Opinião

Memórias Ficcionadas
Explicadores

8. L.Souta-1.jpg«trataram de arranjar explicadores decididos a meterem-me na cabeça, à força, o que me recusava a aprender»

(Livro de Crónicas, António Lobo Antunes)

Nos sete anos de liceu, Arcílio, teve seis explicadores: a vizinha Lota, o irmão Tó, o universitário Túlio, o professor Saladino, o colega Licélio, e a finalista Nela.

A irmã do seu amigo Caneira, a Lota, uns anos mais velha e já a trabalhar como analista, tomou conta da "sala de estudo" caseira, durante o 1º ano de liceu, por ser jovem de confiança e muito atilada.

- Não há trabalhos de casa? - pergunta disparada pela supervisora do "estudo acompanhado" com o propósito de os descolar do rádio que passava Oh, Pretty Woman de Roy Orbison. Os TPC marcavam o arranque ritualizado daquelas longas tardes de trabalho que só findavam quando a mãe o chamava, da porta ao lado, para jantar. A Lota não recebia qualquer pagamento. O seu labor entrava no sistema da permuta de serviços de uma boa e velha vizinhança. A experiência findou com o chumbo do Caneira que, de castigo, foi, como interno, para os Pupilos.

Nas férias que antecederam a entrada de Arcílio no 2º ciclo, Tó, o seu irmão mais velho, qual empreendedorista antes do tempo, conseguiu convencer os pais das "necessidades" em Inglês, a nova língua estrangeira.

- Ele é "duro de ouvido", como se viu com o Francês - sentenciou, passando de imediato a sobrevalorizar os seus préstimos de explicador e a negociar os montantes daquele "enorme sacrifício" que o ocuparia nas suas (merecidas) férias.

As lições foram escassas pois o Tó estava mais interessado nos pagamentos que lhe permitiam alimentar o vício (precoce) do tabaco. Mas o facto é que as "lições" de Inglês básico se mostraram de grande utilidade… no 1º período, em que impressionou a turma com a sua pronúncia very british e demais despacho linguístico. Mas aquilo não passou de fogo-fátuo.

Pior eram as dificuldades crónicas com a Matemática. Face à negativa do 1º período, resolveram pô-lo, de imediato, na explicação.

- Oh mãe, mas o que eu precisava era em Química - quase implorava, ao lembrar-se da incapacidade total para descodificar as (cabalísticas) fórmulas, no compêndio de 4º ano.

Mas na Póvoa não havia ninguém disponível para tal. Naquela vila operária, doutores, só o médico Arquimino, professores, só o Silva Lobo, e engenheiros, só os da Soda; os primeiros já tinham com que se entreter no ganha pão e os últimos viviam num bairro à parte, o das vivendas, lá para os lados da grande fábrica. Na verdade, escasseavam os explicadores.

Ali mesmo, na Rua da República, vivia o Túlio, estudante do Técnico, com fama de Xpert na ciência dos números. Vivia com a mãe e a avó. O pai, um militar da Força Aérea, via-se pouco. Andava, naturalmente, nas nuvens. Arcílio passou a receber lições de Matemática, duas vezes por semana, aos fins de tarde. A avó de Túlio abria-lhe a porta, sempre com um sorriso acolhedor, e encaminhava-o para a sala de jantar onde ia ser servido o repasto académico. Nunca apreciou aquela ementa. Ia para ali deveras contrariado. Aquela hora parecia do tamanho da légua…da póvoa. Túlio marcava-lhe os exercícios no Palma Fernandes e, pouco depois, saía para a cavaqueira, que seguia animada na cozinha. Passados uns bons minutos regressava para constatar que Arcílio tinha empancado a meio da equação. Então, na sua desmesurada paciência e pleno de didactismo, lá desmontava, num ápice, o nó górdio do problema.

No curso complementar, a Matemática voltou a causar danos. No 6º ano, reprovou, oficialmente, "por faltas" mas isso foi a saída airosa para evitar vergonha maior, a de uma nota baixa na pauta. Acabou por fazer o 7º ano "por fora": o Liceu facultou aulas extras (e pagas), durante o ano lectivo, dadas pelo seu ex-professor do 6º ano; o sisudo Saladino, impressionava-os pela sua segurança e pela meticulosidade com que aproveitava o espaço do quadro preto num garatujar de algarismos sem quase recorrer ao apagador. Mas para o exame, que Arcílio deixou, naturalmente, para segunda época, precisou de uma ajuda extra, o seu dilecto condiscípulo Licélio; este pretendia subir a nota para 14, para dispensar da aptidão a Económicas, Arcílio tentava apenas passar o ano. As sessões de estudo compartido eram, em tudo, semelhantes "à explicação"; só que o sapiente, não alcançou o objectivo, e o aprendente de seu par lá foi à oral arrancar o tão almejado 10.

Mas a surpresa, tinha sido o (in)esperado desaire em Inglês. Ambos tiveram negativa, no exame de Junho. Houve então que recorrer aos bons ofícios de uma finalista de Germânicas, que os preparou, em sessões individuais, durante todo o Verão. A vontade de leccionar era tal que Nela, durante o tempo da lição, não abandonava a sala, num face-to-face metodológico ditando apontamentos como se estivesse já a dar uma aula. Tal empenhamento e eficácia tornou-se contagiante: os dois acabaram por ter 14, o que os dispensava da oral.

- O rapaz saiu-nos caro, este ano! - desabafou o pai ao tomar conhecimento da conclusão do curso geral dos liceus.

 
 
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