Entrevista

Eduardo Sá, psicólogo
«A escola serve para desbravar avenidas novas»

Eduardo Sá foto-001.jpgBatota, demagogia e esquizofrenia. Estas são algumas das palavras a que Eduardo Sá recorre para falar da educação dos nossos dias. O psicólogo afirma que os governos têm gozado com o país, que não falta dinheiro, mas sim rumo e defende um pacto de regime para o setor. «Quem não tem paixão pela educação não é amigo do futuro», diz.

Educar num contexto de escassez é mais fácil ou mais difícil do que educar num contexto de abundância e prosperidade?

A minha tentação é dizer que é mais fácil, por uma razão simples: num contexto de crise temos de fazer escolhas que, valha a verdade, entendo que é aquilo que os responsáveis da educação fazem com dificuldade. Portanto, nas atuais circunstâncias, ao fazerem-se escolhas devia existir um pressuposto claro e preciso do que se quer. Muitas vezes as escolhas não se fazem - com todo o respeito do mundo pelas equipas que têm estado à frente dos sucessivos ministérios da Educação - porque me parece que não há uma ideia do que se pretende. Portanto, quando isso acontece e num contexto de crise ainda mais, parece existir uma espécie de alibi para justificar que a não tomada de determinadas decisões se deve à falta de recursos.

E não é assim?

Não. Dou-lhe um exemplo concreto. Eu nunca entendi por que é que se separa ensino obrigatório e educação infantil. É uma questão de bom senso reconhecer que a educação infantil é indispensável para o ensino obrigatório. Evidentemente que se este último for tendencialmente gratuito e para todos, como tem de ser, implicará um conjunto de coordenadas que muitas vezes, quando falamos de manuais escolares, do preço dos manuais e da politica que lhe está associada, é um tema que nem sempre está em cima da mesa. Quando se fala de educação infantil eu acho de mau gosto o que é o discurso da maior parte dos governantes. A rede de jardins de infância não abrange todas as crianças e existe este facto extraordinário em que há jardins de infância que custam muito mais do que universidades privadas.

O que está a dizer é que falta uma estratégia coordenada?

Não se discute o que é que queremos da educação e qual é a política para o setor para depois se fazerem escolhas. Eu acredito que se houver critérios e um rumo não será a escassez ou a abundância a condicionarem o essencial. Eu rejeito que se entre neste absurdo que, de repente, faz lembrar uma tendência de moda, que é a de escolarizar os jardins de infância e com alguns destes estabelecimentos a ousarem defender que podem reter as crianças porque não atingem determinados níveis, como se se pudesse reprovar na educação de infância. É batota continuar a invocar que faltam recursos à educação. O que falta é política. Acho inacreditável que não seja uma urgência para ninguém um pacto de regime para a educação que una Presidência da República, Assembleia da República e partidos políticos com representação parlamentar. E mais: acho tão demagógico que, à esquerda e à direita, se troquem argumentos.

Contesta que os argumentos ideológicos salpiquem a educação?

Não pode ser. Os objetivos teriam de ser consensuais. Quando é que foram as oportunidades em que estas entidades que mencionei se sentaram à mesma mesa? Peço desculpa mas uma das funções, entre outras, que compete à Presidência da República deve ser definir o que se quer para a educação infantil, para o ensino obrigatório, quais são os recursos, os objetivos, etc.

Não querendo ser advogado do diabo, a instabilidade governativa dos tempos recentes e a sucessão de ministros da tutela também não ajuda ao diálogo…

Esse é uma lógica de porta-giratória, em que entra um governo e mudam os nomes, mudam as políticas e mudam os objetivos. No fundo, muda-se alguma coisa, para tudo ficar na mesma. É absurdo em muitas políticas públicas neste país, especialmente no setor educativo. É uma tolice, sem pés nem cabeça. Quando de repente discutimos esta espécie de epidemia atípica de défices de atenção das crianças, mais valia os partidos políticos porem a mão na consciência e questionarem-se o que é que tem sido feito. É uma falta de respeito para com os cidadãos. Não admira que as pessoas se queixem do divórcio dos cidadãos face à vida política e aos compromissos cívicos. Por isso é que eu digo que os sucessivos governos têm gozado com o país.

Gozado de que forma?

Já reparou, volta não volta, a pretexto da viabilidade da segurança social, há sempre uma preocupação fora do vulgar com a taxa de natalidade? Eu acho que é gozar com os cidadãos vir, de vez em quando, falar destes assuntos. Da esquerda à direita, ninguém se salva, os responsáveis políticos imaginam que se pode ter três filhos, entre os 0 e os 6 anos, pagando jardins de infância aos preços que se praticam neste país? Uma classe média - que tenho dúvidas que ainda existe - consegue que este cenário se concretize? Duvido muito sobre essa viabilidade. Estou em crer que certas mudanças operadas nos países escandinavos no pós-guerra seriam um grande ensinamento para nós. Evidentemente que uma política de escola implica uma política de família. Acho inacreditável que falar de família em Portugal ainda continue a ser conotado com a direita.

