David Justino, presidente do CNE e do Conselho Estratégico da Futurália
“Descentralização pode trazer valor acrescentado à missão da escola pública”
David Justino, ministro da Educação do Governo
liderado por Durão Barroso, atual presidente do Conselho Nacional
de Educação, é um dos nomes mais respeitados do país na área do
ensino. Presidente do Conselho Estratégico da edição desta ano da
Futurália, explica ao Ensino Magazine a necessidade das
instituições de ensino superior se especializarem.
Nesta entrevista, efetuada por
e-mail, fala também da descentralização de competências na área da
educação para os municípios, do facto de muitos jovens não
prosseguirem estudos para o ensino superior, e da importância da
Futurália.
A
Futurália vai para mais uma edição. Qual a importância deste evento
para os jovens e as suas famílias, num período economicamente
difícil, em que é preciso ser-se criterioso na escolha de um
curso?
Trata-se de uma oportunidade única
de aceder a informação relevante para as escolhas que os alunos e
as famílias terão de fazer. Sendo a maior concentração de
produtores de conteúdos educativos, de estabelecimentos de ensino
com uma enorme variedade de cursos e de um vasto leque de
oportunidades de forma a permitir uma escolha informada e
responsável, é natural que desperte o interesse de milhares de
alunos, escolas e famílias que têm nos últimos anos transformado a
Futurália num acontecimento incontornável.
Neste momento Portugal ainda tem uma elevada taxa de alunos
que concluem o ensino secundário e que não se candidatam ao ensino
superior. Sabendo que não há "varinhas mágicas", na sua perspetiva
o que poderia ser feito para alterar essa situação?
Em primeiro lugar teremos de
compreender de forma objectiva quais as razões para essa "não
opção". Reconheço que ainda sabemos muito pouco. Mas do pouco que
sabemos permite-nos especular que na base dessa situação está o não
reconhecimento do retorno do investimento que um curso de ensino
superior exige. Manter um jovem num estabelecimento de ensino
superior é uma opção cara e quantas vezes exige sacrifícios às
respectivas famílias. O que muitos duvidarão é do retorno desse
investimento. Com as crescentes dificuldades no mercado de emprego
de licenciados, especialmente a desadequação entre os cursos
escolhidos e as oportunidades geradas cria-se a ideia que o esforço
adicional não é suficientemente recompensado. Julgo tratar-se de
uma falsa ideia. A probabilidade de um licenciado obter um melhor
emprego e melhor remunerado é bem superior à de um não
licenciado.
A
realização de eventos como a Futurália pode também dar o
contributo, ou ser o tal click que às vezes faz falta, para que
mais jovens procurem melhorar as suas qualificações?
Julgo que sim, mas não chega. A
Futurália cria oportunidades, propicia informação diversificada,
mas as escolhas terão de ser os jovens e as sua famílias a fazer.
Era importante que organizações independentes pudessem de forma
sistemática identificar em que sectores e profissões haverá maior
probabilidade de emprego e de melhor emprego. Desde que feito com
rigor, qualidade e isenção seria uma informação muito útil a ser
complementada com a obtida através da Futurália. Por exemplo: daqui
a cinco anos vamos precisar de mais enfermeiros ou de mais
engenheiros informáticos? Que perfil de professores é que vamos ter
falta?
O
ensino superior continua a ser um instrumento fundamental para a
qualificação dos portugueses, mas também para a coesão territorial.
A especialização das instituições de ensino superior, sobretudo as
do interior, pode ser o caminho para manter a rede de oferta
existente?
Essa é a minha opinião. Uma grande
parte da oferta de ensino superior vai ter de perder a sua dimensão
generalista para concentrar os seus recursos em domínios
específicos do conhecimento. Precisamente onde essas instituições
possam ser mais competitivas, não só na captação de alunos, mas,
mais importante, na capacidade de formar profissionais para
sectores onde existam boas oportunidades. Este princípio tanto se
aplica às instituições de ensino superior localizadas no interior
do país, como a todas as outras. Quem o fizer mais cedo ganhará
vantagem, mas compreendo que não é fácil encerrar cursos e
dispensar professores. Só que caso não o façam agora, terão de o
fazer mais tarde, com custos muito mais elevados.
Essa
especialização deveria ser acompanhada de medidas de discriminação
positiva, ao nível do financiamento, por
exemplo?
Vejo que tem estado atento às
ideias que defendo. O caso dos estabelecimentos de ensino superior
localizados em regiões do interior deve ser analisado com o maior
rigor, mas também com o maior cuidado e espírito de solidariedade.
Defendo a existência de medidas de discriminação positiva, mas
entendo que elas só terão sentido se houver sentido de
responsabilidade no que respeita à racionalização da oferta.
Mudando de assunto. Ao nível da avaliação dos alunos,
defendeu recentemente que é importante aumentar a "avaliação
formativa e que a quantitativa deveria continuar a ser aplicada em
anos de exames, como o 4º, o 6º e 9º, mas com a nuance de que seria
formativa dentro de cada ciclo e depois sumativa no último ano". Na
sua perspetiva quais as mais valias desta alteração?
