Cultura

Bocas do Galinheiro
Na despedida de Nora Ephron e Kaneto Shindo

nora-ephron.jpgHá cenas que ficam para sempre na memória do espectador, e, algumas vezes, superam o filme onde apareceram. Uma delas é sem dúvida aquela em que Meg Ryan simula um orgasmo à mesa dum restaurante na comédia romântica "Um Amor Inevitável" (When Harry Meets Sally, 1989), de Rob Reiner, perante um estupefacto Billy Crystal, e uma assistência de clientes, entre os quais uma senhora de meia-idade que, sonhadora, quer tomar o mesmo que a Meg, num filme à volta da (im)possibilidade de uma amizade entre um homem e uma mulher. É o que Harry e Sally nos vão revelar, ou não, mesmo depois de uma tórrida e inesperada noite a dois, neste argumento de Nora Ephron que nos deixou no passado dia 26 de Junho, em Nova Iorque.

Argumentista e realizadora, conhecida pelas suas comédias românticas, para além da referida, com a qual foi nomeada para o Oscar de Melhor Argumento Original, a segunda, já que em 1984 já havia recebido igual nomeação com "Reacção em Cadeia" (Silkwood, 1983), de Mike Nichols, escrito em parceria com Alice Arlen, o seu primeiro argumento cinematográfico, um drama à volta de Karen Silkwood (Meryl Streep) trabalhadora de uma unidade de transformação de plutónio, contaminada e assassinada para evitar que contasse o que sabia sobre as condições de trabalho na fábrica e acabar com a sua luta contra o nuclear, vindo de novo a ser nomeada por mais uma comédia romântica, "Sintonia do Amor" (Sleepless in Seatle, 1993) de que foi também realizadora, esta à volta de um rapaz, com saudades da mãe recentemente falecida, que telefona para um programa de rádio para conseguir arranjar uma mulher para casar com um pai. Bem à maneira de "O Grande Amor da Minha Vida" (An Affair to Remember, 1957), de Leo McCarey, citado no filme, marca o encontro entre o pai (Tom Hanks) e uma mulher (Meg Ryan) que entretanto responde ao pedido do miúdo, para o cimo do Empire State Building. Após algumas peripécias, a coisa acontece, como não podia deixar de ser.

Nascida a 19 de Maio de 1941 em Nova Iorque, Ephron, filha de argumentistas, viveu em Beverly Hills, tendo enveredado pelo jornalismo e pela escrita, tendo sido jornalista em títulos como o The New York Times, aliás foi casada com o também jornalista Carl Bernstein, um dois jornalistas que denunciaram o que ficou conhecido como o Caso Watergate, que levou à demissão do presidente Nixon e que deu origem ao filme "Os Homens do Presidente", em cujo livro Ephron colaborou, estreou-se na realização com "A Minha Mãe é um Problema" (This is My Life), um drama com Julie Kavner, uma ex-vendedora que se torna famosa na stand-up comedy, mas que negligencia as filhas.

Mas é com "Sintonia de Amor" que ganha a fama e o proveito de a rainha da comédia romântica norte-americana, título confirmado depois em "Você Tem Uma Mensagem" (You've Got Mail, 1998), novamente com Meg Ryan e Tom Hanks, uma versão moderna de "A Loja da Esquina" (The Shop Artound The Corner, 1940) de Ernst Lubitch, com Margaret Sulavan e James Stewart, segunda a peça de Miklós Lázsló, em que dois rivais no negócio dos livros, se apaixonam, agora, na troca de e-mails na internet.

Quer como argumentista quer como realizadora, o seu nome está ligado a filmes como "A Difícil Arte de Amar", 1986, de Mike Nichols "Linhas Cruzadas", 2000, de Diane Keaton, co-argumentista com a irmã Delia, "Casei com Uma Feiticeira", 2005 ou "Julia & Julia", o seu último filme, de 2009.

Recentemente falecido, a 29 de Maio, Kaneto Shindo, de 100 anos, então o segundo mais velho realizador em actividade (o primeiro como se sabe é Manoel de Oliveira, que já leva 103 anos de vida), nasceu em Hiroxima, facto que não será alheio à sua obra "Filhos de Hiroxima", de 1952, um marco no cinema japonês, em que com mestria capta o sentimento que perpassa a sociedade nipónica, e a sua cidade, perante a devastação provocada pela bomba atómica.

Com uma filmografia variada, abarca desde temas eróticos, terror, drama até à comédia, num cinema activo e comprometido de que poucos títulos passaram em Portugal. Excepção para "O Gato Preto do Túmulo" (Yabu No Naka No Kuroneko, 1968) exibido há uns anos na Cinemateca, com legendas em espanhol, no mês do cinema japonês, um filme que aborda o fantástico e o terror. Uma mulher e a filha são brutalmente violadas e assassinadas por soldados durante os tempos das guerras civis. Mais tarde, uma série de samurais, que regressa da guerra naquela região, é encontrada misteriosamente assassinada com as gargantas dilaceradas.

"A Ilha Nua" (Hadaka No Shima, 1960), vencedor do Festival de Valladolid, um filme naturalista sobre o quotidiano de uma família numa das ilhotas do Japão, cuja subsistência depende da agricultura mas a quem falta um bem fundamental: água doce e do que é preciso para a ir buscar, é outro dos bons filmes de Shindo, que conta ainda na sua filmografia um documentário sobre o grande mestre do cinema japonês Kenji Mizoguchi, de 1975, "Aru eiga-kantoku no shogai". O seu último filme "Postcard" (Ichimai no hagaki, 2010) foi o candidato do Japão para o melhor filme em língua estrangeira aos Oscar de 2012. Aos 100 anos, é obra!

Duas personalidades diferentes, dois estilos de fazer cinema, mas que, repetimo-nos, o deixaram mais pobre.

Até à próxima, e bons filmes!

Luís Dinis da Rosa
 
 
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