Nuno Júdice, poeta
Se não for a escola a estimular a leitura, dificilmente a criança terá acesso ao livro
Nuno Júdice é um dos mais premiados e
aclamados poetas da atualidade. Define-se como um «operário da
escrita» e considera que o quotidiano que nos rodeia é
inquietante.
Tem oscilado a sua escrita
entre a poesia, o ensaio, e a ficção. No seu último livro, «O café
de Lenine», lançado em meados de fevereiro, faz uma incursão pela
ficção, atravessando várias épocas e recorrendo a personagens de
grandes clássicos da literatura. De forma sintética, o que é que
pode antecipar aos leitores?
«O café de Lenine», tal como outros romances anteriores, é um
cruzamento entre múltiplos planos: memórias, leituras, ficção,
crónica, procurando encontrar uma sequência que dê uma lógica ao
que vai surgindo. Coloco alguns temas que estão ligados ao meu
trabalho teórico, como é o caso da crítica literária ou do romance
como género literários, mas através de um tom irónico que permite
ao leitor interrogar-se sobre os problemas que estão ligados a
essas duas práticas. O meu objetivo foi conseguir uma obra que se
pudesse ler quase que sem interrupção, através de uma relação de um
capítulo ao seguinte que suscita a curiosidade sobre como é que se
vai resolver as situações que vão surgindo. Há também uma crítica a
muitas coisas que fazem parte do nosso mundo actual e que estão a
transformar a vida das nossas sociedades num mundo que está para
além da imaginação do ponto de vista do controlo da liberdade
individual.
Contudo, é na poesia que
assenta boa parte da sua obra. Diz que o poema «é a expressão de
uma intensidade». Como explica que a poesia faça parte integrante
da identidade portuguesa?
Não vou dar explicações metafísicas ligadas ao nosso temperamento
melancólico, nem irei entrar na questão da saudade como parte da
identidade portuguesa. A poesia surge na nossa cultura desde o
início, com a lírica galego-portuguesa, e ao longo dos séculos
tivemos grandes poetas que deram forma ao que se pode considerar
uma visão filosófica do mundo em que vivemos. Camões, Antero,
Pessoa, são apenas três dos maiores; mas para lá disso é verdade
que, quando queremos responder a questões sobre o que somos e o que
vivemos, é na poesia que encontramos essa expressão tratando os
grandes temas como o amor, a morte, o ser.
A poesia portuguesa é
residualmente conhecida no estrangeiro se compararmos com a música,
o teatro ou a pintura. Como justifica esse défice de visibilidade
para o exterior?
Eu não usaria a palavra «residual» porque a poesia não é uma
linguagem acessível a um universo amplo de leitores. No entanto,
queria chamar a atenção para o facto de que o autor português mais
universal é um poeta, Fernando Pessoa, e que neste momento as
traduções de poesia portuguesa - muitas vezes em antologias, mas
também em livros individuais - já se encontram em todos os
continentes. É verdade que o romance tem uma difusão maior,
sobretudo quando pensamos em José Saramago, neste caso apoiado pelo
Nobel, mas também autores como António Lobo Antunes, José Luís
Peixoto, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, entre outros, estão
traduzidos em muitas línguas. No entanto, quando falamos com
escritores ou críticos estrangeiros, o que eles distinguem na nossa
cultura é a sua tonalidade poética e a originalidade dos poetas da
língua portuguesa.
A sua aproximação à poesia
fez-se a partir da rádio. Como foi esse processo?
Nos meus primeiros anos de vida não existia televisão em Portugal,
e havia o hábito de ouvir rádio, que estava ligada a maior parte do
dia. Era por isso inevitável que ouvisse os programas de poesia,
declamada por alguns dos grandes actores da época. Foi isso que me
chamou a atenção para os livros de poesia que havia em minha casa,
e foi também o que me fez escrever os primeiros poemas. O que foi
também decisivo nesse momento foi a associação da poesia à palavra
oral, e nunca pus de lado a atenção a essa oralidade do poema que,
no fundo, é a prova de que ele funciona porque é ao ouvi-lo que nos
apercebemos quer do ritmo quer da musicalidade que são parte
integrante da linguagem poética.
