Memórias Ficcionadas
Explicadores
«trataram de arranjar explicadores
decididos a meterem-me na cabeça, à força, o que me recusava a
aprender»
(Livro de Crónicas, António Lobo Antunes)
Nos sete anos de liceu, Arcílio,
teve seis explicadores: a vizinha Lota, o irmão Tó, o universitário
Túlio, o professor Saladino, o colega Licélio, e a finalista
Nela.
A irmã do seu amigo Caneira, a
Lota, uns anos mais velha e já a trabalhar como analista, tomou
conta da "sala de estudo" caseira, durante o
1º ano de liceu, por ser jovem de
confiança e muito atilada.
- Não há trabalhos de casa? -
pergunta disparada pela supervisora do "estudo acompanhado" com o
propósito de os descolar do rádio que passava Oh, Pretty
Woman de Roy Orbison. Os TPC marcavam o arranque ritualizado
daquelas longas tardes de trabalho que só findavam quando a mãe o
chamava, da porta ao lado, para jantar. A Lota não recebia qualquer
pagamento. O seu labor entrava no sistema da permuta de serviços de
uma boa e velha vizinhança. A experiência findou com o chumbo do
Caneira que, de castigo, foi, como interno, para os Pupilos.
Nas férias que antecederam a
entrada de Arcílio no 2º ciclo, Tó, o seu
irmão mais velho, qual empreendedorista antes do tempo, conseguiu
convencer os pais das "necessidades" em Inglês, a nova língua
estrangeira.
- Ele é "duro de ouvido", como se
viu com o Francês - sentenciou, passando de imediato a
sobrevalorizar os seus préstimos de explicador e a negociar os
montantes daquele "enorme sacrifício" que o ocuparia nas suas
(merecidas) férias.
As lições foram escassas pois o Tó
estava mais interessado nos pagamentos que lhe permitiam alimentar
o vício (precoce) do tabaco. Mas o facto é que as "lições" de
Inglês básico se mostraram de grande utilidade… no
1º período, em que impressionou a turma
com a sua pronúncia very british e demais despacho
linguístico. Mas aquilo não passou de fogo-fátuo.
Pior eram as dificuldades crónicas
com a Matemática. Face à negativa do 1º
período, resolveram pô-lo, de imediato, na explicação.
- Oh mãe, mas o que eu precisava
era em Química - quase implorava, ao lembrar-se da incapacidade
total para descodificar as (cabalísticas) fórmulas, no compêndio de
4º ano.
Mas na Póvoa não havia ninguém
disponível para tal. Naquela vila operária, doutores, só o médico
Arquimino, professores, só o Silva Lobo, e engenheiros, só os da
Soda; os primeiros já tinham com que se entreter no ganha
pão e os últimos viviam num bairro à parte, o das vivendas, lá para
os lados da grande fábrica. Na verdade, escasseavam os
explicadores.
Ali mesmo, na Rua da República,
vivia o Túlio, estudante do Técnico, com fama de Xpert na
ciência dos números. Vivia com a mãe e a avó. O pai, um militar da
Força Aérea, via-se pouco. Andava, naturalmente, nas nuvens.
Arcílio passou a receber lições de Matemática, duas vezes por
semana, aos fins de tarde. A avó de Túlio abria-lhe a porta, sempre
com um sorriso acolhedor, e encaminhava-o para a sala de jantar
onde ia ser servido o repasto académico. Nunca apreciou
aquela ementa. Ia para ali deveras contrariado. Aquela
hora parecia do tamanho da légua…da póvoa. Túlio marcava-lhe os
exercícios no Palma Fernandes e, pouco depois, saía para a
cavaqueira, que seguia animada na cozinha. Passados uns bons
minutos regressava para constatar que Arcílio tinha empancado a
meio da equação. Então, na sua desmesurada paciência e pleno de
didactismo, lá desmontava, num ápice, o nó górdio do problema.
No curso complementar, a Matemática
voltou a causar danos. No 6º ano,
reprovou, oficialmente, "por faltas" mas isso foi a saída airosa
para evitar vergonha maior, a de uma nota baixa na pauta. Acabou
por fazer o 7º ano "por fora": o
Liceu facultou aulas extras (e pagas), durante o ano lectivo, dadas
pelo seu ex-professor do 6º ano; o sisudo Saladino,
impressionava-os pela sua segurança e pela meticulosidade com que
aproveitava o espaço do quadro preto num garatujar de algarismos
sem quase recorrer ao apagador. Mas para o exame, que Arcílio
deixou, naturalmente, para segunda época, precisou de uma ajuda
extra, o seu dilecto condiscípulo Licélio; este pretendia subir a
nota para 14, para dispensar da aptidão a Económicas, Arcílio
tentava apenas passar o ano. As sessões de estudo compartido eram,
em tudo, semelhantes "à explicação"; só que o sapiente, não
alcançou o objectivo, e o aprendente de seu par lá foi à oral
arrancar o tão almejado 10.
Mas a surpresa, tinha sido o
(in)esperado desaire em Inglês. Ambos tiveram negativa, no exame de
Junho. Houve então que recorrer aos bons ofícios de uma finalista
de Germânicas, que os preparou, em sessões individuais, durante
todo o Verão. A vontade de leccionar era tal que Nela, durante o
tempo da lição, não abandonava a sala, num face-to-face
metodológico ditando apontamentos como se estivesse já a dar uma
aula. Tal empenhamento e eficácia tornou-se contagiante: os dois
acabaram por ter 14, o que os dispensava da oral.
- O rapaz saiu-nos caro, este ano! - desabafou o pai ao tomar
conhecimento da conclusão do curso geral dos liceus.