Ana Rita Cavaco, Bastonária da Ordem dos Enfermeiros
«Há centros de saúde que funcionam como repartições de finanças»
Numa altura em que os enfermeiros são os mais
expostos às limitações do Serviço Nacional de Saúde, a Bastonária
defende a contratação de mais profissionais para o sistema e a
definição de «numerus clausus estratégicos» após articulação entre
os ministérios da Saúde e do Ensino Superior.
O ano de 2014 foi especialmente duro para o setor da
enfermagem, com milhares de profissionais a emigrarem. Essa
tendência tem sido invertida?
Em 2016 houve um decréscimo na emigração, mas ainda assim, apesar
da redução ser significativa, emigraram, na mesma, mais de 50 por
cento daqueles que se formam, todos os anos. A oferta em termos de
formação não está desadequada para o número de enfermeiros que
faltam em Portugal, que são cerca de 30 mil. O que está desadequado
é que eles formam-se e o sistema de saúde não os contrata, porque
não quer gastar dinheiro. E procuram, como é natural, outras
soluções.
Quantos enfermeiros trabalham, atualmente, fora do
país?
São cerca de 15 mil. A variação do número de enfermeiros que se
formam mantém-se equilibrada todos os anos em relação aos que se
formam, no público e no privado, com a particularidade, como lhe
disse anteriormente, de emigrarem mais de metade, por não serem
contratados pelos hospitais e centros de saúde portugueses.
A recuperação económica está a mudar a
tendência?
Alguns estão a regressar, até porque a prioridade da maioria passa
por voltar ao seu país. Ninguém pense que as pessoas emigram com
gosto e há até uma ideia muito errada que lá fora vão ganhar muito
dinheiro e estão muito satisfeitos. Não é propriamente verdade,
apesar dos ordenados serem maiores, o custo de vida também é
diferente. Para dizer que os enfermeiros procuram o estrangeiro,
não pelo dinheiro, mas por não terem colocação em Portugal.
Como é que os nossos enfermeiros são acolhidos no
estrangeiro?
A realidade é muito diferente. São bem tratados, têm uma carreira,
oferecem--lhes formação. São cumpridos os números mínimos de
enfermeiros para cada doente em cada serviço, as chamadas dotações
seguras, as regras técnicas não são incumpridas, etc.
Em Portugal o cenário é completamente
diferente?
Atualmente o que se passa no Serviço Nacional de Saúde (SNS), e
temos vindo a denunciar isso de há dois anos a esta parte, é um
"salve-se quem puder".
O Reino Unido é o principal país de destino dos
enfermeiros que abandonam o país?
Na maior parte sim, mas estes profissionais encontram-se
espalhados um pouco por todo o mundo. Nos últimos anos apareceram
alguns mercados mais distantes geograficamente, como o Dubai, a
Arábia Saudita e o Médio Oriente.
É sabido que esta é das profissões que exige um maior
esforço mental e físico, para além da responsabilidade inerente. O
reconhecimento salarial está longe do que devia ser?
Está muito longe. Eu faço este ano 21 anos de carreira e ao longo
deste tempo, tal como os meus colegas, carregamos connosco todas as
pessoas que vemos morrer, o sofrimento a que assistimos. Há um
risco muito grande de cometer um erro clínico na mera administração
de medicação, etc. Ou seja, o facto de lidarmos com a vida das
pessoas faz com que a pressão seja muito grande até porque é aos
enfermeiros que compete a vigilância dos doentes. Se pensarmos o
que é um enfermeiro no sistema de saúde, posso dizer que todos os
outros vão e veem. O médico vem ver, o psicólogo vem ver, enquanto
o enfermeiro está sempre lá e garante a vigilância e a
monitorização do que os profissionais com outras qualificações
prescreveram ou recomendaram.
Quanto é que um enfermeiro leva para casa ao fim do
mês?
Não levam nem mil euros para casa, e cumprem muitas horas a mais e
com uma permanente responsabilidade, que nunca é reduzida. E
cabe-nos lidar com tudo aquilo que a sociedade não quer
lidar.
Há muitos casos identificados de "burnout" ou
exaustão?
Temos um estudo de 2016 que a Ordem encomendou à Universidade do
Minho que revela que um em cada cinco enfermeiros está a trabalhar
em exaustão. É muito preocupante porque se o enfermeiro não tem
condições de garantir a segurança nos cuidados que ministra eu
coloco o outro em risco.
Os enfermeiros são, de alguma forma, o elo mais fraco na
cadeira dos prestadores de cuidados médicos?
