Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses
“A intervenção psicológica feita por pessoas sem formação tem riscos para a saúde pública”
A florescente "indústria da felicidade" tem muitos
«vendedores de banha da cobra» que conseguem chegar ao público
muito por causa da reduzida literacia em saúde da população. A
opinião é de Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos
Psicólogos Portugueses (OPP), que defende ainda, no domínio da
saúde mental, mais investimento, com o foco na prevenção.
Que quadro traça da saúde mental em Portugal? Falta
dinheiro ou falta estratégia?
Falta, essencialmente, investimento, com um foco na prevenção. É a
carência de recursos, de uma forma generalizada, na área da saúde
mental que coloca verdadeiramente em causa os resultados que todos
desejaríamos alcançar. Após o governo e o próprio Presidente
da República terem reconhecido que a saúde mental deve ser uma
prioridade, seria fundamental que este desejo se materializasse no
Orçamento do Estado para 2020.
Quando sublinha o lado da prevenção, refere-se aos cuidados
de saúde primários?
Existe um consenso que o número de psicólogos nos cuidados de saúde
primários é irrisório. Depois, resolvida a questão dos recursos,
urge apostar estrategicamente em áreas - que estão mais do que
identificadas e sinalizadas pelo poder político e outras entidades
- que necessitam dessa intervenção. E refiro-me, em concreto, à
depressão e à ansiedade, que merecem uma atenção especial.
O que é que tem sido feito?
A Ordem dos Psicólogos propôs, em 2017, ao anterior governo, um
programa nacional para a prevenção da depressão. Seria urgente um
reforço dedicado e específico de psicólogos, para atacar a
depressão e a ansiedade, porque ambas são dois contribuintes de
peso para o elevado consumo de psicofármacos, por exemplo.
Hoje em dia, são a depressão e ansiedade que entram, em
grande medida, pelos consultórios dos psicólogos?
Os sinais e os próprios relatórios, nacionais e internacionais,
apontam para uma incidência preocupante na população portuguesa das
perturbações depressivas e de ansiedade, destacando-se estas face a
outras problemáticas. Mas é difícil determinar com exatidão, pelo
simples facto de o acesso aos cuidados de saúde primários e às
consultas no privado estar «vedado» a muitas pessoas, seja pela
incipiente resposta do sistema, seja pelas dificuldades de
disponibilidade económica dos utentes. Convém sublinhar que os
seguros de saúde em Portugal não cobrem as consultas de psicologia
no privado. A própria ADSE também tem obstáculos na sua utilização
- nomeadamente a necessidade de uma prescrição médica para o acesso
a uma consulta.
Ainda é um tabu para a sociedade o recurso à ajuda
especializada neste campo?
Ainda há algum estigma em recorrer ao apoio psicológico, mas a esse
nível tem-se notado uma grande evolução. É uma prática cada vez
mais aceite e mais seria se as pessoas tivessem um acesso mais
facilitado a estes especialistas, seja por uma via mais económica,
através do setor público, seja no SNS ou nas próprias escolas. Mas
valha a verdade, que têm sido feitos substanciais progressos,
nomeadamente ao nível do reconhecimento e da visibilidade do
trabalho dos psicólogos portugueses, sabendo-se que esta é uma
profissão organizada há apenas dez anos.
«Os portugueses estão adormecidos com ansiolíticos porque
há intolerância geral à angústia». As palavras são do presidente da
sociedade de psiquiatria e saúde mental. Porque é que a terapia não
é uma alternativa à prescrição de medicamentos?
A prescrição de medicamentos é a solução mais acessível do ponto de
vista económico e de conseguir chegar a…
Pode ser mais concreto?
A medicação dá uma resposta mais rápida a sintomas e, nesse
sentido, a pessoa consegue reduzir o desconforto num tempo muito
curto e a baixo custo. O problema é que, na maior parte das
situações, se está a atuar nos sintomas e não nas causas. Se a
pessoa ultrapassar o seu problema e terminar com a medicação, não
há inconveniente. O que acontece é que muitas delas ou demoram
muito tempo para parar com a medicação ou já não o fazem. Nestes
casos, o problema da pessoa não é ultrapassado, mas a dor é
aliviada. A medicação funciona, por assim dizer, como um analgésico
e não resolve a situação. E até pode acontecer um dia que a
medicação já não seja eficaz. O ideal é que as pessoas saiam destes
processos autónomas, mas nem sempre é o que sucede.
Tem-se debruçado bastante sobre a saúde mental nas
organizações. Um bom gestor deve ser avaliado pelos resultados do
seu desempenho, mas também pelo compromisso que assume com o
bem-estar mental dos seus colaboradores em contexto
laboral?
A responsabilização pelos resultados passa pela responsabilização
pelo bem-estar. Iniciativas pontuais e desgarradas podem ter
resultados imediatos, mas não ajudam na prevenção dos riscos
psicossociais, nem ajudam a que as práticas de liderança sejam
menos tóxicas e que haja menos "bullying" junto dos trabalhadores.
