José Medeiros Ferreira, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros
Somos governados pelo culto da imagem
Já passaram quase 30 anos desde que
esteve no Palácio das Necessidades, mas a sua voz é respeitada e a
sua opinião pesa. Apesar de afastado da política ativa, é uma
espécie de «senador» da nação que conhece os protagonistas de ontem
e de hoje como ninguém. Sem ruturas, mas com muito espírito
crítico, - precisamente o que falta ao país - Medeiros Ferreira
falou sobre o processo europeu, a "troika", os políticos e a
importância da escola como «amortecedor das tensões sociais»
Com a
experiência política que acumula, considera que Portugal,
intervencionado desde há ano e meio, está a viver a maior crise de
que tem memória?
Depois do 25 de abril é seguramente
a maior crise, sem sombra de dúvida. Não só pelas características,
muito especiais e particulares, como pelo tempo. É inédita,
profunda, global e não tem fim à vista. É certo que tivemos outras
crises no passado, mas foram rapidamente ultrapassadas. Havia uma
incerteza ou outra, mas nunca uma ausência de perspetiva total como
na atualidade. Lembro que o FMI esteve em Portugal em 1978 e 1983,
mas existia a perspetiva da adesão à Comunidade Económica Europeia
(CEE) e o desenvolvimento seria favorecido por este passo. O que
realmente veio a acontecer. Tivemos 20 anos de desenvolvimento
económico, social e politico no quadro da comunidade europeia e
desde que entrámos no século XXI uma situação menos propícia,
contexto que se agravou a com a crise de 2008 e a subida das taxas
de juro no ano seguinte.
A
identidade nacional pode sair beliscada de tão prolongada
crise?
Eu acho que pode. Depende muito da
capacidade de resiliência dos portugueses e da capacidade de
espírito critico que os protagonistas económicos, sociais, e
políticos conseguirem desenvolver e manter.
Passividade
e falta de sentido crítico são pecados nacionais?
Faz falta acentuar o espírito
crítico dos portugueses, quer no plano interno, quer no plano
internacional.
Afirmou que
este governo já não será responsável pela elaboração do Orçamento
do Estado 2014. Quer com isso dizer que o executivo faz parte do
problema e não da solução?
Na minha perspetiva, sim. É claro
que o governo está numa situação difícil, mas ele próprio tem
dificultado ainda mais as coisas. Trazia um plano ideológico,
acrítico, simplificado, simplista, que ufanou as velas, digamos
assim, com o próprio memorando de entendimento. Recorrendo a uma
linguagem naval, foi apanhar vento pela popa.
Tem, pelo
menos a atenuante, de este memorando ter sido negociado pelo
governo de Sócrates?
Isso é um fator a ter em conta. O
documento foi negociado por um governo demissionário, com pouco
sentido crítico perante as medidas propostas, e que não estaria nas
melhores condições para entabular essas negociações. Aceitou-se,
sem mais, o que foi apresentado. Neste ponto, admito que este
governo tenha tido má fortuna. Acho que a negociação aconteceu no
pior timing possível - Para um acompanhamento fiel do que se
passou, aconselho a leitura do livro «Resgatados», da autoria de
David Dinis.
Portugal foi o último país a pedir
o resgate e admito que muitos países perceberam o que lhes
aconteceria se assinassem um memorando semelhante ao nosso.
Espanha, Chipre e a Itália tudo fizeram ou estão a fazer para
escapar a uma intervenção externa.
A troika
tem tido dois pesos e duas medidas no caso português e grego?
O ponto é que a troika está confusa dentro de si
própria e as entidades que a constituem têm revelado falta de
entendimento. Esse é mais um motivo que me leva a defender que
devíamos ter mais espirito crítico na nossa frente
internacional.
São raros
os políticos que não apontam o dedo à herança dos que lhes
antecederam. Acontece que em Portugal, temos tido recentemente o
caso de ex-primeiros-ministros que após se demitirem no pleno
exercício de funções, passaram a ocupar cargos de relevo em
prestigiadas instituições internacionais, casos de Durão Barroso na
Comissão Europeia e António Guterres, na ONU. Acha que os políticos
olham mais para as suas carreiras do que para o interesse
nacional?
Não há governo nenhum que não fale
das heranças dos seus antecessores. Relativamente às carreiras
internacionais, temos assistido a uma inusitada concentração de
portugueses a desempenhar cargos internacionais. Vejo esse fenómeno
da emigração política como algo meritório e que é sinal de que a
nossa sociedade produz quadros com competência. Nem tudo é
negativo, apenas lamento que estas pessoas não estejam no país que
os viu nascer, até porque Portugal precisa de bons governantes.
Acha que
não são os melhores que têm passado pelos cargos de decisão
política?
