Entrevista

José Medeiros Ferreira, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros
Somos governados pelo culto da imagem

MedeirosFerreiraMaio12DeTiagoMiranda.jpgJá passaram quase 30 anos desde que esteve no Palácio das Necessidades, mas a sua voz é respeitada e a sua opinião pesa. Apesar de afastado da política ativa, é uma espécie de «senador» da nação que conhece os protagonistas de ontem e de hoje como ninguém. Sem ruturas, mas com muito espírito crítico, - precisamente o que falta ao país - Medeiros Ferreira falou sobre o processo europeu, a "troika", os políticos e a importância da escola como «amortecedor das tensões sociais»

Com a experiência política que acumula, considera que Portugal, intervencionado desde há ano e meio, está a viver a maior crise de que tem memória?

Depois do 25 de abril é seguramente a maior crise, sem sombra de dúvida. Não só pelas características, muito especiais e particulares, como pelo tempo. É inédita, profunda, global e não tem fim à vista. É certo que tivemos outras crises no passado, mas foram rapidamente ultrapassadas. Havia uma incerteza ou outra, mas nunca uma ausência de perspetiva total como na atualidade. Lembro que o FMI esteve em Portugal em 1978 e 1983, mas existia a perspetiva da adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) e o desenvolvimento seria favorecido por este passo. O que realmente veio a acontecer. Tivemos 20 anos de desenvolvimento económico, social e politico no quadro da comunidade europeia e desde que entrámos no século XXI uma situação menos propícia, contexto que se agravou a com a crise de 2008 e a subida das taxas de juro no ano seguinte.

A identidade nacional pode sair beliscada de tão prolongada crise?

Eu acho que pode. Depende muito da capacidade de resiliência dos portugueses e da capacidade de espírito critico que os protagonistas económicos, sociais, e políticos conseguirem desenvolver e manter.

Passividade e falta de sentido crítico são pecados nacionais?

Faz falta acentuar o espírito crítico dos portugueses, quer no plano interno, quer no plano internacional.

Afirmou que este governo já não será responsável pela elaboração do Orçamento do Estado 2014. Quer com isso dizer que o executivo faz parte do problema e não da solução?

Na minha perspetiva, sim. É claro que o governo está numa situação difícil, mas ele próprio tem dificultado ainda mais as coisas. Trazia um plano ideológico, acrítico, simplificado, simplista, que ufanou as velas, digamos assim, com o próprio memorando de entendimento. Recorrendo a uma linguagem naval, foi apanhar vento pela popa.

Tem, pelo menos a atenuante, de este memorando ter sido negociado pelo governo de Sócrates?

Isso é um fator a ter em conta. O documento foi negociado por um governo demissionário, com pouco sentido crítico perante as medidas propostas, e que não estaria nas melhores condições para entabular essas negociações. Aceitou-se, sem mais, o que foi apresentado. Neste ponto, admito que este governo tenha tido má fortuna. Acho que a negociação aconteceu no pior timing possível - Para um acompanhamento fiel do que se passou, aconselho a leitura do livro «Resgatados», da autoria de David Dinis.

Portugal foi o último país a pedir o resgate e admito que muitos países perceberam o que lhes aconteceria se assinassem um memorando semelhante ao nosso. Espanha, Chipre e a Itália tudo fizeram ou estão a fazer para escapar a uma intervenção externa.

A troika tem tido dois pesos e duas medidas no caso português e grego?

MedeiroFerreira2Maio12DeTiagoMiranda.jpgO ponto é que a troika está confusa dentro de si própria e as entidades que a constituem têm revelado falta de entendimento. Esse é mais um motivo que me leva a defender que devíamos ter mais espirito crítico na nossa frente internacional.

São raros os políticos que não apontam o dedo à herança dos que lhes antecederam. Acontece que em Portugal, temos tido recentemente o caso de ex-primeiros-ministros que após se demitirem no pleno exercício de funções, passaram a ocupar cargos de relevo em prestigiadas instituições internacionais, casos de Durão Barroso na Comissão Europeia e António Guterres, na ONU. Acha que os políticos olham mais para as suas carreiras do que para o interesse nacional?

Não há governo nenhum que não fale das heranças dos seus antecessores. Relativamente às carreiras internacionais, temos assistido a uma inusitada concentração de portugueses a desempenhar cargos internacionais. Vejo esse fenómeno da emigração política como algo meritório e que é sinal de que a nossa sociedade produz quadros com competência. Nem tudo é negativo, apenas lamento que estas pessoas não estejam no país que os viu nascer, até porque Portugal precisa de bons governantes.

Acha que não são os melhores que têm passado pelos cargos de decisão política?