Vivemos num quotidiano
agitado, agressivo e incerto. Para além da realidade que o rodeia o
que é que o motiva a escrever?
Podia dizer que tudo me motiva, mas falando de forma mais concreta
será sobretudo o desejo de deixar um sinal de aspetos da minha
experiência que são o ponto de partida para o que vou escrever, de
memórias de lugares, de pessoas, de situações, e sobretudo do meu
diálogo com outros poetas, de que destaco dois dos mais constantes,
que são Fernando Pessoa e Camões. É verdade que o quotidiano, neste
momento, é inquietante; mas quando me lembro do que era o mundo em
que cresci, com guerra colonial e polícia política, com guerras tão
violentas como a do Vietnam, com o mundo dividido em dois blocos
que por vezes estiveram à beira de um confronto, não vejo
atualmente grande diferença. Há quem fale com algum receio nos
loucos que governam, alguns pontos do mundo actual; mas se
pensarmos no tempo do nazismo, a loucura até atingiu pontos de
horror que não se parecem com os atuais, embora um massacre ou uma
guerra, como as que aqui e ali se vivem, não sejam nunca de
menosprezar. A diferença está em que não há ideologias por trás dos
atuais impérios, mas religiões; e talvez esta mudança seja mais
perigosa do que o que se viveu em épocas anteriores dada a
irracionalidade a que algumas crenças podem conduzir.
Há seis anos editou «A
implosão», tendo como pano de fundo uma Europa em desagregação
social e política. Como explica que o sonho da construção europeia
tenha virado um pesadelo?
Em primeiro lugar, a derrocada do sistema liberal nos Estados
Unidos que provocou uma crise que se alargou à Europa e conduziu à
falência de países e de bancos, agravada pela desastrosa política
alemã de impor aos países do sul uma retração no desenvolvimento em
passo acelerado, com as consequências na proletarização da classe
média e no desemprego. O que poderia ter sido feito com mais tempo
e com mais diplomacia tornou-se uma boa semente para a queda do
ideal europeu e o desastre na emergência de nacionalismos e
radicalismos que a crise migratória veio estimular. Isto tudo, como
é evidente, nasceu de alguns erros, como o alargamento da Europa a
países que ainda não estavam preparados para nela entrar.
Portugal perdeu o seu
império e perspetivou a Europa como o seu novo «el dorado». O que
pode significar para um país periférico e pequeno como o nosso o
falhanço do projeto europeu?
Portugal já viveu longos períodos de costas voltadas para a
Europa, seria outra fase, difícil, como é evidente, mas haveria
capacidade de resistência, Não creio que cheguemos a esse ponto; e
por muito que a Europa colapse em vários aspectos do seu projeto,
de que a possível saída de Inglaterra é um dos sintomas, Portugal
tem uma relação de proximidade com outros continentes que permite
encontrar alguma compensação ao que aí vem. Como escritor visitei
países que vão da China ao México e à Colômbia, passando por
Marrocos e pela África do Sul; e sempre encontrei uma simpatia para
com Portugal que mostra como é possível redescobrir parceiros
quando outros falham.
A cultura é o eterno
parente pobre, com os políticos a relegarem para o fim os
investimentos neste setor. Em que medida é que os anos de chumbo
provocados pela austeridade prejudicaram a cultura
nacional?
Não prejudicaram nem deixaram de prejudicar porque a cultura
sempre foi um ponto marginal na nossa realidade. Apesar de tudo,
criou-se uma rede de espaços culturais que permite compensar o
pouco investimento nos orçamentos. Bibliotecas, cineteatros,
centros de cultura, câmaras municipais, monumentos, podem
constituir pólos de divulgação e de acontecimentos fora dos grandes
centros que são Lisboa e Porto. Há um bom trabalho feito nas
escolas, há também algumas universidades que não esquecem a sua
função de abertura à sociedade, embora nem todas, e estamos muito
longe de poder falar no deserto cultural que em certos momentos
existiu. Claro que nem tudo são rosas: e o papel da imprensa tem-se
revelado muito deficitário e, mais do que atrair para a leitura,
afasta o público do conhecimento dos nossos autores e do
reconhecimento da sua qualidade.
