Bocas do Galinheiro
Mais um olhar sobre o cinema iraniano
Já homenageámos aqui o
cinema iraniano através de um dos seus realizadores maiores, Abbas
Kiarostami. Tivemos na altura oportunidade de lembrar os seus
filmes exibidos em Castelo Branco, ainda no desaparecido Cinema S.
Tiago de tão boas memórias cinematográficas, principalmente nas
célebres, mas pouco frequentadas, sessões das 19 horas. Uma
clientela pouco numerosa, mas fiel, tal como hoje no Cine Teatro,
diga-se.
Desta feita a nossa atenção recai em Asghar Farhadi, a propósito, e
não só, do seu último filme, "Todos Sabem" (2018), exibido este mês
no Avenida. Rodado em Espanha e falado em espanhol, uma língua que
o realizador não domina, havia alguma expectativa sobre o resultado
final desta obra. Posso adiantar que não deslumbra. Com um elenco
de luxo, nada mais nada menos que o casal Penélope Cruz e Javier
Bardem, talvez os dois actores espanhóis com mais crédito fora de
portas (basta lembrar que ambos já arrebataram o Óscar, ela o de
melhor actriz secundária em "Vicky Cristina Barcelona" (2008), de
Woody Allen, mas podíamos também lembrar a sua participação em
"Vanilla Sky" (2001), de Cameron Crowe, ao lado de Tom Cruise,
remake de "De Olhos Abertos" (1997), de Alejandro Amenábar, onde
também entrou, e Bardem também melhor actor secundário pela sua
interpretação em "Esta País Não é Para Velhos" (2007), dos irmãos
Coen, ele que já havia sido nomeado em 2001 para melhor actor em
"Antes que Anoiteça", de Julian Schnabel, no qual interpreta o
escritor e poeta cubano Reynaldo Arenas, nomeação que viria a
receber em 2010 por "Biutiful", de Alejandro G. Iñarritu, para só
recordar estes), Farhadi pega numa pequena povoação algures no
interior de Espanha, onde Laura, Penélope Cruz, que vive na
Argentina regressa para o casamento da irmã, vê a sua filha ser
raptada durante a boda, e é em Paco, Javier Bardem, seu antigo
namorado, que vai procurar, e encontra, apoio para enfrentar o
acontecido. Com o marido na Argentina, é Paco que toma as rédeas
para resgatar a jovem. Pelo meio o tal segredo que todos sabem e
que vai influenciar e de que maneira o desfecho que, também sabemos
qual vai ser. Uma realização que não deslumbra, mas que não está
alicerçada num argumento muito convincente. Não por ser filmado no
estrangeiro, não por causa da língua, mas porque não nos consegue
surpreender. A carga dramática que conseguiu transmitir noutros
filmes, não aconteceu aqui.
Ao contrário, por exemplo, de Abbas Kiarostami, que com a
intensificação das restrições à criação artística impostas na era
Ahmadinejad, faz os seus últimos filmes em Itália, "Cópia
Certificada", em 2010 e em 2012, no Japão, "Like Someone In Love"
(ou lembrar Jafar Panahi que, proibido de filmar, conta o filme em
"Isto Não é Um Filme" ou deambula com a filha em "Taxi", mostrando
o quotidiano de Teerão), Fahradi goza de uma maior liberdade de
expressão e de movimentos, daí que já tenha uma anterior
experiência no estrangeiro com "O Passado"(2013), rodado em França
e em francês, mas aqui com a particularidade de envolver iranianos
que vivem em França. De qualquer forma, apesar de ser um excelente
filme, que também ele anda à volta de um divórcio, mas também de um
regresso, o de Ahamad a Paris, depois de alguns anos em Teerão,
para assinar os papéis do divórcio, uma vez que a sua mulher tem um
novo relacionamento. Claro que nem tudo é simples, antes pelo
contrário, há filhos, de vários casamentos, há dúvidas, há
suspeições, na complexidade das relações que se estabelecem.
Foi com "Uma Separação" (2011), Óscar de melhor filme estrangeiro,
que Asghar Fahradi impôs um reconhecimento para uma obra
consistente (no seu país passou a herói nacional), e em que as
relações conjugais são o cerne do filme, aqui colocadas pela mulher
que pretende sair do Irão, ao contrário do marido que, com o pai
doente, pretende ficar, mas que se vê envolvido noutra disputa com
uma mulher que toma conta do pai e que o acusa de a ter empurrado e
provocado um aborto. Ao pretender uma compensação económica,
sobressaem as desigualdades que existem no Irão: uma classe média
que apesar das novas regras que lhe foram sendo impostas pelo
Estado dos ayatollahs, ainda mantém um nível de vida a que as
classes baixas não conseguem chegar. Mas há ali também um olhar
sobre uma justiça que vai empurrando tardando a decidir. Para
favorecer o homem, desgastar a mulher? Quem sabe. Porém, consumada
a separação, Fahradi mais uma vez não toma partido. Com qual dos
pais a filha vai ficar? Cada qual que decida. Aliás esta
indefinição, este deixar em suspenso o desfecho da trama, é uma
marca que vai deixando nos seus filmes. Não estranha pois que em "O
Vendedor" (2016), volte ao tema do relacionamento conjugal, desta
feita por interposto intruso que surpreende a mulher enquanto toma
banho e das dúvidas que se instalam no marido e do receio dela em
ficar sozinha em casa. Simultaneamente decorrem os ensaios da peça
de Arthur Miller "Morte de um Caixeiro Viajante", em que ambos
participam, criando o realizador/argumentista um paralelismo entre
os personagens da peça e os papéis na vida real, incluindo o
intruso que o homem quer descobrir. E, é nesta sua busca que
provoca a deterioração da sua relação com a mulher, que se agrava,
por força dos preconceitos que afinal mantém. Como nos seus outros
filmes, o tema da discórdia é recorrente, o homem é aqui posto à
prova, numa sociedade em que o peso da religião e da tradição não
só não despareceu como cresceu. Mais um Óscar para Asghar Farhadi e
para uma cinematografia que, apesar das limitações culturais
impostas, consegue suplantá-las com maiores ou menores
artifícios.
Até à próxima e bons filmes!