Artigo
A crise da esperança
Adormecer as grandes questões à força de
hipersensibilidades clubísticas, patologicamente (com muito
economicismo à mistura) ampliadas na Comunicação Social - eis aí o
rápido panorama do ambiente em que o nosso futebol, muitas vezes,
se movimenta. Os problemas desportivos do país são, sem dúvida,
desportivos mas condicionados, no chão da realidade, pelo estofo
moral dos seus agentes. Não são dissociáveis uma revolução moral e
um desporto novo. Para quando uma revolução moral, no teor da vida
desportiva dos atletas, dos técnicos, dos dirigentes? Como é
possível comentar e criticar o "fenómeno desportivo", sem utilizar
uma base mínima de conhecimentos científicos e permanecendo
teimosamente num palavreado próprio tão-só de pessoas sem senso nem
escrúpulos e marcado pelo ódio e pela intolerância? Em três campos
deverão movimentar-se os que pretendem comentar o desporto: campo
dos conhecimentos, campo dos valores e campo da ação.
Toda a gente de bom senso aceita a evidência que só praticando e
estudando é possível alcançar o caminho certo na "procura desta
verdade". Ora, há pessoas, habituais na freima crítica, que nem
praticam (como atletas, ou dirigentes, ou árbitros, ou treinadores
e técnicos de saúde) nem investigam nem estudam e, no entanto,
manifestam uma irreprimível tendência para se julgarem
"trabalhadores do conhecimento", na área do desporto. Assim, porque
não dispõem de qualquer ideia significativa e determinante, só lhes
resta a truculência desmedida com que achincalham muitos dos seus
adversários. O desporto, para esta gente, parece uma luta sem
tréguas contra inimigos, o que o desporto não é, mesmo nas suas
formas mais aparatosas e combativas. De facto, a deriva para um
belicismo verbal, consequente à perda de significação, representa
um estado de consciência diminuída. E é com esta abdicação da
consciência que, em muitos casos, se comenta e critica o desporto.
Desonestidade intelectual? Eu sei! Eu sei! Nem sempre com
honestidade intelectual se vendem jornais e captam
audiências...
Como se sabe, há quem venha tentando dizer (com as dúvidas
inerentes a quem sabe que nada sabe) que o científico, no desporto,
não é o fisiológico tão-só, mas a complexidade humana, que o
desporto deverá estudar-se (e praticar-se) no âmbito das ciências
humanas, que o treino desportivo (e a educação física) era um
cartesianismo puro. Não poderei esquecer, por isso, no meio da
desconfiança que me rodeava, o apoio que recebi de José Maria
Pedroto, um treinador de futebol que pretendeu ultrapassar (como
poucos o fizeram antes dele, no futebol) a superficialidade, por
vezes rotunda, das ideias e das aspirações, no âmbito da sua
profissão. Só que este cartesianismo ainda há gente que se compraz
em apresentá-lo como o melhor dos métodos. Até alguns professores
do ensino secundário. Relembro um livro de António José Saraiva:
"condicionar o fomento da escola às necessidades e recursos
existentes em dado momento é (quaisquer que sejam as razões e
intenções de tal critério) condenar a colectividade nacional à
pobreza crescente. O princípio justo é, pelo contrário, começar
pela escola, como primeiro e mais eficaz meio de vencer o círculo
vicioso da pobreza. A escola deve ser planeada, não em função do
que a nação é, mas em função do que ela há-de ser; deve ser
concebida na perspectiva e na escala do futuro (…). O que acabo de
expor é uma ilustração do postulado segundo o qual a escola não
prepara para o presente, mas para o futuro (…). Sendo o futuro, em
relação ao presente um ideal, torna-se claro que a escola prepara
para uma sociedade ideal, isto é, mais perfeita do que aquela em
que vivemos. Por outras palavras, não é função da escola consolidar
as instituições e os hábitos e as teorias da sociedade existente;
compete-lhe antes ser factor de um deve-ser social. A escola está
criando o futuro; é um elemento transformador" (dicionário
crítico de algumas ideias e palavras correntes,
Publicações Europa-América, Lisboa, 1960, p. 58/59). Tem 60 anos
este livro! E mantem-se atual!