Insiste na tecla que muita politiquice acaba por impedir medidas concretas em prol do bem comum?

É isso. Eu quero que fique claro: eu sou um homem de esquerda e acho inacreditável como não há uma política de família em Portugal. Ninguém quer perceber que os incentivos que hoje se podem dar à família e que podem ser vistos como gastos, serão, seguramente, um ganho significativo a uma geração de distância. Agora, se os governos não existem para ter uma política de médio/longo prazo, então mais vale fecharem portas. É como haver um conselho de administração que se limita a fazer o papel de contabilista e não define políticas de fundo. Isto é gozar com os cidadãos!

Quando ouve falar em orçamento do Estado pró-família também sente que estão a gozar?

Isso é gozo parte dois. Mesmo quando se fala de uma coisa tão séria como o IRS o discurso não é sério. Às vezes parece que os governantes parecem acreditar que os pais educam as suas crianças numa loja de 300. Eu quero salientar que hoje em dia três filhos já constituem uma família numerosa. Mas o que acontece é que num agregado familiar com cinco pessoas são praticados os preços de consumo de água iguais para uma casa em que habita uma pessoa sozinha. Não há uma ideia de fundo para as famílias, para a escola e para as crianças. Os assuntos dialogam entre si e não podem ser perspetivados separadamente.

Eduardo Sá_03-001.jpgDefende uma escola de rosto humano. Quer com isto dizer que o modelo atual está longe desse desígnio?

Muito longe. Eu costumo dizer para tentar ser enfático: a escola morreu, viva a escola! A ideia que tínhamos de escola há 100 ou 50 anos atrás não pode ser a escola que todos nós temos hoje, com os vícios que persistem. Nós invertemos uma ideia que se solidificava que tínhamos uma mão de obra pouca qualificada, pouco escolarizada e consequentemente barata, o que levava alguns governos a vangloriarem-se disso no estrangeiro. Neste momento já não precisamos de escolarizar a granel, porque já assumimos que a escolaridade obrigatória não se discute. O que temos de perceber é que escolarizar por escolarizar, não basta! Não chega as crianças saberem fazer equações matemáticas, saberem os novos nomes dos complementos diretos e dos predicados, etc. Uma escola não serve para fazer jovens tecnocratas de sucesso, serve sim para construir pessoas melhores.

E como é que se formam pessoas mais capazes para os desafios das sociedades competitivas e globalizadas em que vivemos?

Pessoas melhores não se conseguem com aulas positivas sobre aulas positivas de 90 minutos, separadas por recreios de 10 minutos. Pessoas melhores não se constroem descaracterizando determinados curricula, como por exemplo, dizendo que as áreas de projeto e outras, com implicações cívicas e sociais, - que existem em muitos colégios privados de inspiração anglo-saxónica - são supérfluas e não constituem mais valia. Também não é admissível escolher disciplinas de primeira e de segunda, em que a Matemática está sempre na primeira linha - vá-se lá imaginar porquê -, o Português tem dias e depois tudo o resto é entendido como disciplinas de segunda, chegando a haver disciplinas de terceira, nomeadamente a Educação Física que se deixa cair. Chegámos a um ponto em que em determinadas escolas já têm turmas de primeira e de segunda, em que numas estão os mais desempoeirados e noutras os que sejam identificados como sendo os possuidores de mais dificuldades. Isto é uma batotice tremenda. Só em 2014 é que o Conselho Nacional de Educação chamou a atenção para a discrepância entre as notas de algumas escolas privadas e escolas públicas, dando a entender que certos estabelecimentos punham "pó de arroz" excessivo na avaliação dos meninos. O ministério não pode ser distraído a este ponto.

Quer dizer que há escolas que «trabalham» para os rankings?

Faz sentido que haja escolas privadas - algumas ditas de inspiração cristã - que recusem meninos que têm médias de 12/13 valores para não enviesarem os rankings? Isto não é uma escola de rosto humano, isto é uma escola que passa a vida a estimular a vaidade e que faz publicidade enganosa, defendendo a sua imagem e das «crianças saudáveis» que só tiram nota 5 e às vezes nota 4, mas só nos dias maus.

Afirma que o sistema premeia mais os que repetem do que os que recriam. Não é negativo?