Os políticos avaliam-se na ação. Veja este exemplo: No caso da escolha por parte do Primeiro-Ministro de Vítor Gaspar para integrar o executivo de coligação eu nunca teria escolhido para a pasta das Finanças alguém que estivesse a meio de uma carreira internacional e que muito provavelmente, após sair do ministério, regressa a Bruxelas. Isto não tem nada a ver com a pessoa em si, mas qualquer indivíduo nesta situação terá sempre de ter em conta o seu percurso profissional.

Defendia então outro nome que não Vítor Gaspar para as Finanças?

Podia ser alguém que estivesse menos assimilado pelo paradigma do próprio memorando de entendimento. Não é nada pessoal com Vítor Gaspar, é apenas uma opinião meramente política. Ele até podia dar um bom ministro da Economia e não estaria a negociar diretamente com a troika. Não estou aqui a fazer lóbi, mas se eu fosse primeiro-ministro deste governo, atribuía a Paulo Macedo a negociação financeira das medidas da troika. Possuí características que fazem dele um ótimo negociador.

Porque é que chamou a Portugal a «República dos negócios»?

Contextualizando, eu escrevi isso no VIII volume da Historia de Portugal de José Mattoso, chamado «Portugal em transe», de 1984. Nessas páginas digo que a nossa República desde o 25 de abril conheceu uma sucessão de figuras sociais dominantes. Os revolucionários (1974 a 1976), os políticos (1976 e 1982), e os empresários (1982 e 1992), altura em que a banca se abre ao setor privado. Portugal entra no mecanismo das taxas de câmbio europeias e avança para a livre circulação de capitais. A partir de então passámos a viver numa «República dos financeiros». Com a privatização dos meios de comunicação social, passámos a viver numa «República de financeiros», aliada aos "mass media".

A «República dos negócios» ou «bloco central dos interesses» são duas faces de uma moeda que tem como denominador comum os dois partidos de sempre a alternarem o poder?

Portugal deixou de crescer no início do século XXI, mas continuaram a multiplicar-se muitos negócios. No sentido de estabelecer o contraste entre a falta de crescimento económico do país e a proliferação dos negócios acentuei que nos tornámos mais uma «República de negócios» que uma «República de desenvolvimento ou crescimento». Ou seja, não utilizo o termo «negócios» no sentido pejorativo. O que eu digo é que esses negócios não têm sido favoráveis ao crescimento económico do país.

O regime político em vigor incentiva essa dinâmica oposta?

Sou favorável à evolução do regime político em termos executivos para governos que rompessem o ciclo dos vícios instalados dos negócios e do rotativismo. Eu sou defensor de um governo intercalar, enquanto a troika «estivesse» em Portugal, que se poderia denominar de concentração nacional.

No caso de existir instabilidade política que eventualmente conduzisse à queda do governo, que solução defende?

MedeirosFerreira3Maio12DeTiagoMiranda.jpgSobre esse assunto confesso que não tenho uma ideia formada, mas garanto-lhe que não há nenhum país que viva em democracia e que tenha falta de soluções. Podia ser uma solução no atual quadro parlamentar ou o recurso a novas eleições. Uma coisa tenho a certeza: este governo tem de ser afastado.

Foi o ministro dos Negócios Estrangeiros que pediu a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, que acabou concretizada em 1986…

Ainda não estou arrependido…(Risos). Acostumei-me a dizer nos primeiros 20 anos de presença de Portugal na Europa que quando as coisas começassem a correr mal haviam de se lembrar mais de mim, do que no início. A ver vamos.

Depois de 20 anos de ilusão, dinheiro fácil, fundos comunitários, surge o euroceticismo e a Europa vista como causa para os nossos males. Qual é o seu balanço?

O balanço que faço é que a oligarquia portuguesa entrou com um espirito demasiado acrítico na União Europeia, em 1986. Nós tornamo-nos europeístas com a mesma mentalidade dogmática que fomos colonialistas. Depois, faltou sentido crítico, faltou estudo sobre a situação internacional e faltou estratégia própria dentro da União Europeia.

Posteriormente, fomos vítimas do alargamento da União Europeia a leste?

Sem dúvida. Aliás, Portugal quando aderiu fê-lo à Europa Ocidental. Existiam preocupações sérias com aspetos sociais, relacionados com a educação, a saúde, a segurança social, etc. Esses países sentiam-se obrigados e motivados para edificar uma política social sedutora.

Com a reunificação alemã, com o desmantelamento da União Soviética, com a falência dos regimes de democracia popular dos países de leste e com a abertura da Organização Mundial do Comércio aos produtos asiáticos, sobretudo, a União Europeia perdeu o seu centro de gravidade. Portugal indiretamente acabou por sofrer essas consequências.

