Carlos Vaz Marques, jornalista
Contra a «miopia política» dos governos
O apresentador do «Governo Sombra» é sinónimo de
livros, entrevistas e agora também é o rosto da revista literária
"Granta", cuja edição portuguesa foi lançada em maio. Carlos Vaz
Marques, em discurso direto.
É o diretor da edição portuguesa da
"Granta", uma publicação literária mítica, com periodicidade
semestral. Como definiria, de forma sintética, a origem e as
perspetivas deste projeto? Dados os parcos hábitos culturais dos
portugueses, admite que esta publicação pode ser destinada a uma
imensa minoria?
A "Granta" é uma revista literária. Uma das mais
prestigiadas revistas literárias do mundo. Foi na "Granta" que
ganharam projeção grandes nomes da literatura de língua inglesa.
Nos últimos anos, a Granta expandiu-se e passou a ter edições em
diversas línguas. Agora chegou a vez de Portugal e em breve haverá
também edições no Japão e em Israel. Os objetivos da "Granta"
portuguesa são os mesmos da "Granta" em língua inglesa e das que se
editam noutras línguas: participar naquilo a que já houve quem
chamasse uma conspiração de boa escrita.
A "Granta" tornou-se o livro mais vendido
de sempre pela editora Tinta da China na Feira do Livro de Lisboa.
O objetivo passa por tornar a "Granta" uma revista de culto, como
aconteceu com a extinta
"Egoísta"?
O objetivo é tornar a "Granta" um título que
represente para os leitores interessados em literatura uma marca de
qualidade. Queremos que o nome "Granta" seja sinónimo, na
literatura portuguesa, de novos textos de autores já reconhecidos e
de textos de novos autores que o tempo há-de vir a reconhecer. Se é
a isso que se chama uma revista de culto, não sei. Não fazemos a
"Granta" para os happy few.
O descalabro de consumo cultural é uma
realidade não exclusiva de Portugal, fruto da crise e da carga
fiscal. Diminuiu a compra de livros, as idas ao cinema, ao teatro,
etc. No atual contexto os bens de raiz cultural podem ser
considerados de última
necessidade?
Essa é uma questão delicada. Evidentemente, a
alimentação, a saúde, a habitação e o vestuário correspondem a
necessidades básicas, anteriores àquilo a que chamamos indústrias
culturais. Há pessoas a viver em dificuldades em Portugal e se se
quiser, nesses casos, propor uma escolha entre uma refeição ou um
livro, ninguém tem dúvidas acerca da opção a fazer. Mas pôr as
questões nestes termos é um tanto ou quanto caricatural. E esse
discurso é muitas vezes usado por quem não entende o papel
fundamental que a cultura tem não só no desenvolvimento humano,
pelo enriquecimento pessoal que proporciona, como até em termos
económicos, pelo que significam hoje em dia as indústrias culturais
no índice de desenvolvimento de cidades, regiões e
países.
Como analisa a teoria defendida por
alguns, que diz que um povo mais inculto é um povo menos
reivindicativo cívica e
politicamente?
Creio que a cultura é objetivamente algo de
valorizador a nível pessoal e coletivo em qualquer circunstância.
Embora não confunda enriquecimento cultural com qualidade humana.
Hitler, segundo consta, era um leitor
voraz.
Um estudo da Porto Business School
concluiu que a Fundação de Serralves acrescentou, no ano de 2010,
40, 5 milhões de euros ao PIB nacional, criou 1296 postos de
trabalho e as suas atividades mobilizaram 693 mil pessoas, dos
quais 197 mil foram estrangeiros. Perante isto, pensa que tem sido
subestimado o papel das instituições culturais no crescimento da
economia?
Sim. Perante isso e não só. Há muitos estudos a
corroborar essa tese.
Defende que o livro em papel será um dia
um «objeto gourmet». Porquê? Os jornais estão condenados também a
essa tendência? Tudo ficará concentrado no ecrã do telemóvel e do
Ipad?
A desmaterialização parece-me uma tendência
inevitável e irrevogável. Não a sinto, no entanto, como uma ameaça.
Eu sou do tempo do papel mas já houve, antes de mim, gente do tempo
do papiro. E ainda mais recuadamente gente do tempo das tabuinhas
de argila. Gosto de ler no meu iPad, tal como não dispenso alguns
livros em papel.
A nostalgia do papel vai ser derrotada
pela ideologia do digital?
Acredito que os dois suportes hão-de coexistir no
futuro. Haverá espaço para o papel em casos especiais, mas a grande
circulação de textos escritos far-se-á por via
digital.