Os políticos avaliam-se na ação. Veja este exemplo: No caso da
escolha por parte do Primeiro-Ministro de Vítor Gaspar para
integrar o executivo de coligação eu nunca teria escolhido para a
pasta das Finanças alguém que estivesse a meio de uma carreira
internacional e que muito provavelmente, após sair do ministério,
regressa a Bruxelas. Isto não tem nada a ver com a pessoa em si,
mas qualquer indivíduo nesta situação terá sempre de ter em conta o
seu percurso profissional.
Defendia
então outro nome que não Vítor Gaspar para as Finanças?
Podia ser alguém que estivesse
menos assimilado pelo paradigma do próprio memorando de
entendimento. Não é nada pessoal com Vítor Gaspar, é apenas uma
opinião meramente política. Ele até podia dar um bom ministro da
Economia e não estaria a negociar diretamente com a troika. Não
estou aqui a fazer lóbi, mas se eu fosse primeiro-ministro deste
governo, atribuía a Paulo Macedo a negociação financeira das
medidas da troika. Possuí características que fazem dele um ótimo
negociador.
Porque é
que chamou a Portugal a «República dos negócios»?
Contextualizando, eu escrevi isso
no VIII volume da Historia de Portugal de José Mattoso, chamado
«Portugal em transe», de 1984. Nessas páginas digo que a nossa
República desde o 25 de abril conheceu uma sucessão de figuras
sociais dominantes. Os revolucionários (1974 a 1976), os políticos
(1976 e 1982), e os empresários (1982 e 1992), altura em que a
banca se abre ao setor privado. Portugal entra no mecanismo das
taxas de câmbio europeias e avança para a livre circulação de
capitais. A partir de então passámos a viver numa «República dos
financeiros». Com a privatização dos meios de comunicação social,
passámos a viver numa «República de financeiros», aliada aos "mass
media".
A
«República dos negócios» ou «bloco central dos interesses» são duas
faces de uma moeda que tem como denominador comum os dois partidos
de sempre a alternarem o poder?
Portugal deixou de crescer no
início do século XXI, mas continuaram a multiplicar-se muitos
negócios. No sentido de estabelecer o contraste entre a falta de
crescimento económico do país e a proliferação dos negócios
acentuei que nos tornámos mais uma «República de negócios» que uma
«República de desenvolvimento ou crescimento». Ou seja, não utilizo
o termo «negócios» no sentido pejorativo. O que eu digo é que esses
negócios não têm sido favoráveis ao crescimento económico do
país.
O regime
político em vigor incentiva essa dinâmica oposta?
Sou favorável à evolução do regime
político em termos executivos para governos que rompessem o ciclo
dos vícios instalados dos negócios e do rotativismo. Eu sou
defensor de um governo intercalar, enquanto a troika «estivesse» em
Portugal, que se poderia denominar de concentração nacional.
No caso de
existir instabilidade política que eventualmente conduzisse à queda
do governo, que solução defende?
Sobre esse assunto confesso que não
tenho uma ideia formada, mas garanto-lhe que não há nenhum país que
viva em democracia e que tenha falta de soluções. Podia ser uma
solução no atual quadro parlamentar ou o recurso a novas eleições.
Uma coisa tenho a certeza: este governo tem de ser afastado.
Foi o
ministro dos Negócios Estrangeiros que pediu a adesão de Portugal à
Comunidade Económica Europeia, que acabou concretizada em 1986…
Ainda não estou
arrependido…(Risos). Acostumei-me a dizer nos primeiros 20 anos de
presença de Portugal na Europa que quando as coisas começassem a
correr mal haviam de se lembrar mais de mim, do que no início. A
ver vamos.
Depois de
20 anos de ilusão, dinheiro fácil, fundos comunitários, surge o
euroceticismo e a Europa vista como causa para os nossos males.
Qual é o seu balanço?
O balanço que faço é que a
oligarquia portuguesa entrou com um espirito demasiado acrítico na
União Europeia, em 1986. Nós tornamo-nos europeístas com a mesma
mentalidade dogmática que fomos colonialistas. Depois, faltou
sentido crítico, faltou estudo sobre a situação internacional e
faltou estratégia própria dentro da União Europeia.
Posteriormente, fomos vítimas do alargamento da União Europeia a
leste?
Sem dúvida. Aliás, Portugal quando
aderiu fê-lo à Europa Ocidental. Existiam preocupações sérias com
aspetos sociais, relacionados com a educação, a saúde, a segurança
social, etc. Esses países sentiam-se obrigados e motivados para
edificar uma política social sedutora.
Com a reunificação alemã, com o
desmantelamento da União Soviética, com a falência dos regimes de
democracia popular dos países de leste e com a abertura da
Organização Mundial do Comércio aos produtos asiáticos, sobretudo,
a União Europeia perdeu o seu centro de gravidade. Portugal
indiretamente acabou por sofrer essas consequências.
