Entrevista

David Justino, presidente do CNE e do Conselho Estratégico da Futurália
“Descentralização pode trazer valor acrescentado à missão da escola pública”

DavidJustino2Nov2003AlbertoFrias-001.jpgDavid Justino, ministro da Educação do Governo liderado por Durão Barroso, atual presidente do Conselho Nacional de Educação, é um dos nomes mais respeitados do país na área do ensino. Presidente do Conselho Estratégico da edição desta ano da Futurália, explica ao Ensino Magazine a necessidade das instituições de ensino superior se especializarem.

Nesta entrevista, efetuada por e-mail, fala também da descentralização de competências na área da educação para os municípios, do facto de muitos jovens não prosseguirem estudos para o ensino superior, e da importância da Futurália.

A Futurália vai para mais uma edição. Qual a importância deste evento para os jovens e as suas famílias, num período economicamente difícil, em que é preciso ser-se criterioso na escolha de um curso?

Trata-se de uma oportunidade única de aceder a informação relevante para as escolhas que os alunos e as famílias terão de fazer. Sendo a maior concentração de produtores de conteúdos educativos, de estabelecimentos de ensino com uma enorme variedade de cursos e de um vasto leque de oportunidades de forma a permitir uma escolha informada e responsável, é natural que desperte o interesse de milhares de alunos, escolas e famílias que têm nos últimos anos transformado a Futurália num acontecimento incontornável.

Neste momento Portugal ainda tem uma elevada taxa de alunos que concluem o ensino secundário e que não se candidatam ao ensino superior. Sabendo que não há "varinhas mágicas", na sua perspetiva o que poderia ser feito para alterar essa situação?

Em primeiro lugar teremos de compreender de forma objectiva quais as razões para essa "não opção". Reconheço que ainda sabemos muito pouco. Mas do pouco que sabemos permite-nos especular que na base dessa situação está o não reconhecimento do retorno do investimento que um curso de ensino superior exige. Manter um jovem num estabelecimento de ensino superior é uma opção cara e quantas vezes exige sacrifícios às respectivas famílias. O que muitos duvidarão é do retorno desse investimento. Com as crescentes dificuldades no mercado de emprego de licenciados, especialmente a desadequação entre os cursos escolhidos e as oportunidades geradas cria-se a ideia que o esforço adicional não é suficientemente recompensado. Julgo tratar-se de uma falsa ideia. A probabilidade de um licenciado obter um melhor emprego e melhor remunerado é bem superior à de um não licenciado.

A realização de eventos como a Futurália pode também dar o contributo, ou ser o tal click que às vezes faz falta, para que mais jovens procurem melhorar as suas qualificações?

Julgo que sim, mas não chega. A Futurália cria oportunidades, propicia informação diversificada, mas as escolhas terão de ser os jovens e as sua famílias a fazer. Era importante que organizações independentes pudessem de forma sistemática identificar em que sectores e profissões haverá maior probabilidade de emprego e de melhor emprego. Desde que feito com rigor, qualidade e isenção seria uma informação muito útil a ser complementada com a obtida através da Futurália. Por exemplo: daqui a cinco anos vamos precisar de mais enfermeiros ou de mais engenheiros informáticos? Que perfil de professores é que vamos ter falta?

O ensino superior continua a ser um instrumento fundamental para a qualificação dos portugueses, mas também para a coesão territorial. A especialização das instituições de ensino superior, sobretudo as do interior, pode ser o caminho para manter a rede de oferta existente?

Essa é a minha opinião. Uma grande parte da oferta de ensino superior vai ter de perder a sua dimensão generalista para concentrar os seus recursos em domínios específicos do conhecimento. Precisamente onde essas instituições possam ser mais competitivas, não só na captação de alunos, mas, mais importante, na capacidade de formar profissionais para sectores onde existam boas oportunidades. Este princípio tanto se aplica às instituições de ensino superior localizadas no interior do país, como a todas as outras. Quem o fizer mais cedo ganhará vantagem, mas compreendo que não é fácil encerrar cursos e dispensar professores. Só que caso não o façam agora, terão de o fazer mais tarde, com custos muito mais elevados.

DavidJustinoNov2003AlbertoFrias-001.jpgEssa especialização deveria ser acompanhada de medidas de discriminação positiva, ao nível do financiamento, por exemplo?

Vejo que tem estado atento às ideias que defendo. O caso dos estabelecimentos de ensino superior localizados em regiões do interior deve ser analisado com o maior rigor, mas também com o maior cuidado e espírito de solidariedade. Defendo a existência de medidas de discriminação positiva, mas entendo que elas só terão sentido se houver sentido de responsabilidade no que respeita à racionalização da oferta.

Mudando de assunto. Ao nível da avaliação dos alunos, defendeu recentemente que é importante aumentar a "avaliação formativa e que a quantitativa deveria continuar a ser aplicada em anos de exames, como o 4º, o 6º e 9º, mas com a nuance de que seria formativa dentro de cada ciclo e depois sumativa no último ano". Na sua perspetiva quais as mais valias desta alteração?