Este sistema é um bocadinho esquizofrénico. A lógica instalada é se os alunos repetirem até à exaustão têm boas notas e ainda melhores resultados obtêm - nomeadamente no superior - se citarem o professor até às virgulas. Já quando recriam e pensam, muitas vezes, são penalizados. A escola serve para desbravar avenidas novas nas cabeças e ajudar a pensar. Mesmo nos últimos anos do ensino superior deparo-me com miúdos que são escolarizados, mas que sofrem de iliteracia até à quinta casa. Temos de perguntar porquê. Os níveis esmagadoramente negativos registados em alguns patamares dos exames nacionais são um espelho disso.

De quem é a responsabilidade: dos alunos, dos professores ou do sistema?

Mas por que é que o problema é sempre das crianças? Será que têm um défice congénito para a Matemática quando brincam com consolas e jogos de computador dotados de uma complexidade extraordinária?

O braço de ferro permanente entre sindicatos e tutela deixa os alunos indefesos. Este é um caldo de conflitualidade prejudicial ao normal funcionamento do sistema?

Os sindicatos de professores são, de vez em quando, demagógicos, mas é preciso ser dito que o ministério desconsidera os professores um dia atrás do outro. Os governos não percebem que os docentes são um bem precioso e inestimável, apesar de serem mal pagos, desconsiderados e de trabalharem sem um mínimo de condições. E ainda assim gostam do que fazem! Estou em crer que se os professores fossem devidamente acarinhados e apoiados fazíamos verdadeiras revoluções neste país. Exijam avaliação, mas deem-lhes condições para o exercício profissional. Quem desconsidera deste modo os professores, só pode estar a pedir demagogia do outro lado.

Acha possível conciliar as posições extremadas?

Não se faz educação com demagogia de todos os lados. Vivemos num registo em que ninguém se quer entender, quando a paixão pela educação devia unir sindicatos, governantes e pais. Quem não tem paixão pela educação não é amigo do futuro. E os responsáveis são pessoas zangadas com o mundo e querem protagonismos baratos e injustificados, ignorando que estão a estragar a vida de muitas crianças. Porque é preciso dizer que as crianças adoram a escola e adoram aprender. Adoram os professores, acarinham-nos quando têm professores que lhes merecem respeito. De uma vez por todas: o problema não está nas crianças.

A desagregação da instituição familiar e a sua metamorfose em novas famílias está a condicionar o crescimento das nossas crianças e jovens?

A família mudou muito, a escola é que ainda parece que vive no antigo regime. O nível de complexidade das famílias dos nossos dias é muito grande. A variável divórcio ou separação é um ato muito sofrido, com índices muito superiores aos de há 30 anos, por exemplo, mas não é por essa circunstância que as famílias são piores ou melhores famílias. O compromisso dos pais com os filhos é cada vez maior. Eu acho que os pais são hoje mais implicados com a educação dos filhos do que há 30 anos. Quer o exemplo típico de como a escola tem andado a assobiar para o lado perante isto tudo? Hoje ainda continua a haver a figura do encarregado de educação e há escolas que se dão a esta fantástica inconstitucionalidade de negar falar com o pai, quando o casal está divorciado. E são estas escolas que dizem que os pais não vão à escola e que marcam o atendimento aos pais para as 10h30, uma hora que dá imenso jeito a qualquer pessoa que trabalha neste país…

Um estudo recente aponta que 70 por cento dos jovens dependem moderadamente da internet e dos jogos online. A tecnologia é prejudicial ou benéfica à interação e à aprendizagem?

Dá para os dois lados. Eu não gosto nada dos pais que se demitem de o ser e põem as crianças a ver desenhos animados e depois fazem cruzadas contra os desenhos animados apontando os seus efeitos nocivos. As novas tecnologias são uma bênção, os jogos de computador em vez de atrofiarem, ajudam as crianças. Agora os pais devem ser uma entidade reguladora que deve definir o quão, o quando e o porquê. Apercebo-me, muitas vezes, em restaurantes que frequento, de famílias num registo autista, em que o pai olha para a ecrã da televisão e os filhos estão agarrados à consola ou ao telemóvel. As novas tecnologias permitem-nos estar mais perto dos nossos filhos, mas também são muito amigas do autismo quando não existem entidades reguladoras de permeio. Em suma, o problema não é das novas tecnologias, é dos pais quando estes se baldam de definir as regras.

Defende alunos irrequietos e duvida dos alunos excessivamente bem comportados, até porque diz que «os bons filhos são aqueles que nos trazem problemas». Quer esclarecer?