Pelo menos os mais expostos são seguramente. Até no plano da
agressão física e verbal dos doentes e das famílias, porque são
aqueles que respondem em primeira linha às dúvidas, às questões, à
ansiedade de quem está sujeito a uma doença. Mas admito que também
são o elo mais fraco em virtude do que se foi passando na profissão
ao longo dos anos e também muito pela ação de quem os representava,
nomeadamente a sua Ordem profissional. O facto de terem destruído a
carreira aos enfermeiros tornou-os mais vulneráveis, o facto de
hoje os cargos de chefia dependerem de nomeações torna-os mais
vulneráveis, porque ter uma categoria da carreira em que eu exerço
uma função de chefia estão acometidas competências em que estou
salvaguardada pela lei para cumprir, ao passo que se for nomeada,
regra geral, o que assistimos pelo país é: «não fazes aquilo que eu
te digo para fazer em termos de conselho de administração, vem
outro!». Sucede que as pessoas para manterem o lugar não tomam
determinadas decisões que sabem que têm de ser assim do ponto de
vista técnico. E isto abriu caminho para a confusão dentro das
instituições de saúde com muitas regras básicas a serem incumpridas
e que colocam a nossa vida em risco, nomeadamente em termos de
controlo de infeção.
Quanto é que vale uma vida
em Portugal?
Para nós, infelizmente, vale pouco. Continuamos a ser o país que
salva bancos e prefere pagar aos privados, em vez de investir no
SNS. A pouca atenção que é dada às necessidades do setor reflete-se
nas decisões que os sucessivos governos têm dado ao longo dos anos.
Se fazemos cativações na saúde, por exemplo, estamos a retirar
dinheiro para salvar vidas. Quando sabemos que temos um SNS que
está sujeito a desinvestimento e sei que todos os anos há uma
pressão enorme dos utentes por causa da gripe e por causa das vagas
de calor, a quem interessa esta estratégica forma de atuar? Perante
esta realidade, em vez de dotar o SNS, enviam-se as pessoas
deliberadamente para o privado, gastando-se mais dinheiro.
Porquê?
Este sistema de saúde a duas velocidades vai acentuar as
desigualdades sociais?
Estamos a caminhar para um SNS para pobres. É isso que nós
queremos? Há muitos pacientes que já não encontram resposta no
sistema público e são obrigados a dirigir-se ao privado. Mas nem
todos os portugueses têm dinheiro para ir ao privado.
Os constrangimentos do défice impactaram muitos setores,
nomeadamente a educação e a saúde. Até quando?
É uma pergunta que tem de fazer ao governo e aos partidos
políticos. Desde que tomámos posse pedimos a todos os partidos com
assento na Assembleia da República que se comprometessem num pacto
de regime para o SNS. Se há matérias fundamentais em que temos de
estar de acordo, independentemente das ideologias, é na saúde. É
estranho como se conseguem colocar todos de acordo para fazer uma
lei do financiamento partidário e depois não conseguem entender-se
em setores estruturantes do Estado. A Saúde, a Educação e a Justiça
são pilares fundamentais. O SNS é um pilar da democracia e um fator
de coesão social não pode ser alvo de sucessivos desinvestimentos.
O nosso SNS, em termos de estruturação, não tem paralelo e
semelhança com outro país do mundo, o problema é que não está a
responder com a qualidade e segurança com que gostaríamos que
respondesse. Eu quero recordar que na sua mensagem de Natal o
Presidente da República alertou que o governo tinha de cuidar da
segurança das pessoas. E eu acrescento, cuidar do SNS é cuidar da
segurança das pessoas, simplesmente porque neste momento os utentes
não estão em segurança dentro do sistema.
Que soluções advoga para dotar o SNS de mais
verbas?
Para começar um entendimento partidário. A solução tem de passar
forçosamente por um aumento do valor orçamentado para a saúde. Como
se registou um desinvestimento muito acentuado nos últimos anos, em
especial na última década, não vale a pena andarmos a pedir às
pessoas para fazer mais com menos. Isso já não é possível. Há uns
anos verificou-se um problema de organização no SNS, agora o grande
obstáculo reside, efetivamente, na falta de dinheiro. Não vale a
pena arranjar outros argumentos.
Quais são as maiores carências?
Portugal nos últimos 43 anos, ou seja, o tempo decorrido desde o
25 de abril, construiu pouquíssimos hospitais. Os hospitais estão
velhos, obsoletos e em muitos deles chove lá dentro. Tudo
consequência do desinvestimento. É certo que se investiu na
construção de alguns no regime de Parceria Público Privada (PPP),
mas que acabam por ter dificuldades em termos de resposta, porque
funcionam com base em contratos-programa e os privados não estão lá
para não ter lucro. Por oposição, o SNS foi criado para não dar
lucro. Sabemos que é um serviço que tem de ser financiado pelos
nossos impostos, mas que não dá receita, só despesa. Ao contrário
do que pretendem fazer crer às pessoas, segundo dados que têm
proveniência na OCDE, Portugal é dos países que gasta menos do seu
PIB no SNS. E tem vindo a decrescer. Mas há mais indicadores em que
são sucessivos os reparos feitos pela OCDE e o FMI a Portugal. O
mesmo sucede no número de enfermeiros e médicos por mil habitantes.