Vivemos demasiado tempo a sonhar com algo que este projeto não nos podia oferecer eternamente?

Mas eu penso que as coisas correram bem nas primeiras duas décadas. Nos últimos anos é que têm corrido menos bem. Porventura pode-se apontar o facto de a União Europeia não ter sabido negociar convenientemente alguns acordos de liberalização comercial, como o "Uruguay Round". O mandato dado à União Europeia para negociar a política comercial comum talvez tenha sido excessivo, tendo havido falta de cuidado na defesa de uma transição gradual para certos produtos provenientes da Ásia.

Esta Europa padece de um problema de lideranças frouxas, desde a retirada de Khol e Miterrand?

Repare que o tratado de Maastricht e a própria União Monetária foram materializados por homens como Khol e Miterrand e as consequências agora são as que estão à vista…

Normalmente em situações de crise emergem grandes estadistas. Já quando a situação é mais rotineira os líderes afirmam-se mais pelo culto da imagem, que é quase pior que o culto da personalidade, só que mais inofensivo. No fundo, somos governados pelo culto da imagem. É por isso que se diz que se elege um primeiro-ministro. Na verdade, ninguém elege um primeiro-ministro, mas sim deputados. É pelo regime vigente que temos que se desencadeiam mais crises políticas. Se a ideia fosse que o primeiro-ministro fosse escolhido no seio de uma maioria no Parlamento talvez se percebesse que era possível mudar de governo sem haver novas eleições.

O percurso errático da Europa tem dado razão aos que dizem que estamos na presença de um «gigante económico e um anão político»?

Há falta de solidariedade, mas creio que a Europa também está a ser vítima da globalização que ela não domina. E há que reconhecer que a Europa perdeu o pé neste processo de globalização. A Europa encontra-se cercada por fenómenos que se houvesse uma governança mundial seriam mais regrados. É o caso dos mercados financeiros que foram enfrentados de forma leviana.

A Europa subestimou politicamente os efeitos da crise financeira de 2008?

Penso que se tratou de uma consequência das guerras do Iraque e do Afeganistão que foram muito caras, nomeadamente para os Estados Unidos. Não é por acaso que ainda hoje se fala do perigo do «abismo fiscal» no outro lado do Atlântico. Repare que a crise de 2008 levou a que o sistema financeiro internacional procurasse os melhores pagadores. De entre todos os devedores, a banca escolheu os estados que davam mais garantias. Veja que Portugal, a Grécia e a Espanha estão a garantir o pagamento das suas dívidas, algo que eu duvido que muitas entidades privadas estejam a fazer perante a banca com a qual contraíram dívidas e empréstimos.

Há alguns meses alertava-se que o projeto europeu podia ter os dias contados. A ação do Banco Central Europeu (BCE) foi o ponto de viragem?

A mudança de rumo implementada pelo BCE, muito devido à característica resiliente de uma personalidade chamada Mário Draghi, operou-se, única e só com uma declaração do presidente do banco central, ao afirmar que estava disposto a comprar títulos da dívida do mercado secundário. Portugal precisa muito menos do recurso aos empréstimos do BCE para a sua banca do que há 1 ou 2 anos. E bastou uma frase apenas, o que distingue uma boa liderança.

Tem uma larga experiência como docente e foi até recentemente presidente do conselho geral da Universidade Aberta. A educação é um setor atreito a transformações e convulsões, e as mais recentes vieram do anunciado aumento nas propinas e no corte dos recursos das faculdades. Há o risco de uma elitização do ensino?

Sempre houve uma tendência para a criação de dois sistemas de ensino superior. Há até uma universidade, da qual eu me vou abster de dizer o nome, que admite que está a trabalhar para criar uma elite de excelência. Creio, contudo, que de uma forma geral, a universidade portuguesa correspondeu razoavelmente ao desafio que lhe foi colocado nos anos 80 e 90. Depois, com Bolonha, desorientou-se um pouco. E porquê? Porque a maior parte das universidades adaptou-se a Bolonha com um espírito acrítico. Nesse sentido, creio que se perdeu alguma da independência das universidades. Como defensor que sou da independência, penso que existiu um retrocesso.

O pressuposto da racionalização dos meios é um bom ponto de partida para a fusão da Universidade Técnica e da Universidade de Lisboa?

Esta crise ensina-nos uma coisa decisiva: Não podemos voltar a esbanjar meios. É preciso mais ponderação. Vamos esperar pelo desenlace desse processo que está em curso. Espero, até porque ambas as universidades têm dois bons reitores, que deste processo saia um novo impulso. Mas creio que o ponto de partida para o êxito desta fusão seja a reunião da massa crítica suficiente para fazer uma grande universidade.