A vida é isto e passa por resolver problemas. A vida funciona como o sistema imunitário, não dorme, está sempre a afrontar os agentes ameaçadores, sejam bactérias, vírus e fungos, etc. Eu acho que os filhos saudáveis são os que nos colocam desafios, seja na escola, seja em casa, etc. quanto mais os filhos nos vão colocando problemas, mais eles desenvolvem competências e se autonomizam. Ter adquirido que os bons filhos nunca nos dão problemas é inquietante, porque significa que eles estão a passar pela vida, sem a viver. Estão a fazer de homem invisível.

Diz que brincar e aprender não ligam. Como é que é possível conjugar ambas, de forma equilibrada e sem prejuízo mútuo?

Brincar é tão importante como aprender. Brincar não pode ser uma atividade de fim de semana. As crianças chegam a trabalhar 12 horas por dia. É a escola, as atividades extracurriculares, o desporto, etc. Isto não faz sentido. Aposto que muitos ministros e políticos foram crianças e adolescentes tão doentes que entendem que aprender tem de ser algo muito sofrido. E não é assim. Tudo é conciliável, desde que as pessoas façam as escolhas apropriadas.

«O investimento em educação é uma alavanca contra a desigualdade», afirma Thomas Pikkety, o autor do best-seller «O capital no século XXI», Subscreve?

Em absoluto. Portugal está a agravar as discrepâncias sociais, em que as crianças passam fome e são humilhadas porque os pais não têm dinheiro para pagar os manuais escolares.

Tenho feito uma verdadeira cruzada contra a pobreza infantil, que eu julgava erradicada no nosso país. Acho incrível que se não fosse o compromisso de muitos autarcas, centenas de crianças não teriam uma refeição condigna no período de férias escolares. Eu debato-me por uma escola inclusiva, pelo ensino público, que não é uma questão de esquerda ou direita. Insisto. É uma questão de regime. Não se pode desinvestir no setor público. E voltando à questão dos jardins de infância, o que a mim me preocupa, é que muitas crianças entram no ensino obrigatório com vincadas desigualdades que foram avivadas por este desmazelo do Estado. Toda a vida me baterei por um país amigo das crianças e este ainda não o é! Para inverter o estado de coisas é preciso começar a tornar a educação aberta e democrática.

Qual é o estado da saúde mental em Portugal? Confirma que têm aumentado o número de portugueses que recorrem a consultas de psicologia?

É verdade, mas são ainda muito poucos. Eu defendo que só as pessoas saudáveis é que precisam de ajuda. O país onde existe a maior percentagem de cidadãos com acompanhamento psicológico é os Estados Unidos. E digo isto de forma vincada, porque algumas pessoas acham que isto é um vício muito europeu. E não é. É uma questão de bom senso. Portugal está, para variar, na cauda.

Os seres humanos são animais fantásticos, fabulosos, de uma complexidade comovente. Não nascemos, felizmente, com manuais de instruções e portanto temos os pais, intuitivamente, a colocar legendas em muitas coisas, mas os técnicos de saúde mental, quando são pessoas bem formadas, auxiliam a tornar o mundo mais simples, porque nos ajudam a retirar muito mais rendimento de coisas que até parecem forças de bloqueio, como por exemplo, as emoções.

Defende, então, o acesso generalizado da população aos técnicos de saúde mental?

Os técnicos de saúde mental são um bem precioso. Não se trata de "psicologizar" a vida, mas sim promover uma saúde de política mental que, desde há muitos anos, mereceu todos os desinvestimentos possíveis, por pressão de muitas multinacionais farmacêuticas, como se se dissesse que há umas pílulas fantásticas que nos ajudam a ter atenção, há umas pílulas fantásticas que quando dormimos ao lado da nossa melhor amiga - mas que não é o nosso grande amor - nos ajudam a ter capacidade para termos a erotização que não somos capazes de ter. No fundo, como se uma sociedade sintética e bioquímica substituísse aquilo que é uma sociedade amiga das pessoas, em que nalgumas situações, mais crónicas e mais agudas, os psicofármacos são importantes, mas é bom que tenhamos a noção que ninguém se transforma à custa de psicofármacos.

Presumo que esteja apreensivo com o uso excessivo de ansiolíticos e antidepressivos?

Medicalizar a granel a vida de crianças e adolescentes é uma irresponsabilidade e nalgumas situações é um caso de polícia. Temos a obrigação de promover a saúde mental e o que estamos a fazer é o oposto. Os erros têm sido tremendos. Acabámos com os centros de saúde mental infantil, acabámos com os centros de medicina pedagógica que eram importantíssimos na ponte entre a saúde mental e a escola, etc. Se soubermos o que queremos para a escola e tivermos uma politica de saúde mental, estou em crer que o mundo será melhor.

Nuno Dias da Silva
 
 
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