  Em primeiro lugar, deveremos esclarecer os conceitos que estamos a utilizar e desfazer alguns mal entendidos. Não podemos confundir esses dois tipos de avaliação com o facto de serem ou não quantificadas as classificações. Avaliar é uma coisa, classificar é outra e recorrer a um código numérico ou alfabético para expressar essa classificação é outra. Quanto a esta última questão não vejo que uma classificação resultante de uma avaliação não possa ter um efeito formativo.

O meu objetivo com essas declarações foi a de chamar a atenção para o seguinte: avaliação formativa e avaliação sumativa devem ser complementares, a primeira mais interna e mais contínua, a segunda que tanto pode ser interna como externa, mas centrada em determinados momentos do percurso educativo, neste caso nos finais de ano (interna) e de ciclo (externa). Recorrer a valores de classificação na escala de 0 a 5 ou de 0 a 20, ou a códigos do tipo, bom, muito bom, insuficiente, é-me indiferente porque como códigos que são devem ser escolhidos em função do seu significado em contextos de comunicação.

Como é que essa nova avaliação poderia ser implementada?

Não há grande novidade no que digo, o problema está em potenciar e generalizar esses instrumentos e tal só é possível se esse tema entrar na agenda das escolas. Eu aceito o princípio de que cada escola deve conceber e consolidar o seu modelo de avaliação em função do seu projeto educativo. Mas para os devidos efeitos teremos de investir quer na formação inicial de professores para qualificar a utilização dessas técnicas de avaliação, quer na formação contínua dos professores que já exercem. Julgo que teremos de, a pouco e pouco, responsabilizar as escolas pelos seus modelos de avaliação interna e credibilizar a avaliação externa, quer seja através de exames quer de testes intermédios de carácter sumativo.

Esta sua perspetiva vem ao encontro do que a própria OCDE defendeu num debate promovido pelo CNE?

Não necessariamente. Existe uma grande confusão sobre o que é avaliação formativa, quais os seus instrumentos e as metodologias adequadas e eu não tenho a certeza que os técnicos da OCDE tenham certezas sobre os sistemas de avaliação em toda a complexidade de que se revestem. Não basta identificar os problemas, é necessário encontrar soluções adequadas a cada um dos sistemas de ensino. Não temos de andar a copiar tudo e mais alguma coisa que venha com o carimbo da OCDE. Temos de aprender com as experiências que a OCDE monitoriza, mas não somos obrigados a imitar.

Um dos temas que está na agenda política é a chamada municipalização da educação. Essa transferência de competências para as autarquias é vantajosa para a escola pública?

O CNE ainda não se pronunciou sobre essa temática e eu conto que o faça em breve. Mas há algo que julgo ser adquirido: descentralizar é uma coisa, municipalizar é outra. Pessoalmente sou defensor da descentralização quer para as escolas quer para as autarquias, mas rejeito a instituição de novas tutelas locais. O ideal é criar sistemas de regulação partilhada de nível local. Continuo a pensar que essa descentralização desde que feita com cuidado e realismo pode trazer valor acrescentado à missão da escola pública.

Essa descentralização poderá permitir que uma parte do currículo possa vir a ser proposta pelos concelhos em articulação com as escolas. Essa diversidade pode ser benéfica para os alunos, ou pode acarretar riscos?

Já ouvi os maiores disparates sobre essa solução da gestão de 25% do curriculum. Isso já existe para os contratos de autonomia, as escolas privadas também irão beneficiar dessa medida, porquê tanto alarido com o alargamento aos contratos de descentralização? O que está em causa é dispor de um instrumento de gestão curricular, nomeadamente das cargas horárias das diferentes disciplinas, para concretizar o princípio da diferenciação pedagógica e adequar esse curriculum ao tipo de alunos e, muito parcialmente, aos contextos locais. Se pensam que em Castelo Branco, por exemplo, se vai deixar de dar história de Portugal e substituí-la por história local é um disparate que só a má-fé deixa difundir.

As escolas e os municípios estão preparados para propor essas alterações?

Não sei, mas se não se avançar nesse sentido nunca virão a estar preparados. É por isso que o que está em cima da mesa é uma experiência envolvendo cerca de 10 municípios para um total de 278, ou seja cerca de 3,5% do total. Fico com a sensação de que há pessoas e organizações que estão com medo que a experiência tenha sucesso.

A classe docente, sobretudo através dos seus sindicatos, tem vindo a criticar essa transferência de competências, alegando que muitos docentes podem vir a ficar sem horários. Por aquilo que conhece da proposta existe esse risco?

Não! Os municípios não terão responsabilidades na gestão do pessoal docente. Por outro lado, o risco de ficar sem horários é tão real com ou sem municípios. Isso é a mesma coisa que dizer que os funcionários dos municípios estão aquém do que seria avisado. Ora, não é isso que eu constato. Por outro lado, esse receio só vem dar razão àqueles que consideram que existem professores a mais. Não percebo o argumento.

 
Alberto Frias
 
 
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