Não estamos a esbanjar meios intelectuais quando os nossos estudantes licenciados e doutorados rumam para fora do país?

Sem dúvida, estamos a dar de bandeja os nossos melhores recursos humanos. Estamos a fazer tudo o que os outros países que recebem essa emigração querem. Absorvem jovens muito mais bem preparados do que há 40 ou 50 anos e quem paga essa formação é o Estado português e os portugueses. Por muitas críticas que se faça ao sistema de ensino em Portugal a emigração qualificada baseia-se na formação que foi ministrada pelas nossas escolas. Trata-se de um investimento na educação que está a ser desaproveitado. É essa emigração que está a ser chamada para a Europa e para o estrangeiro. Podia ser um rumo que, em primeira análise, podia ser prestigiante, mas, no imediato, acaba mesmo por empobrecer a economia portuguesa.

Curiosamente, são as empresas alemãs e do leste europeu que mais cobiçam os nossos recém-formados…

A Alemanha nunca escondeu que queria atrair quadros qualificados para o seu território e aproveitou-se de uma consequência conhecida de uma zona monetária que é o seguinte: o fator trabalho segue o fator capital, onde quer que ele exista. Repare que há muitas vozes no centro da Europa contra as transferências financeiras que era uma das características da União Europeia, juntamente com os fundos de coesão e estruturais, com vista a reter as pessoas nos seus países de origem. Diminuindo os fundos essas pessoas são obrigadas a seguir para onde está o investimento e o capital.

O médico neurologista António Damásio esteve há semanas em Portugal onde inaugurou uma escola com o seu nome. Disse ele que «não é possível haver uma sociedade justa e com progresso se não houver educação». Subscreve?

Mantenho uma certa relação de afetividade com quem está no ensino em Portugal e discordo, completamente, da imagem que se formou. Penso que a Escola é muito pouco estimada em Portugal. E não é de agora, é um sentimento ancestral. Há uma cultura refratária que penaliza, quase sempre, a escola pública. Na dúvida, estou ao lado das escolas, porque acho que têm feito um trabalho admirável. Respondem aos problemas inerentes à comunidade escolar, para além dos problemas decorrentes da sociedade, seja dos menores rendimentos das famílias, pelo afluxo de imigrantes, a desagregação das famílias, etc. A escola tem vindo a aumentar o seu leque de funções de uma forma repentina, a que nem a sociedade e o poder político estão a conseguir dar resposta. São as crianças com fome, a gestão das cantinas, os jovens imigrantes que mal sabem falar português, etc. A escola está a funcionar como uma espécie de amortecedor das tensões sociais.

Os professores vão conseguir recuperar a autoridade junto dos alunos e da sociedade?

Houve um certo desvario, com culpas repartidas entre os professores e a tutela. Eu teria sempre tendência a negociar. O movimento sindical dos professores não pode deixar de ser um interlocutor. É preciso corrigir a lógica de ver no outro um antagonista e entender as partes do sistema numa logica de cooperação. No atual contexto económico, financeiro e social a educação será ainda mais determinante. Apesar da filosofia de economia de meios, que é uma das lições da crise, não é possível abandonar as populações à sua sorte, retirando-lhes a saúde e a escola. É preciso ter cuidado para não deitar fora o bebé com a água do banho.

Para finalizar e em jeito de remate. Como é que o cidadão José Medeiros Ferreira vê o futuro do país?

Eu elencaria duas prioridades. A primeira: terminar a intervenção da troika em Portugal em condições de reassumir-mos a nossa credibilidade externa. No fundo, levar os senhores da troika à porta e fazer uma despedida, agradecendo a ajuda prestada, não deixando de lamentar a elevada alta de juro cobrada. A segunda prioridade seria definir os volantes em que nos devemos concentrar, em termos políticos, que podem ajudar ao crescimento e criar emprego. Agir de forma concentrada e não difusamente. Apostar, por exemplo, no setor da educação, como fez questão de afirmar o Presidente da República no discurso do 5 de outubro. É preciso não esquecer que a formação das pessoas passa pelas escolas, apesar do investimento neste setor não ter resultados práticos de uma eleição para outra.

Ainda está para nascer um líder de governo que, desculpe a expressão, diga e concretize o «que se lixe as eleições» referido por Passos Coelho?

Admito que haja apego ao sentido do serviço. Mas o racional é que o político deva lutar para obter uma boa votação, como resultado de ter transmitido uma mensagem credível e aceite pelos cidadãos eleitores.

Nuno Dias da Silva
Tiago Miranda / Expresso
 
 
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