Admite que está a faltar
uma estratégia cultural coerente? Em que pilares devia
assentar?
O primeiro pilar deveria ser uma política coerente de publicação
sistemática e séria dos clássicos portugueses (da Idade Média ao
século XX). Já estivemos pior: neste momento a Imprensa Nacional
tem uma excelente política editorial, há iniciativas editoriais
privadas que vão também nesse sentido, há excelentes edições
digitais, de que destaco a dos Cancioneiros Medievais na sua
integralidade, temos já boas edições da obra de Camões e de alguns
outros clássicos, mas a pergunta é se isto é visível? A resposta é
obviamente negativa porque despareceu uma rede de livrarias em que
estes livros estejam presentes e em que haja uma separação entre o
que é lixo e o que é literatura.
O digital rodeia-nos por
todo o lado e a toda a hora. A força da palavra escrita pode estar
em risco?
Não me parece. A previsão de que a edição em papel estava
condenada não vingou no campo do livro, embora na imprensa esteja a
alastrar com a passagem dos jornais impressos a digitais. Há
consequências no plano da leitura: é completamente diferente ler um
livro podendo voltar atrás, sublinhar, ter uma ideia do tamanho e
do peso do objecto, etc., e olhar para um ecrã em que a palavra é
algo de volátil. Pode ser que o mundo esteja condenado a que isso
suceda, mas será uma perda irreparável.
Costuma ler livros em
suportes digitais ou resiste a prescindir de manusear um livro? As
livrarias físicas, tal como as conhecemos, correm o risco de
extinção?
Nunca li nenhum livro nesse suporte. Quanto às livrarias
eletrónicas, recorro muitas vezes a elas, sobretudo no caso de
livros estrangeiros a que, cada vez mais, não temos acesso, a não
ser quando viajamos. Quanto às livrarias, como já referi, são
fundamentais para o acesso à edição mais recente, embora cada vez
mais não disponham de fundos que permitam aceder a livros de
catálogo que, uma vez passado o pouco período de tempo em que estão
nas prateleiras, são devolvidos. Deveria haver uma política de
apoio quer às livrarias sérias que ainda existem quer à criação de
outras que saiam da esfera dos grandes grupos mais vocacionados
para o livro de sucesso e não para o livro de referência.
Desde sempre se disse que
os portugueses, de uma forma geral, e as crianças, em particular,
têm escassos hábitos de leitura. Com o papel da escola no incentivo
à leitura a nem sempre ter o sucesso desejado, devia competir às
famílias esta função?
Julgo que o apoio principal deverá ser a escola. A relação
familiar, muitas vezes, é escassa devido aos hábitos de trabalho, à
televisão e ao uso cada vez maior das consolas de jogos e dos
smartphones com as redes sociais, para além de que muitas vezes os
pais já não dispõem de bibliotecas a que os filhos possam ter
acesso. Se não for a escola a estimular o gosto pela leitura e a
selecção cuidada das obras sugeridas dificilmente a criança terá
acesso ao livro.
Foi cinco anos professor do
ensino secundário e depois esteve quase duas décadas como docente
na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, até à sua aposentação,
em 2015. Com frequência, visita escolas e debate com alunos e
professores. Da sua experiência, do que lê e do que ouve, qual é a
vitalidade da cultura de ensino atualmente
existente?
