‘Pedagogia (a)crítica no Superior’ (XX)
Publicar ou perecer
«Publique! É publicar ou
morrer!
É isso que hoje em dia se passa no
mundo académico.»
(David Lodge, O Museu Britânico
ainda vem abaixo, 1965)
Muito se tem investigado e
escrito sobre a identidade e a condição docente. Mas esses
trabalhos técnicos não têm alterado a percepção da generalidade da
população sobre este numeroso grupo socioprofissional. «A sociedade
portuguesa não reconhece devidamente o valor dos professores»,
constata o secretário de estado da Educação João Costa ("Ingrato,
devia ter evidenciado o contributo para tal da sua correligionária
e ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues", segredou-me, mordaz, o
Prof.S.). Algumas das especificidades laborais dos professores
(tempo lectivo e férias, por exemplo) continuam a ser usadas, com
recorrência, como arma de arremesso contra a classe, vista, ainda
por largos sectores, como 'privilegiada'. Todavia, o que se
circunscrevia à oralidade de vizinhos, amigos e familiares,
extravasa agora os muros do bairro ou da 'aldeia' e amplifica-se no
escrito desbragado das redes sociais.
Já os docentes do ensino superior
têm passado (quase) incólumes a esses enxovalhos, por três razões:
(i) são um grupo quantitativamente mais reduzido que os dos
restantes níveis de ensino; (ii) o seu histórico capital simbólico
continua a assegurar-lhes um outro estatuto social; (iii) o
desconhecimento, da população portuguesa em geral, das actividades
que eles em concreto desempenham.
Nos documentos legais, que enunciam
quer a missão do ensino superior quer os Estatutos das Carreiras
Docentes (universitária e politécnica), e no seio da Academia é
consensual a tetralogia funcional - leccionação, investigação,
prestação de serviços, publicação. A 'baixa' carga horária (6 a 12
horas/semanais) justifica-se pela imperativa necessidade de
envolvimento nas outras três componentes.
Só que «antes, a missão dos
universitários era pensar. Agora é produzir. (…) A universidade,
que oferecia conhecimento, vai virando universidade que oferece
serviços.» (Santana Castilho, Público, 13/7/16). E os
overheads constituem uma preciosa ajuda no equilíbrio
orçamental que a tutela exige. Por outro lado, a qualidade de
ensino mede-se, no presente, não na componente pedagógica lectiva
(que ninguém se atreve a supervisionar) mas na quantidade de
papers apresentados em congressos e/ou publicados em
revistas com peer review, número de citações e patentes.
Estes são alguns dos critérios tidos em conta, por exemplo, pelo
Centro para os Rankings Universitários Mundiais (CWUR); as 'velhas'
universidades portuguesas lá aparecem em lugares modestos: Lisboa
(275), Porto (331), Coimbra (481); mesmo assim, à frente das 'nova'
de Lisboa (581), Aveiro (585) e Minho (595). E são só estas seis
instituições que conseguem entrar no 'top mil' deste ranking
mundial.
Daí o desiderato de publicação a
todo o custo que a (toda poderosa) A3ES, nos processos de avaliação
e acreditação, requer dos docentes de cada um dos cursos. As
direcções das escolas, por sua vez, criaram as suas próprias
revistas online, como forma de contornar o difícil acesso
às revistas 'prestigiadas e influentes', de feroz concorrência. E
vêm pressionando o corpo docente a publicar, criando até incentivos
nesse sentido (apoio financeiro e/ou redução horária). Mas os
resultados tardam. Porque tais estímulos são irrisórios nos seus
montantes (o instituto do Prof.S. atribui 500 euros quer se
publique um artigo ou um livro!) e porque, também aqui, o
envelhecimento do corpo docente deixa a sua marca de inércia (andam
mais preocupados com a reforma, que nunca mais vem, do que com essa
corrida desenfreada pelo mundo editorial académico). A tão desejada
lufada de escrita-a-metro poderia ser trazida pelos jovens
doutorados - paper generation - mas, como toda a
juventude, andam-lhes a adiar o futuro: a entrada no chamado
'mercado de trabalho' vai-se protelando porque não se abrem
concursos ou, quando os há, são para seniores que penaram, ao longo
de décadas, na precariedade da não progressão.
Este clima institucional do 'publicar ou perecer' levou tempo a
chegar à pátria lusa e a inquinar o nosso pequeno mundo académico.
David Lodge, no seu humor crítico, dá-nos conta dos primórdios
dessa cultura, no Reino Unido dos anos 60. Também o Prof.S. me
confidenciou um caso passado nos EUA (omito o nome, naturalmente):
quando doutorando, contactou um prestigiado scholar que,
muito gentilmente, lhe facultou um vasto conjunto de artigos que
enriqueceriam o capítulo de revisão da literatura do seu projecto
de dissertação. Já a leitura daquele acervo ia avançada quando, ao
terminar a terceira página de um desses textos, parou e pensou "Mas
eu já li isto…" Foi conferir e constatou que o dito guru
havia publicado em revistas diferentes, com títulos distintos, o
mesmo artigo! Acontece aos melhores… quando a pressão é alta.