A pirataria é uma chaga que tem minado os
direitos de autor e feito perder milhões. Pensa que uma política
fiscal harmonizada, à escala europeia, de incentivo, nomeadamente
ao livro eletrónico, podia fazer reduzir esses
ilícitos?
Não sei o suficiente sobre essas matérias, a que
não dediquei o estudo nem a reflexão necessários, para me poder
pronunciar sobre elas. Evidentemente, terá de continuar a haver uma
forma de pagar aos criadores e a todos aqueles que estão envolvidos
nas chamadas indústrias culturais.
Há vários anos que apresenta o programa
«pessoal e transmissível» na antena da TSF. Entrevistou
escritores nacionais e internacionais, mais e menos consagrados. Há
algum interlocutor que o tenha marcado, que o tenha
surpreendido/dececionado? Tem algum episódio que queira
partilhar?
Houve entrevistas mais conseguidas e outras
menos. Houve momentos de entusiasmo e alguns (felizmente poucos) de
deceção. Assim de repente, o facto de poder ter passado uma tarde
em casa de Mário Vargas Llosa, em Londres, foi um desses momentos
entusiasmantes que não teria tido o privilégio de viver de outro
modo.
Neste governo não tivemos um ministro da
Cultura, mas sim um secretário de Estado. A cultura não
escapou ao corte de verbas. Acha que os políticos perspetivam que a
cultura não é um bem a preservar ou a falta de investimento se deve
ao facto de não dar votos apostar na
cultura?
Não dou uma especial importância ao título.
Teoricamente, estando a tutela da cultura no próprio
primeiro-ministro, até se poderia argumentar (e houve quem o
fizesse) que não teria havido um "downsizing" mas um "upgrading".
Sabemos que não foi isso que aconteceu. O que não é de agora,
diga-se de passagem. Defendo, no entanto, que mais do que olhar
para o Estado, teremos de ser capazes de tomar iniciativa e de
fazer o mais possível de entre o que está ao nosso alcance. O que
não iliba, de modo nenhum, a miopia política dos sucessivos
governos no que diz respeito à cultura.
Como se sente na pele de moderador de um
"Conselho de Ministros" informal chamado «Governo sombra», com três
ministros, que «querem, podem, mas não mandam», como diz o
separador da TSF? Acha que o Ricardo Araújo Pereira, o Pedro Mexia
ou o João Miguel Tavares, como personalidades influentes que são,
podem sonhar, algum dia, ser ministros de pleno direito ou a
política está fadada para políticos de
carreira?
Acho que nenhum deles tem uma agenda política que
passe por ambições dessa natureza, o que os torna ;
saudavelmente descomprometidos.
Três perguntas no âmbito da educação para
concluir. As escolas e as universidades também não escapam aos
cortes. Há alunos a abandonar o ensino superior por falta de
dinheiro, professores em greve aos exames, preocupados com as suas
carreiras. É possível formar adequadamente no meio do caos e da
gritaria?
A resposta é evidentemente: não. Mas não estou
suficientemente a par das questões concretas para poder ir muito
mais longe num diagnóstico e em opiniões válidas sobre um setor
complexo como é o da educação.
O espelho da nação em termos educativos,
necessariamente pobre em termos de indicadores nos principais
barómetros, releva a falta de interação e coordenação com a
produção artístico-cultural do
país?
Isto anda tudo ligado. Mas mais do que pôr
o acento tónico no que falta, prefiro sublinhar o que podemos
fazer. À minha escala faço o que posso. A "Granta" é esse sinal de
que não devemos resignar-nos mesmo nestes tempos
adversos.
Como é que vê o fenómeno da fuga dos
nossos jovens mais qualificados para o estrangeiro? Não é
frustrante para um Estado que investiu tanto na qualificação dos
seus recursos humanos?
Vejo esse fenómeno,
evidentemente, com preocupação. Mais pelo que apresenta de sintoma
da situação interna do que pelo investimento que fica sem retorno.
A mobilidade geográfica é uma grande conquista das últimas décadas
e creio que qualquer pessoa tem o direito de procurar realizar-se
onde melhor lhe convier. A saída de Portugal de jovens
recém-licenciados poderia até ser um excelente investimento - já
que a questão foi colocada nesses termos - para o país, caso eles
fossem adquirir experiência, competências académicas e
profissionais, mas com a intenção de voltar. Se eles vão
simplesmente porque não têm em Portugal condições para desenvolver
a sua atividade, há que lamentar essa hemorragia que torna o país
inevitavelmente mais pobre.
Nuno Dias
Carlos Vaz Marques/Facebook