Infelizmente, a situação não permite muito otimismo, mas não sei
se não estarei a entrar naquele plano do «dantes é que era bom»
porque dantes nunca foi bom, ou seja, os alunos que entram na
universidade, agora como sempre, têm um grau de preparação e de
conhecimento muito desigual: há os que vêm muito bem preparados e
há outros a quem, se se perguntar quem é José Cardoso Pires ou se
ouviu falar em Vitorino Nemésio reagem como se falássemos chinês. O
meu princípio foi de que, desde a primeira aula, tinha de tratar
todos por igual e ir dando a matéria explicando cada ponto sem me
preocupar sobre o que sabiam ou não sabiam. Espero que este método
tenha funcionado ao longo destes muitos anos; e pelo menos no que
respeita à transmissão do método de compreensão do que é a
literatura e das formas de interpretação do poema ou do romance
tenha tido resultados. De vez em quando, e com muito gosto, vou a
escolas, e verifico que as turmas foram bem preparadas para me
receber e colocar questões. É sempre uma experiência positiva que
sai desses diálogos, e muitas vezes a fase de perguntas colocadas
pelos alunos é mais viva e original do que em sessões destinadas a
adultos em que o silêncio é muito mais difícil de quebrar.
Uma derradeira pergunta. O
que é que ainda falta escrever a Nuno Júdice, ou como se
auto-denomina, a este «operário da escrita»?
É uma questão que não se põe. O que eu escrevo vem na continuidade
de um processo que terá começado quando era criança e escrevi o
primeiro poema. Enquanto o mundo e a vida me questionarem sobre o
sentido do que somos e do que fazemos a escrita faz parte da
procura de uma resposta que, como quando caminhamos para o
horizonte, está sempre mais à frente de nós, uma vez mais visível,
outras menos, mas sempre como um objectivo que, no fundo, é o que
nos faz caminhar.
CARA DA
NOTÍCIA
Livros traduzidos,
prémios conquistados
Nuno Júdice nasceu em Mexilhoeira
Grande, Algarve, a 29 de abril de 1949. Licenciado em Filologia
Românica na Faculdade de Letras de Lisboa e Doutorado em
Literaturas Românicas Comparadas na Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde foi professor de 1976
a 2015. Tem publicados cerca de 33 livros de poesia, 13 de ficção,
10 de ensaio e 5 de teatro, tendo publicado o primeiro livro, A
Noção de Poema, em 1972. O último é «O café de Lenine», dado à
estampa em fevereiro. Está traduzido em diversas línguas,
destacando-se o espanhol, o francês e o italiano. Exerce também com
regularidade um trabalho de tradutor de poesia, em que se destaca
uma antologia de 100 anos de Poesia Colombiana, antologias de
Alvaro Mutis, Pablo Neruda, Emily Dickinson, além de diversas obras
de teatro para serem representadas no Teatro Nacional de D. Maria,
em Lisboa, e de S. João, no Porto, peças de Corneille, de Molière,
de Shakespeare e o Cyrano de Bergerac, entre outras. Coordenou
durante alguns anos os Seminários de Tradução Coletiva da Fundação
Casa de Mateus. Desempenhou alguns cargos na divulgação da cultura
e da literatura portuguesas, de que se destacam ter sido
coordenador para a área da Língua do Pavilhão de Portugal da
Exposição Internacional de Sevilha, em 1992, Comissário da
Literatura quando Portugal foi país convidado da Feira do Livro de
Frankfurt, em 1997, Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal
em França, entre 1997 e 2004, e diretor do Centro do Instituto
Camões em Paris nesse período. A sua obra poética foi amplamente
premiada em Portugal e no estrangeiro, destacando-se, em 2013, pelo
conjunto da sua obra, o XXII Prémio Reina Sofía de Poesia
Iberoamericana. No México recebeu, em 2014, o Prémio Poetas do
Mundo Latino e, em 2017, o Prémio Juan Crisóstomo Doria às
Humanidades, atribuído pela Universidade Autónoma de Hidalgo.
Também em 2017 lhe foi atribuído o prémio Camaiore, um dos mais
prestigiados prémios de poesia de Itália.
Nuno Dias da Silva
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