Em primeiro
lugar, deveremos esclarecer os conceitos que estamos a utilizar e
desfazer alguns mal entendidos. Não podemos confundir esses dois
tipos de avaliação com o facto de serem ou não quantificadas as
classificações. Avaliar é uma coisa, classificar é outra e recorrer
a um código numérico ou alfabético para expressar essa
classificação é outra. Quanto a esta última questão não vejo que
uma classificação resultante de uma avaliação não possa ter um
efeito formativo.
O meu objetivo com essas
declarações foi a de chamar a atenção para o seguinte: avaliação
formativa e avaliação sumativa devem ser complementares, a primeira
mais interna e mais contínua, a segunda que tanto pode ser interna
como externa, mas centrada em determinados momentos do percurso
educativo, neste caso nos finais de ano (interna) e de ciclo
(externa). Recorrer a valores de classificação na escala de 0 a 5
ou de 0 a 20, ou a códigos do tipo, bom, muito bom, insuficiente,
é-me indiferente porque como códigos que são devem ser escolhidos
em função do seu significado em contextos de comunicação.
Como é que essa nova avaliação poderia ser
implementada?
Não há grande novidade no que digo,
o problema está em potenciar e generalizar esses instrumentos e tal
só é possível se esse tema entrar na agenda das escolas. Eu aceito
o princípio de que cada escola deve conceber e consolidar o seu
modelo de avaliação em função do seu projeto educativo. Mas para os
devidos efeitos teremos de investir quer na formação inicial de
professores para qualificar a utilização dessas técnicas de
avaliação, quer na formação contínua dos professores que já
exercem. Julgo que teremos de, a pouco e pouco, responsabilizar as
escolas pelos seus modelos de avaliação interna e credibilizar a
avaliação externa, quer seja através de exames quer de testes
intermédios de carácter sumativo.
Esta sua perspetiva vem ao encontro do que a própria OCDE
defendeu num debate promovido pelo CNE?
Não necessariamente. Existe uma
grande confusão sobre o que é avaliação formativa, quais os seus
instrumentos e as metodologias adequadas e eu não tenho a certeza
que os técnicos da OCDE tenham certezas sobre os sistemas de
avaliação em toda a complexidade de que se revestem. Não basta
identificar os problemas, é necessário encontrar soluções adequadas
a cada um dos sistemas de ensino. Não temos de andar a copiar tudo
e mais alguma coisa que venha com o carimbo da OCDE. Temos de
aprender com as experiências que a OCDE monitoriza, mas não somos
obrigados a imitar.
Um
dos temas que está na agenda política é a chamada municipalização
da educação. Essa transferência de competências para as autarquias
é vantajosa para a escola pública?
O CNE ainda não se pronunciou sobre
essa temática e eu conto que o faça em breve. Mas há algo que julgo
ser adquirido: descentralizar é uma coisa, municipalizar é outra.
Pessoalmente sou defensor da descentralização quer para as escolas
quer para as autarquias, mas rejeito a instituição de novas tutelas
locais. O ideal é criar sistemas de regulação partilhada de nível
local. Continuo a pensar que essa descentralização desde que feita
com cuidado e realismo pode trazer valor acrescentado à missão da
escola pública.
Essa descentralização poderá permitir que uma parte do
currículo possa vir a ser proposta pelos concelhos em articulação
com as escolas. Essa diversidade pode ser benéfica para os alunos,
ou pode acarretar riscos?
Já ouvi os maiores disparates sobre
essa solução da gestão de 25% do curriculum. Isso já existe para os
contratos de autonomia, as escolas privadas também irão beneficiar
dessa medida, porquê tanto alarido com o alargamento aos contratos
de descentralização? O que está em causa é dispor de um instrumento
de gestão curricular, nomeadamente das cargas horárias das
diferentes disciplinas, para concretizar o princípio da
diferenciação pedagógica e adequar esse curriculum ao tipo de
alunos e, muito parcialmente, aos contextos locais. Se pensam que
em Castelo Branco, por exemplo, se vai deixar de dar história de
Portugal e substituí-la por história local é um disparate que só a
má-fé deixa difundir.
As
escolas e os municípios estão preparados para propor essas
alterações?
Não sei, mas se não se avançar
nesse sentido nunca virão a estar preparados. É por isso que o que
está em cima da mesa é uma experiência envolvendo cerca de 10
municípios para um total de 278, ou seja cerca de 3,5% do total.
Fico com a sensação de que há pessoas e organizações que estão com
medo que a experiência tenha sucesso.
A
classe docente, sobretudo através dos seus sindicatos, tem vindo a
criticar essa transferência de competências, alegando que muitos
docentes podem vir a ficar sem horários. Por aquilo que conhece da
proposta existe esse risco?
Não! Os municípios não terão
responsabilidades na gestão do pessoal docente. Por outro lado, o
risco de ficar sem horários é tão real com ou sem municípios. Isso
é a mesma coisa que dizer que os funcionários dos municípios estão
aquém do que seria avisado. Ora, não é isso que eu constato. Por
outro lado, esse receio só vem dar razão àqueles que consideram que
existem professores a mais. Não percebo o argumento.