Vivemos
demasiado tempo a sonhar com algo que este projeto não nos podia
oferecer eternamente?
Mas eu penso que as coisas correram
bem nas primeiras duas décadas. Nos últimos anos é que têm corrido
menos bem. Porventura pode-se apontar o facto de a União Europeia
não ter sabido negociar convenientemente alguns acordos de
liberalização comercial, como o "Uruguay Round". O mandato dado à
União Europeia para negociar a política comercial comum talvez
tenha sido excessivo, tendo havido falta de cuidado na defesa de
uma transição gradual para certos produtos provenientes da
Ásia.
Esta Europa
padece de um problema de lideranças frouxas, desde a retirada de
Khol e Miterrand?
Repare que o tratado de Maastricht
e a própria União Monetária foram materializados por homens como
Khol e Miterrand e as consequências agora são as que estão à
vista…
Normalmente em situações de crise
emergem grandes estadistas. Já quando a situação é mais rotineira
os líderes afirmam-se mais pelo culto da imagem, que é quase pior
que o culto da personalidade, só que mais inofensivo. No fundo,
somos governados pelo culto da imagem. É por isso que se diz que se
elege um primeiro-ministro. Na verdade, ninguém elege um
primeiro-ministro, mas sim deputados. É pelo regime vigente que
temos que se desencadeiam mais crises políticas. Se a ideia fosse
que o primeiro-ministro fosse escolhido no seio de uma maioria no
Parlamento talvez se percebesse que era possível mudar de governo
sem haver novas eleições.
O percurso
errático da Europa tem dado razão aos que dizem que estamos na
presença de um «gigante económico e um anão político»?
Há falta de solidariedade, mas
creio que a Europa também está a ser vítima da globalização que ela
não domina. E há que reconhecer que a Europa perdeu o pé neste
processo de globalização. A Europa encontra-se cercada por
fenómenos que se houvesse uma governança mundial seriam mais
regrados. É o caso dos mercados financeiros que foram enfrentados
de forma leviana.
A Europa
subestimou politicamente os efeitos da crise financeira de
2008?
Penso que se tratou de uma
consequência das guerras do Iraque e do Afeganistão que foram muito
caras, nomeadamente para os Estados Unidos. Não é por acaso que
ainda hoje se fala do perigo do «abismo fiscal» no outro lado do
Atlântico. Repare que a crise de 2008 levou a que o sistema
financeiro internacional procurasse os melhores pagadores. De entre
todos os devedores, a banca escolheu os estados que davam mais
garantias. Veja que Portugal, a Grécia e a Espanha estão a garantir
o pagamento das suas dívidas, algo que eu duvido que muitas
entidades privadas estejam a fazer perante a banca com a qual
contraíram dívidas e empréstimos.
Há alguns
meses alertava-se que o projeto europeu podia ter os dias contados.
A ação do Banco Central Europeu (BCE) foi o ponto de viragem?
A mudança de rumo implementada pelo
BCE, muito devido à característica resiliente de uma personalidade
chamada Mário Draghi, operou-se, única e só com uma declaração do
presidente do banco central, ao afirmar que estava disposto a
comprar títulos da dívida do mercado secundário. Portugal precisa
muito menos do recurso aos empréstimos do BCE para a sua banca do
que há 1 ou 2 anos. E bastou uma frase apenas, o que distingue uma
boa liderança.
Tem uma
larga experiência como docente e foi até recentemente presidente do
conselho geral da Universidade Aberta. A educação é um setor
atreito a transformações e convulsões, e as mais recentes vieram do
anunciado aumento nas propinas e no corte dos recursos das
faculdades. Há o risco de uma elitização do ensino?
Sempre houve uma tendência para a
criação de dois sistemas de ensino superior. Há até uma
universidade, da qual eu me vou abster de dizer o nome, que admite
que está a trabalhar para criar uma elite de excelência. Creio,
contudo, que de uma forma geral, a universidade portuguesa
correspondeu razoavelmente ao desafio que lhe foi colocado nos anos
80 e 90. Depois, com Bolonha, desorientou-se um pouco. E porquê?
Porque a maior parte das universidades adaptou-se a Bolonha com um
espírito acrítico. Nesse sentido, creio que se perdeu alguma da
independência das universidades. Como defensor que sou da
independência, penso que existiu um retrocesso.
O
pressuposto da racionalização dos meios é um bom ponto de partida
para a fusão da Universidade Técnica e da Universidade de
Lisboa?
Esta crise ensina-nos uma coisa
decisiva: Não podemos voltar a esbanjar meios. É preciso mais
ponderação. Vamos esperar pelo desenlace desse processo que está em
curso. Espero, até porque ambas as universidades têm dois bons
reitores, que deste processo saia um novo impulso. Mas creio que o
ponto de partida para o êxito desta fusão seja a reunião da massa
crítica suficiente para fazer uma grande universidade.
