Opinião

‘Pedagogia (a)crítica no Superior’ (XX)
Publicar ou perecer

FotoLSouta2015peq.jpg«Publique! É publicar ou morrer!

É isso que hoje em dia se passa no mundo académico.»

(David Lodge, O Museu Britânico ainda vem abaixo, 1965)

 Muito se tem investigado e escrito sobre a identidade e a condição docente. Mas esses trabalhos técnicos não têm alterado a percepção da generalidade da população sobre este numeroso grupo socioprofissional. «A sociedade portuguesa não reconhece devidamente o valor dos professores», constata o secretário de estado da Educação João Costa ("Ingrato, devia ter evidenciado o contributo para tal da sua correligionária e ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues", segredou-me, mordaz, o Prof.S.). Algumas das especificidades laborais dos professores (tempo lectivo e férias, por exemplo) continuam a ser usadas, com recorrência, como arma de arremesso contra a classe, vista, ainda por largos sectores, como 'privilegiada'. Todavia, o que se circunscrevia à oralidade de vizinhos, amigos e familiares, extravasa agora os muros do bairro ou da 'aldeia' e amplifica-se no escrito desbragado das redes sociais.



Já os docentes do ensino superior têm passado (quase) incólumes a esses enxovalhos, por três razões: (i) são um grupo quantitativamente mais reduzido que os dos restantes níveis de ensino; (ii) o seu histórico capital simbólico continua a assegurar-lhes um outro estatuto social; (iii) o desconhecimento, da população portuguesa em geral, das actividades que eles em concreto desempenham.

Nos documentos legais, que enunciam quer a missão do ensino superior quer os Estatutos das Carreiras Docentes (universitária e politécnica), e no seio da Academia é consensual a tetralogia funcional - leccionação, investigação, prestação de serviços, publicação. A 'baixa' carga horária (6 a 12 horas/semanais) justifica-se pela imperativa necessidade de envolvimento nas outras três componentes.

Só que «antes, a missão dos universitários era pensar. Agora é produzir. (…) A universidade, que oferecia conhecimento, vai virando universidade que oferece serviços.» (Santana Castilho, Público, 13/7/16). E os overheads constituem uma preciosa ajuda no equilíbrio orçamental que a tutela exige. Por outro lado, a qualidade de ensino mede-se, no presente, não na componente pedagógica lectiva (que ninguém se atreve a supervisionar) mas na quantidade de papers apresentados em congressos e/ou publicados em revistas com peer review, número de citações e patentes. Estes são alguns dos critérios tidos em conta, por exemplo, pelo Centro para os Rankings Universitários Mundiais (CWUR); as 'velhas' universidades portuguesas lá aparecem em lugares modestos: Lisboa (275), Porto (331), Coimbra (481); mesmo assim, à frente das 'nova' de Lisboa (581), Aveiro (585) e Minho (595). E são só estas seis instituições que conseguem entrar no 'top mil' deste ranking mundial.

Daí o desiderato de publicação a todo o custo que a (toda poderosa) A3ES, nos processos de avaliação e acreditação, requer dos docentes de cada um dos cursos. As direcções das escolas, por sua vez, criaram as suas próprias revistas online, como forma de contornar o difícil acesso às revistas 'prestigiadas e influentes', de feroz concorrência. E vêm pressionando o corpo docente a publicar, criando até incentivos nesse sentido (apoio financeiro e/ou redução horária). Mas os resultados tardam. Porque tais estímulos são irrisórios nos seus montantes (o instituto do Prof.S. atribui 500 euros quer se publique um artigo ou um livro!) e porque, também aqui, o envelhecimento do corpo docente deixa a sua marca de inércia (andam mais preocupados com a reforma, que nunca mais vem, do que com essa corrida desenfreada pelo mundo editorial académico). A tão desejada lufada de escrita-a-metro poderia ser trazida pelos jovens doutorados - paper generation - mas, como toda a juventude, andam-lhes a adiar o futuro: a entrada no chamado 'mercado de trabalho' vai-se protelando porque não se abrem concursos ou, quando os há, são para seniores que penaram, ao longo de décadas, na precariedade da não progressão.



Este clima institucional do 'publicar ou perecer' levou tempo a chegar à pátria lusa e a inquinar o nosso pequeno mundo académico. David Lodge, no seu humor crítico, dá-nos conta dos primórdios dessa cultura, no Reino Unido dos anos 60. Também o Prof.S. me confidenciou um caso passado nos EUA (omito o nome, naturalmente): quando doutorando, contactou um prestigiado scholar que, muito gentilmente, lhe facultou um vasto conjunto de artigos que enriqueceriam o capítulo de revisão da literatura do seu projecto de dissertação. Já a leitura daquele acervo ia avançada quando, ao terminar a terceira página de um desses textos, parou e pensou "Mas eu já li isto…" Foi conferir e constatou que o dito guru havia publicado em revistas diferentes, com títulos distintos, o mesmo artigo! Acontece aos melhores… quando a pressão é alta.

Luís Souta
(Este texto está redigido segundo a “antiga” e identitária ortografia)
luis.souta@ese.ips.pt
 
 
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