Entrevista

Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses
“A intervenção psicológica feita por pessoas sem formação tem riscos para a saúde pública”

_MG_7827.jpgA florescente "indústria da felicidade" tem muitos «vendedores de banha da cobra» que conseguem chegar ao público muito por causa da reduzida literacia em saúde da população. A opinião é de Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), que defende ainda, no domínio da saúde mental, mais investimento, com o foco na prevenção.

Que quadro traça da saúde mental em Portugal? Falta dinheiro ou falta estratégia?
Falta, essencialmente, investimento, com um foco na prevenção. É a carência de recursos, de uma forma generalizada, na área da saúde mental que coloca verdadeiramente em causa os resultados que todos desejaríamos alcançar.  Após o governo e o próprio Presidente da República terem reconhecido que a saúde mental deve ser uma prioridade, seria fundamental que este desejo se materializasse no Orçamento do Estado para 2020.

Quando sublinha o lado da prevenção, refere-se aos cuidados de saúde primários?
Existe um consenso que o número de psicólogos nos cuidados de saúde primários é irrisório. Depois, resolvida a questão dos recursos, urge apostar estrategicamente em áreas - que estão mais do que identificadas e sinalizadas pelo poder político e outras entidades - que necessitam dessa intervenção. E refiro-me, em concreto, à depressão e à ansiedade, que merecem uma atenção especial.

O que é que tem sido feito?
A Ordem dos Psicólogos propôs, em 2017, ao anterior governo, um programa nacional para a prevenção da depressão. Seria urgente um reforço dedicado e específico de psicólogos, para atacar a depressão e a ansiedade, porque ambas são dois contribuintes de peso para o elevado consumo de psicofármacos, por exemplo.

Hoje em dia, são a depressão e ansiedade que entram, em grande medida, pelos consultórios dos psicólogos?
Os sinais e os próprios relatórios, nacionais e internacionais, apontam para uma incidência preocupante na população portuguesa das perturbações depressivas e de ansiedade, destacando-se estas face a outras problemáticas. Mas é difícil determinar com exatidão, pelo simples facto de o acesso aos cuidados de saúde primários e às consultas no privado estar «vedado» a muitas pessoas, seja pela incipiente resposta do sistema, seja pelas dificuldades de disponibilidade económica dos utentes. Convém sublinhar que os seguros de saúde em Portugal não cobrem as consultas de psicologia no privado. A própria ADSE também tem obstáculos na sua utilização - nomeadamente a necessidade de uma prescrição médica para o acesso a uma consulta.

Ainda é um tabu para a sociedade o recurso à ajuda especializada neste campo?
Ainda há algum estigma em recorrer ao apoio psicológico, mas a esse nível tem-se notado uma grande evolução. É uma prática cada vez mais aceite e mais seria se as pessoas tivessem um acesso mais facilitado a estes especialistas, seja por uma via mais económica, através do setor público, seja no SNS ou nas próprias escolas. Mas valha a verdade, que têm sido feitos substanciais progressos, nomeadamente ao nível do reconhecimento e da visibilidade do trabalho dos psicólogos portugueses, sabendo-se que esta é uma profissão organizada há apenas dez anos.

«Os portugueses estão adormecidos com ansiolíticos porque há intolerância geral à angústia». As palavras são do presidente da sociedade de psiquiatria e saúde mental. Porque é que a terapia não é uma alternativa à prescrição de medicamentos?
A prescrição de medicamentos é a solução mais acessível do ponto de vista económico e de conseguir chegar a…

_MG_7101.jpgPode ser mais concreto?
A medicação dá uma resposta mais rápida a sintomas e, nesse sentido, a pessoa consegue reduzir o desconforto num tempo muito curto e a baixo custo. O problema é que, na maior parte das situações, se está a atuar nos sintomas e não nas causas. Se a pessoa ultrapassar o seu problema e terminar com a medicação, não há inconveniente. O que acontece é que muitas delas ou demoram muito tempo para parar com a medicação ou já não o fazem. Nestes casos, o problema da pessoa não é ultrapassado, mas a dor é aliviada. A medicação funciona, por assim dizer, como um analgésico e não resolve a situação. E até pode acontecer um dia que a medicação já não seja eficaz. O ideal é que as pessoas saiam destes processos autónomas, mas nem sempre é o que sucede.