"Não é função da escola consolidar as instituições e os hábitos e
as teorias da sociedade existente". E, no entanto, quem defende
novas ideias é, num primeiro momento, batido pelos mais
contraditórios ventos da intolerância e da desconfiança. Mas...
adiante. Cabe portanto aos professores do ensino secundário,
designadamente aos professores de educação física, atalhar a tempo
a efervescência sem rumo do dualismo antropológico cartesiano,
ainda vivo, e informar os alunos que o desporto é, sem margem para
dúvidas, um humanismo e que sem esta filosofia o desporto não passa
de uma farsa - uma farsa que por vezes chega ao impudor!
A imaturidade dos alunos e dos atletas é, quase sempre, o espelho
da imaturidade dos seus professores e dos seus treinadores. Li, com
atenção e respeito (e por isso a conservo) a entrevista do
engenheiro Fernando Santos, treinador da seleção nacional de
futebol, à revista do Expresso (2015/11/14). À pergunta da revista:
"Como é que quer ser recordado?" Fernando Santos responde: "Quero
ser lembrado como bom pai, como bom filho, como bom marido, como
bom amigo". E o jornalista, de certo surpreso pela resposta do
"engenheiro do penta", onde o futebol parecia não caber, insistiu:
"E o futebol?". Aqui, Fernando Santos disse, em poucas palavras, os
valores que lhe norteiam a vida: "Não importa. O futebol não
significa nada, se o compararmos à paternidade ou à amizade. Nada.
Zero". Acompanho o engenheiro Fernando Santos, quando escrevo: "O
futebol é a coisa mais importante das coisas pouco importantes, é o
máximo do mínimo". E, tanto o treinador da seleção nacional como eu
(e aceito, mais ele do que eu) sabemos que o futebol é o fenómeno
cultural de maior magia do mundo contemporânea. Só que, acima do
futebol, há os valores que fundam a nossa civilização e
decorrentes da filosofia grega, do espírito jurídico latino,
da crítica do iluminismo e, sobre o mais, da mensagem
judaico-cristã. O "amai-vos uns aos outros" do Evangelho, no meu
modesto entender, divide em dois a história da humanidade...
O futebol tem de converter- -se num espaço que nos leve ao
encontro fraterno com os nossos adversários (sem perda da
competitividade e da vontade do triunfo) e não ao separatismo
faccioso. Urgente se torna, por isso, que os dirigentes desportivos
e todos os "fazedores de opinião" façam dos textos fundadores do
desporto moderno o seu "vade mecum". Pura utopia? Relembro Ortega y
Gasset: "como ser utópico, que vive sempre com anterioridade a si
mesmo", no ser humano coincidem a utopia e a esperança. Ora, se a
esperança é de compreensão mais óbvia, importa clarificar a noção
de utopia. E é na literatura que a "utopia" nasce, ou seja, no país
edénico, descrito na Utopia (1516) de T. More. Com o seu emprego
continuado, o conceito deixou o espaço literário, passando a
designar qualquer projeto de uma sociedade imaginada e perfeita.
Assim, as utopias condensaram (condensam) a contestação à
conjuntura presente e a fascinação por um possível ideal. Ernst
Bloch, Horkheimer e Marcuse reabilitaram a noção de utopia, com
receio que o esmorecimento da utopia permitisse um amplo
assentimento da política injusta estabelecida. O desporto
(e portanto o futebol) não é violento, tem a violência que nós nele
colocamos, através das nossas palavras, dos nossos atos, do nosso
comportamento em suma. Do que venho de escrever se infere
que compete ao desporto (e portanto ao futebol) ser um espaço com
alguma utopia e muita esperança, cabe-lhe mesmo a tarefa de
educador da esperança, mormente aos mais jovens, muitas vezes
perdidos no meio da intranquilidade social e política do nosso
tempo. Crise da esperança? O desporto (e portanto o futebol) deve
ampliar e alentar a utopia de um mundo novo, de um homem novo! Com
esperança!
Manuel Sérgio
Professor catedrático convidado aposentado da F.M.H.