É da qualidade das lideranças que depende o incutir de motivação e
reconhecimento ao desempenho dos colaboradores, introduzindo uma
cultura de prevenção, capaz de levar a menos absentismo e menos
presenteísmo. Logo, conduz a mais produtividade e a mais
rentabilidade. O bem-estar é uma parte integrante, indispensável,
para que os gestores atinjam os resultados que pretendem com as
organizações.
Relembro um estudo que não é propriamente recente, que resultou da
recolha de dados ao longo de 15 anos em empresas norte-americanas
cotadas em bolsa, e que constatou a correlação positiva entre a
maior valorização bolsista e os melhores níveis em termos de
prevenção e proteção em matéria de riscos psicossociais. O
que acontece na atualidade é que as organizações estão a
menosprezar o contributo que o bem-estar tem para os resultados
económicos e financeiros.
A denominada "indústria da felicidade" tornou-se, de alguma
forma, o alfa e o ómega das sociedades modernas. Os livros de
auto-ajuda e a psicologia positiva garantem que dependemos apenas
de nós. Vê este fenómeno, em certa medida, como concorrência
desleal à psicologia dita convencional?
Em certa medida sim, e refiro-me, em concreto a profissionais que
desenvolvem uma atividade que está legalmente reservada aos
psicólogos. Falo em concreto dos "coach", dos motivadores,
dos consultores de desenvolvimento humano e outros nomes que
inventam para aí. No fundo, aplicam umas técnicas e uns
instrumentos avulsos, que aprendem num fim de semana, como isso,
por si só, fosse a receita para obter resultados. São práticas que
não têm cobertura em evidência científica, o que não quer dizer que
as pessoas que assistem às suas palestras ou intervenções não
gostem, mas tenho dúvidas que sejam sustentáveis ao longo do tempo.
Até porque não há estudos realizados que digam o contrário.
É uma atividade desenvolvida por não
profissionais…
O ser profissional nesta área requer um conhecimento que se baseia
em cinco anos de formação, um ano de estágio profissional e, por
vezes, outros cinco anos para obter uma especialização. Isto, com
muita formação permanente e acumulação de experiência pelo
meio. A "indústria da felicidade" continua a florescer e,
paralelamente, a literacia em saúde da população ainda é baixa. Se
fosse maior, o cidadão comum conseguiria distinguir melhor estas
situações, muitas delas protagonizadas por bons comunicadores, com
um discurso interessante, mas desprovidas de validade para aquilo
que as pessoas procuram. É preciso cuidado e o Estado devia
intervir de forma incisiva no mercado e com caráter mais
preventivo, capaz de proteger os consumidores. A intervenção
psicológica feita por pessoas sem formação tem riscos para a saúde
publica.
Não querendo generalizar, mas depreendo das suas palavras,
que, aqui e ali, há muitos vendedores de banha da
cobra?
Sim, há vendedores de banha da cobra. Hoje com a capacidade de
propagação de informação através das redes sociais e online é
possível que as coisas fluam, passem de mão em mão e circulem como
verdades, mesmo sem ter qualquer fundamento. O que acontece é
que há uma grande ânsia por obter do modo mais rápido possível a
tal felicidade e vamos atrás de tudo o que nos pareça ser rápido
para atingir esse objetivo, sem grande esforço, sofrimento e
exposição.
Falemos agora dos psicólogos em ambiente escolar. Quantos
profissionais estão nas escolas públicas?
Estamos numa fase de atualização de dados, mas estimamos que
existam cerca de 1300 psicólogos. O que significa que estamos,
praticamente em linha com os rácios previstos de psicólogo por
aluno. Contudo, o número continua a ser insuficiente do ponto de
vista regional. Para além disso, novas variantes acabaram por gerar
desequilíbrios, que precisam de ser compensados.
A que se refere?
A nova legislação que alterou a autonomia das escolas, a
flexibilidade curricular e os mecanismos de inclusão exige mais à
escola e torna mais crítico o papel do psicólogo, logo ao nível da
própria organização do sistema escolar. Isso faz com que a escola
passe a recorrer mais aos profissionais, não tanto em termos das
intervenções individuais ou de grupo, mas muitas vezes ao nível da
consultoria e da organização da própria escola.
O governo, no final da anterior legislatura, reconhecia que o novo
enquadramento legislativo das escolas exigia mais psicólogos.
Portanto, perante esta realidade, os rácios têm de ser revistos e
temos de encontrar um novo rácio indicativo face às novas
exigências desta legislação. Finalmente, melhoraram-se os
mecanismos de recondução dos psicólogos em situação precária,
precavendo situações de descontinuidade em ambiente escolar. Mas de
momento é crucial que sejam lançados os concursos para a vinculação
e, deste modo, perceber-se quantas vagas vamos ter e em que
territórios, garantindo uma intervenção continuada dos
profissionais, tanto em situações sistemáticas, como em
intervenções individuais ou de grupo.