Tem-se debruçado bastante sobre a saúde mental nas organizações. Um bom gestor deve ser avaliado pelos resultados do seu desempenho, mas também pelo compromisso que assume com o bem-estar mental dos seus colaboradores em contexto laboral?
A responsabilização pelos resultados passa pela responsabilização pelo bem-estar. Iniciativas pontuais e desgarradas podem ter resultados imediatos, mas não ajudam na prevenção dos riscos psicossociais, nem ajudam a que as práticas de liderança sejam menos tóxicas e que haja menos "bullying" junto dos trabalhadores. É da qualidade das lideranças que depende o incutir de motivação e reconhecimento ao desempenho dos colaboradores, introduzindo uma cultura de prevenção, capaz de levar a menos absentismo e menos presenteísmo. Logo, conduz a mais produtividade e a mais rentabilidade. O bem-estar é uma parte integrante, indispensável, para que os gestores atinjam os resultados que pretendem com as organizações.
Relembro um estudo que não é propriamente recente, que resultou da recolha de dados ao longo de 15 anos em empresas norte-americanas cotadas em bolsa, e que constatou a correlação positiva entre a maior valorização bolsista e os melhores níveis em termos de prevenção e proteção em matéria de riscos psicossociais.  O que acontece na atualidade é que as organizações estão a menosprezar o contributo que o bem-estar tem para os resultados económicos e financeiros.

A denominada "indústria da felicidade" tornou-se, de alguma forma, o alfa e o ómega das sociedades modernas. Os livros de auto-ajuda e a psicologia positiva garantem que dependemos apenas de nós. Vê este fenómeno, em certa medida, como concorrência desleal à psicologia dita convencional?
Em certa medida sim, e refiro-me, em concreto a profissionais que desenvolvem uma atividade que está legalmente reservada aos psicólogos.  Falo em concreto dos "coach", dos motivadores, dos consultores de desenvolvimento humano e outros nomes que inventam para aí. No fundo, aplicam umas técnicas e uns instrumentos avulsos, que aprendem num fim de semana, como isso, por si só, fosse a receita para obter resultados. São práticas que não têm cobertura em evidência científica, o que não quer dizer que as pessoas que assistem às suas palestras ou intervenções não gostem, mas tenho dúvidas que sejam sustentáveis ao longo do tempo. Até porque não há estudos realizados que digam o contrário.

É uma atividade desenvolvida por não profissionais…
O ser profissional nesta área requer um conhecimento que se baseia em cinco anos de formação, um ano de estágio profissional e, por vezes, outros cinco anos para obter uma especialização. Isto, com muita formação permanente e acumulação de experiência pelo meio.  A "indústria da felicidade" continua a florescer e, paralelamente, a literacia em saúde da população ainda é baixa. Se fosse maior, o cidadão comum conseguiria distinguir melhor estas situações, muitas delas protagonizadas por bons comunicadores, com um discurso interessante, mas desprovidas de validade para aquilo que as pessoas procuram. É preciso cuidado e o Estado devia intervir de forma incisiva no mercado e com caráter mais preventivo, capaz de proteger os consumidores. A intervenção psicológica feita por pessoas sem formação tem riscos para a saúde publica.

Não querendo generalizar, mas depreendo das suas palavras, que, aqui e ali, há muitos vendedores de banha da cobra?
Sim, há vendedores de banha da cobra. Hoje com a capacidade de propagação de informação através das redes sociais e online é possível que as coisas fluam, passem de mão em mão e circulem como verdades, mesmo sem ter qualquer fundamento.  O que acontece é que há uma grande ânsia por obter do modo mais rápido possível a tal felicidade e vamos atrás de tudo o que nos pareça ser rápido para atingir esse objetivo, sem grande esforço, sofrimento e exposição.

Falemos agora dos psicólogos em ambiente escolar. Quantos profissionais estão nas escolas públicas?
Estamos numa fase de atualização de dados, mas estimamos que existam cerca de 1300 psicólogos. O que significa que estamos, praticamente em linha com os rácios previstos de psicólogo por aluno. Contudo, o número continua a ser insuficiente do ponto de vista regional. Para além disso, novas variantes acabaram por gerar desequilíbrios, que precisam de ser compensados.

A que se refere?
A nova legislação que alterou a autonomia das escolas, a flexibilidade curricular e os mecanismos de inclusão exige mais à escola e torna mais crítico o papel do psicólogo, logo ao nível da própria organização do sistema escolar. Isso faz com que a escola passe a recorrer mais aos profissionais, não tanto em termos das intervenções individuais ou de grupo, mas muitas vezes ao nível da consultoria e da organização da própria escola.
O governo, no final da anterior legislatura, reconhecia que o novo enquadramento legislativo das escolas exigia mais psicólogos. Portanto, perante esta realidade, os rácios têm de ser revistos e temos de encontrar um novo rácio indicativo face às novas exigências desta legislação. Finalmente, melhoraram-se os mecanismos de recondução dos psicólogos em situação precária, precavendo situações de descontinuidade em ambiente escolar. Mas de momento é crucial que sejam lançados os concursos para a vinculação e, deste modo, perceber-se quantas vagas vamos ter e em que territórios, garantindo uma intervenção continuada dos profissionais, tanto em situações sistemáticas, como em intervenções individuais ou de grupo.