Que também é dos mais baixos da Europa. No numero de enfermeiros
por mil habitantes, Portugal oscila entre os 6.1 e os 6.2, e a
média da OCDE é 9.2. O que significa que estamos na cauda da
Europa, atrás de países como a Estónia, a Eslovénia, a Letónia,
etc.
Foi supervisora da Linha Saúde 24, a atual Linha SNS, a que a
tutela chama «a porta de entrada no sistema». Os portugueses estão
conscientes que só devem dirigir-se ao hospital em último
caso?
Não estão, por um motivo muito simples. Repare: na década de 70
começou-se a advogar a ideia de que os cuidados de saúde primários
tinham de ser a porta de entrada do sistema com a carta de Alma-Ata
(NDR: Conferência internacional realizada no Cazaquistão, em 1978).
Eu nasci em 1976 e quando terminei o meu curso fiz um trabalho
sobre esse tema que apontava no mesmo sentido. O mesmo é dizer que
andamos todos há 40 anos a repetir o mesmo, mas nunca
avançámos.
E porquê?
Porque, por exemplo, há centros de saúde que funcionam como
repartições de finanças, das 9 às 5, eles não podem ser porta de
entrada do que quer que seja. E os portugueses dirigem-se onde
sabem que têm resposta 24 horas por dia. Uma pessoa que trabalha
todos os dias e tem um problema de saúde, confronta-se com a
dificuldade de marcar uma consulta nos centros de saúde ou nem
sequer consegue ser atendido nos cuidados de saúde primários devido
à exiguidade dos horários. Perante isto, os centros de saúde têm de
ter horários alargados, funcionar aos fins de semana e até ter uma
pessoa para atender o telefone - coisa que a maioria deles não tem.
Tudo isto é fruto do desinvestimento de anos e anos. Eu trabalhei
num centro de saúde de Lisboa que serve 48 mil pessoas e muitas
vezes era a única pessoa que lá estava a atender quem
chegava.
Mas ainda recentemente, por efeito do surto de gripe, os
centros de saúde tiveram reforço de horários e de recursos
humanos…
O problema é que a estratégia que existe é de reação.
Principalmente nos últimos dois anos nota-se uma falta de
capacidade para resolver os problemas de fundo. Infelizmente, o
governo só age quando as situações se tornam públicas, por isso
temos apelado à denúncia de situações concretas. Temos apresentado
muitas fotografias do estado da saúde em Portugal, mas aquilo a que
chamamos o «dossiê da vergonha» tem ainda muito mais exemplos
chocantes do que se passa. O Ministro da Saúde devia preocupar-se
muito com esta situação até porque ele é médico, fez um juramento
para com a vida de todos nós.
Em termos de formação,
defende a redução de vagas para a saúde e a criação de um plano
estratégico para a saúde. Como concretizar este
desejo?
Para começar deve pôr-se em contacto o Ministério da Saúde e o
Ministério do Ensino Superior. O Estado fica com todo o dinheiro
dos nossos impostos e perante isso devemos ter a noção de que
existe uma boa gestão. Ou seja, é preciso implementar "numerus
clausus" estratégicos e isso só é possível se estiverem em contacto
nas diversas áreas de ensino com os ministérios da respetiva
tutela. O número de enfermeiros que falta no SNS está identificado,
logo, em cada um é necessário saber quanto deve ser o financiamento
para o sistema público de ensino para poder dotar os meus hospitais
e centros de saúde daqueles profissionais da enfermagem. É
fundamental. Se não existir comunicação entre os ministérios é
evidente que a oferta vai ser desadequada.
O que vai estar em debate no V Congresso dos Enfermeiros
que se realiza em abril, em Lisboa?
Sobretudo a mudança e o futuro que nós queremos para a prestação
de cuidados de saúde. O SNS por vezes não acompanha e não dá
resposta às necessidades dos utentes. A Ordem dos Enfermeiros criou
recentemente a área de especialidade dos cuidados paliativos, uma
iniciativa que já devia ter acontecido, mas a realidade anda sempre
um pouco à nossa frente. Mas há outros temas, por exemplo o assédio
moral cada vez é maior dentro das instituições. E é muito
complicado denunciar estas situações, porque como o ministro da
Saúde bem sabe há perseguições dentro do SNS, simplesmente por se
defender os utentes.
Nuno Dias da Silva
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