Qual é a quota parte de responsabilidade dos psicólogos
para o sucesso académico?
Não será apenas pelo contributo dos psicólogos, mas também não será
alheio ao seu trabalho que se regista uma redução do abandono
escolar, que o sucesso educativo tenha melhorado e que os próprios
fenómenos de violência em espaço escolar - nomeadamente o
"bullying" - também apresentaram reduções.
O consumo de psicofármacos e o "bullying" são preocupações
centrais para os psicólogos escolares?
Os psicofármacos são um problema preocupante e não apenas em
véspera de exames. Por seu turno, a questão da violência tem
suscitado um especial trabalho e programas específicos para a
prevenção desta temática, sem esquecer o esforço desenvolvido em
termos da gestão de turmas, as diferenças entre os alunos e as suas
especificidades várias. Mas o trabalho dos profissionais não se
esgota aqui. Também é preciso estar junto da comunidade educativa,
de forma a criar condições para ter mais docentes e reduzir as
turmas.
Os últimos dados apontam para a existência de 23 mil
psicólogos em Portugal. A especialização é determinante para
singrar?
Esta é uma profissão tão fascinante quanto complexa, mas depende da
área que se escolha e do contexto. Constata-se que existe algum
desequilíbrio entre aquilo que é a formação dos futuros psicólogos,
ao nível universitário, em termos das áreas de formação e o
interesse dos psicólogos, e aquilo que o mercado está a
receber.
Está a querer dizer que há psicologia clínica em
excesso?
Há muita psicologia clínica. Para ter uma ideia: a Ordem organiza
cerca de 1000 estágios por ano para o exercício obrigatório da
profissão e cifra-se em 10 a média dos que vão para o SNS. Por
outro lado, a procura dos psicólogos por parte das empresas é cada
vez maior, em especial, no "marketing", área onde há défice de
psicólogos. Por isso, acredito que existe um desfasamento
entre o número de psicólogos que são formados e a capacidade da
sociedade para os absorver. E isto explica-se pelo seguinte: esta é
uma profissão muito jovem. Os profissionais têm uma idade média de
38 anos, o que leva a que não se coloque como prioridade a
necessidade de uma substituição geracional. Até 2030 estaremos
sempre a crescer em número de profissionais, aproximando-nos dos 30
mil psicólogos, o que é considerável para um país como Portugal,
que não é rico. Estamos a conseguir o feito de colocar psicólogos
no mercado a uma velocidade a que os países ricos não
conseguem.
É um contexto que o faz acreditar que esta é uma profissão
com futuro?
Esta profissão tem futuro, mas não é um futuro imediato de
facilidades. Vai exigir aos psicólogos que invistam cada vez mais
na sua formação contínua e que olhem para áreas onde a sociedade
necessita do seu contributo e que têm carência destes
profissionais. Os psicólogos precisam de olhar para o mercado
quando procuram a sua formação superior. A facilidade de encontrar
trabalho e o próprio fator remuneratório são variáveis que ficam
muito dependentes desta escolha.
Está a lançar um aviso à navegação aos atuais estudantes de
psicologia e aos que pensam seguir esta carreira?
Precisamente. Gostava de reiterar que devem ter atenção à área que
escolhem. E interiorizem o seguinte: hoje em dia, as pessoas não
vão querer menos do que um excelente psicólogo. Essa exigência
implica permanente trabalho de atualização, formação contínua e -
não menos importante - de auto-cuidado, dando o exemplo na atenção
que deve ter com a sua saúde psicológica. Estou em crer que o
futuro será de valorização da profissão, fazendo fé nos relatórios
que apontam para o aumento do investimento na dimensão psicológica,
seja nas organizações, na escola, na saúde, no ambiente, na
justiça, etc. O recurso a um psicólogo devidamente qualificado não
tem necessariamente que ver com questões mentais graves. Pode
também ser para auxiliar a entrada num novo desafio profissional,
apostar numa nova carreira ou para jovens com dificuldades em
atingir resultados escolares.
CARA DA
NOTÍCIA
Consultor na área
comportamental
Francisco Miranda Rodrigues nasceu
em Torres Vedras, a 7 de abril de 1974. Assumiu o cargo de
Bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses, a 30 de dezembro de
2016. É consultor na área comportamental, desenvolvimento pessoal e
organizacional, liderança, eficácia pessoal e de equipas. Acumula
mais de 15 anos de experiência na direção e gestão de recursos
humanos, qualidade, ambiente e higiene, saúde e segurança no
trabalho, treino de competências de comunicação, sócio-emocionais,
mediação e resolução de conflitos. Tem formação pós-graduada em
psicoterapia na Associação Portuguesa de Terapias Comportamental e
Cognitiva (APTCC).
Nuno Dias da Silva
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