Qual é a quota parte de responsabilidade dos psicólogos para o sucesso académico?
Não será apenas pelo contributo dos psicólogos, mas também não será alheio ao seu trabalho que se regista uma redução do abandono escolar, que o sucesso educativo tenha melhorado e que os próprios fenómenos de violência em espaço escolar - nomeadamente o "bullying" - também apresentaram reduções.

O consumo de psicofármacos e o "bullying" são preocupações centrais para os psicólogos escolares?
Os psicofármacos são um problema preocupante e não apenas em véspera de exames. Por seu turno, a questão da violência tem suscitado um especial trabalho e programas específicos para a prevenção desta temática, sem esquecer o esforço desenvolvido em termos da gestão de turmas, as diferenças entre os alunos e as suas especificidades várias. Mas o trabalho dos profissionais não se esgota aqui. Também é preciso estar junto da comunidade educativa, de forma a criar condições para ter mais docentes e reduzir as turmas.

Os últimos dados apontam para a existência de 23 mil psicólogos em Portugal. A especialização é determinante para singrar?
Esta é uma profissão tão fascinante quanto complexa, mas depende da área que se escolha e do contexto. Constata-se que existe algum desequilíbrio entre aquilo que é a formação dos futuros psicólogos, ao nível universitário, em termos das áreas de formação e o interesse dos psicólogos, e aquilo que o mercado está a receber.

Está a querer dizer que há psicologia clínica em excesso?
Há muita psicologia clínica. Para ter uma ideia: a Ordem organiza cerca de 1000 estágios por ano para o exercício obrigatório da profissão e cifra-se em 10 a média dos que vão para o SNS. Por outro lado, a procura dos psicólogos por parte das empresas é cada vez maior, em especial, no "marketing", área onde há défice de psicólogos.  Por isso, acredito que existe um desfasamento entre o número de psicólogos que são formados e a capacidade da sociedade para os absorver. E isto explica-se pelo seguinte: esta é uma profissão muito jovem. Os profissionais têm uma idade média de 38 anos, o que leva a que não se coloque como prioridade a necessidade de uma substituição geracional. Até 2030 estaremos sempre a crescer em número de profissionais, aproximando-nos dos 30 mil psicólogos, o que é considerável para um país como Portugal, que não é rico. Estamos a conseguir o feito de colocar psicólogos no mercado a uma velocidade a que os países ricos não conseguem.

É um contexto que o faz acreditar que esta é uma profissão com futuro?
Esta profissão tem futuro, mas não é um futuro imediato de facilidades. Vai exigir aos psicólogos que invistam cada vez mais na sua formação contínua e que olhem para áreas onde a sociedade necessita do seu contributo e que têm carência destes profissionais. Os psicólogos precisam de olhar para o mercado quando procuram a sua formação superior. A facilidade de encontrar trabalho e o próprio fator remuneratório são variáveis que ficam muito dependentes desta escolha.

Está a lançar um aviso à navegação aos atuais estudantes de psicologia e aos que pensam seguir esta carreira?
Precisamente. Gostava de reiterar que devem ter atenção à área que escolhem. E interiorizem o seguinte: hoje em dia, as pessoas não vão querer menos do que um excelente psicólogo. Essa exigência implica permanente trabalho de atualização, formação contínua e - não menos importante - de auto-cuidado, dando o exemplo na atenção que deve ter com a sua saúde psicológica. Estou em crer que o futuro será de valorização da profissão, fazendo fé nos relatórios que apontam para o aumento do investimento na dimensão psicológica, seja nas organizações, na escola, na saúde, no ambiente, na justiça, etc. O recurso a um psicólogo devidamente qualificado não tem necessariamente que ver com questões mentais graves. Pode também ser para auxiliar a entrada num novo desafio profissional, apostar numa nova carreira ou para jovens com dificuldades em atingir resultados escolares.

 

CARA DA NOTÍCIA

Consultor na área comportamental

Francisco Miranda Rodrigues nasceu em Torres Vedras, a 7 de abril de 1974. Assumiu o cargo de Bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses, a 30 de dezembro de 2016. É consultor na área comportamental, desenvolvimento pessoal e organizacional, liderança, eficácia pessoal e de equipas. Acumula mais de 15 anos de experiência na direção e gestão de recursos humanos, qualidade, ambiente e higiene, saúde e segurança no trabalho, treino de competências de comunicação, sócio-emocionais, mediação e resolução de conflitos. Tem formação pós-graduada em psicoterapia na Associação Portuguesa de Terapias Comportamental e Cognitiva (APTCC).

Nuno Dias da Silva
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