Não estamos
a esbanjar meios intelectuais quando os nossos estudantes
licenciados e doutorados rumam para fora do país?
Sem dúvida, estamos a dar de
bandeja os nossos melhores recursos humanos. Estamos a fazer tudo o
que os outros países que recebem essa emigração querem. Absorvem
jovens muito mais bem preparados do que há 40 ou 50 anos e quem
paga essa formação é o Estado português e os portugueses. Por
muitas críticas que se faça ao sistema de ensino em Portugal a
emigração qualificada baseia-se na formação que foi ministrada
pelas nossas escolas. Trata-se de um investimento na educação que
está a ser desaproveitado. É essa emigração que está a ser chamada
para a Europa e para o estrangeiro. Podia ser um rumo que, em
primeira análise, podia ser prestigiante, mas, no imediato, acaba
mesmo por empobrecer a economia portuguesa.
Curiosamente, são as empresas alemãs e do leste europeu que mais
cobiçam os nossos recém-formados…
A Alemanha nunca escondeu que
queria atrair quadros qualificados para o seu território e
aproveitou-se de uma consequência conhecida de uma zona monetária
que é o seguinte: o fator trabalho segue o fator capital, onde quer
que ele exista. Repare que há muitas vozes no centro da Europa
contra as transferências financeiras que era uma das
características da União Europeia, juntamente com os fundos de
coesão e estruturais, com vista a reter as pessoas nos seus países
de origem. Diminuindo os fundos essas pessoas são obrigadas a
seguir para onde está o investimento e o capital.
O médico
neurologista António Damásio esteve há semanas em Portugal onde
inaugurou uma escola com o seu nome. Disse ele que «não é possível
haver uma sociedade justa e com progresso se não houver educação».
Subscreve?
Mantenho uma certa relação de
afetividade com quem está no ensino em Portugal e discordo,
completamente, da imagem que se formou. Penso que a Escola é muito
pouco estimada em Portugal. E não é de agora, é um sentimento
ancestral. Há uma cultura refratária que penaliza, quase sempre, a
escola pública. Na dúvida, estou ao lado das escolas, porque acho
que têm feito um trabalho admirável. Respondem aos problemas
inerentes à comunidade escolar, para além dos problemas decorrentes
da sociedade, seja dos menores rendimentos das famílias, pelo
afluxo de imigrantes, a desagregação das famílias, etc. A escola
tem vindo a aumentar o seu leque de funções de uma forma repentina,
a que nem a sociedade e o poder político estão a conseguir dar
resposta. São as crianças com fome, a gestão das cantinas, os
jovens imigrantes que mal sabem falar português, etc. A escola está
a funcionar como uma espécie de amortecedor das tensões
sociais.
Os
professores vão conseguir recuperar a autoridade junto dos alunos e
da sociedade?
Houve um certo desvario, com culpas
repartidas entre os professores e a tutela. Eu teria sempre
tendência a negociar. O movimento sindical dos professores não pode
deixar de ser um interlocutor. É preciso corrigir a lógica de ver
no outro um antagonista e entender as partes do sistema numa logica
de cooperação. No atual contexto económico, financeiro e social a
educação será ainda mais determinante. Apesar da filosofia de
economia de meios, que é uma das lições da crise, não é possível
abandonar as populações à sua sorte, retirando-lhes a saúde e a
escola. É preciso ter cuidado para não deitar fora o bebé com a
água do banho.
Para
finalizar e em jeito de remate. Como é que o cidadão José Medeiros
Ferreira vê o futuro do país?
Eu elencaria duas prioridades. A
primeira: terminar a intervenção da troika em Portugal em condições
de reassumir-mos a nossa credibilidade externa. No fundo, levar os
senhores da troika à porta e fazer uma despedida, agradecendo a
ajuda prestada, não deixando de lamentar a elevada alta de juro
cobrada. A segunda prioridade seria definir os volantes em que nos
devemos concentrar, em termos políticos, que podem ajudar ao
crescimento e criar emprego. Agir de forma concentrada e não
difusamente. Apostar, por exemplo, no setor da educação, como fez
questão de afirmar o Presidente da República no discurso do 5 de
outubro. É preciso não esquecer que a formação das pessoas passa
pelas escolas, apesar do investimento neste setor não ter
resultados práticos de uma eleição para outra.
Ainda está
para nascer um líder de governo que, desculpe a expressão, diga e
concretize o «que se lixe as eleições» referido por Passos
Coelho?
Admito que haja apego ao sentido do
serviço. Mas o racional é que o político deva lutar para obter uma
boa votação, como resultado de ter transmitido uma mensagem
credível e aceite pelos cidadãos eleitores.
Nuno Dias da Silva
Tiago Miranda / Expresso