovens aprendentes iniciáticos, a sua
hierarquia de valores, regras estipuladas, ritos de passagem,
cultos e símbolos, cerimónias de integração, regras de exclusão,
mecanismos de coação, deuses e demónios atentos ao menor descuido e
ligações tensas com as outras tribos que com ela disputam o mesmo
tempo e o mesmo espaço…
Nesse lugar, partilhado por tantas
e variadas gentes, as linguagens unificam os diferentes grupos que
se constituem no seio desta complexa comunidade. O vestuário é
utilizado como forma de comunicação integrativa: inclui e exclui
quanto à pertença a grupos distintos e práticas quotidianas. A
música é outro dos elementos identitários. E ajuda a diferenciar as
gerações, as correntes estéticas e as opções políticas e
ideológicas. Assim se constituem e renovam os grupos de pertença e
os grupos de referência.
O movimento corporal, o gesto e a
palavra, a expressão do rosto são canais comunicantes de permanente
uso e que requerem aprendizagem e iniciação. Os valores dos
símbolos materializam-se numa enormidade de objectos,
escarificações, pinturas, adornos e gadgets.
Como qualquer tribo, a escola
estratifica-se em grupos profissionais, culturais, sociais,
ideológicos, religiosos e económicos. Os processos de inclusão são
apertados e os de exclusão podem ser tangencialmente traumáticos.
Daí nasce a força do proteccionismo, mas também da crueldade e do
Bullying, enquanto prática de actos violentos contra os mais
indefesos.
A tribo da escola, ao longo das
gerações, foi elaborando um complexo rol de normas, regras, usos e
costumes que determinam o seu funcionamento. Como a maioria destes
normativos não se encontra redigido, a sua aprendizagem é longa,
penosa e efectuada pelos métodos da tentativa/erro e do
castigo/recompensa. Bem que se diga que nem todos os membros, dos
adultos aos mais jovens, se revêem nestes modelos e padrões e, por
isso, as condutas desviantes ocorrem com muita frequência e são
sujeitas a recriminações, ostracismos e sanções.
Há, sempre, na tribo, alguns
inadaptados. Por natureza são aqueles que não se conformam com as
rotinas ancestrais e querem renovar, inovar e alterar a organização
tribal. São, geralmente, uma minoria muito informada e activa. Mas
o peso da tradição transforma-os em marginalizados e muitos dos
anciães olham para eles com medo, suspeita e malícia e, por isso,
invocam a perigosidade das suas opiniões.
A escola é uma tribo matriarcal. O
conselho dos anciães, dos sábios educadores, é dominado pelo
feminino. E, entre os jovens a socializar, também são as moças que
predominam. A organização da tribo melhorou com esta alteração
demográfica. Tornou-se mais tolerante, mais atenta à diversidade,
mais acolhedora dos novos membros, mais perscrutante das
necessidades individuais e colectivas e, logo, melhor preparada
para enfrentar o futuro.
Ao espaço reservado para as
aprendizagens colectivas, a tribo chama-o de aula. Os jovens não
gostam desse lugar. Na aula, o currículo é muito formal, enfadonho,
repleto de actos mecânicos, repetitivos, sem qualquer utilidade
para enfrentar os desafios que se lhes deparam quando ultrapassam a
orla da tribo e se embrenham na floresta. Aí, vale tudo, todos os
perigos espreitam e os aprendentes nem sempre se sentem preparados,
recorrendo ao improviso e às aprendizagens que receberam, uns dos
outros, nas folias e recreações informais que desenvolviam depois
das aulas.
Os educadores, os anciães da tribo,
apesar de se se sentirem bem preparados, também não se sentem
satisfeitos com os currículos formais que têm que transmitir às
jovens gerações. Também eles se esforçam por mudar os saberes e os
aprenderes, mas nem sempre com sucesso, porque sabem que os seus
educandos terão que transpor os exames dos rituais de passagem que
lhes permitirão assumir o estatuto de membros da tribo, de pleno
direito.
Já os jovens preferem,
indiscutivelmente, os currículos informais e ocultos. É de lá que
sorvem as aprendizagens mais significantes para a sobrevivência no
grupo de pares, na comunidade da tribo, e no mundo global que a
rodeia. Muito desses aprenderes chegam-lhes de fora, através de uma
complexa rede de canais de comunicação que as novas tecnologias
lhes proporcionam, mas que têm que utilizar em segredos contidos,
porque a tribo da escola evita que sejam utilizados. Os anciães
têm-lhes temor, porque é feitiço novo que ainda mal sabem usar.
Esses currículos informais e
ocultos também oferecem aos aprendentes a participação em rituais
de iniciação marginais às regras e normas da tribo. Dizem eles que
são mais gratificantes que os transmitidos no espaço da aula. Por
isso privilegiam os pátios, os recreios, e as clandestinas fugas
para fora das fronteiras da tribo escolar.
A tribo não vive isolada. As suas
fronteiras colam com as de outros clãs que a tentam controlar e
influenciar. Uns são coadjuvantes, e enaltecem o seu papel e o seu
contributo para o bem-estar e o desenvolvimento do domínio
territorial colectivo. Mas, outros, mais conservadores, permitem-se
interferir na organização da comunidade, com a intenção de
controlar as aprendizagens e as prácticas daí decorrentes,
mutilando qualquer inovação educativa que os anciães queiram
experienciar.
A tribo escolar é, pois, uma tribo
global. E é bom que se afirme que a ela se reconhece ser o
fundamento, o alimento e a razão de ser de todas as gerações. Em
boa verdade a tribo da escola é um centro de conflitos e
contradições. Mas são esses embates permanentes, essa luta
dialética de contrários, que fazem surgir o novo e o renascer dos
saberes e dos fazeres que impulsionam o conhecimento, o
desenvolvimento e o bem-estar de todas as outras tribos que com a
escola, felizmente, intercomunicam.