Paulo Reis Pina, vencedor do Prémio Grünenthal/Astor, especialista em cuidados paliativos
“Faltam camas para tratar a dor”
Paulo Reis Pina é membro da Clínica da
Dor da Equipa de Cuidados Paliativos do Instituto Português de
Oncologia, de Lisboa, e foi distinguido, recentemente, com o Prémio
Grünenthal/Astor, por um trabalho sobre a dor em doentes com cancro
ativo. Em Berlim, onde se encontrava em trabalho, (respondeu por
email) lançou luz sobre uma área da medicina fundamental para os
doentes com cancro avançado, e que não se esgota no campo da
oncologia.
Quando falamos de cuidados Paliativos,
falamos exatamente do quê?
Os cuidados paliativos (CP) constituem uma
resposta ativa perante os problemas das pessoas que têm uma doença
prolongada, incurável e progressiva. Os CP dão apoio aos doentes e
suas famílias, respeitando a autonomia destes, usando medidas
farmacológicas (ou não) para aliviar o impacto gerado pelas
doenças, visando proporcionar a máxima qualidade de vida possível.
Tal é possível através da prevenção e do alívio de sofrimento,
sendo exigidos uma identificação precoce, avaliação e tratamento
impecável da dor e de outros problemas, físicos, psicossociais e
espirituais. Em síntese, os CP são cuidados de saúde de excelência,
rigorosos, congregando aspetos da ciência, da arte e do humanismo
que os devem suportar.
Quais são as doenças que devem ser
tratadas com Cuidados Paliativos?
Habitualmente julga-se que são os doentes com
cancro avançado os que mais carecem de CP. Todavia há um conjunto
de doenças - que superam em número os casos oncológicos e que têm
necessidades similares de CP, - as chamadas insuficiências de órgão
em fase avançada (cardíaca, respiratória, hepática e renal). Há
também as necessidades específicas de CP para doentes com
insuficiências cognitivas no contexto de patologias neurológicas
degenerativas graves (como: demência avançada, esclerose múltipla,
esclerose lateral miotrófica, etc.) e os doentes psiquiátricos em
estadio muito avançado. Os CP não discriminam idades, géneros,
preferências religiosas, culturas, sexuais, políticas nem
outras.
Em casos de patologia oncológica, a dor é
o sintoma mais assustador. A dor é o sintoma mais difícil de
tratar?
Estima-se que 30 a 50% dos doentes oncológicos
sentem dor à data do diagnóstico; 70% dos casos têm dor numa fase
avançada do cancro e mais de 80% têm dor na fase terminal. A dor é
uma das consequências mais temidas do cancro. A presença de dor faz
pensar constantemente no agravamento da doença ou na
morte.
A dor oncológica é uma fonte de frustração para
os doentes, famílias e profissionais de saúde. Como os quadros
clínicos de dor oncológica podem ser intrincados também pode ser
complexo o tratamento dos mesmos. De facto, no cancro, a dor pode
ser o sintoma mais difícil de tratar; sendo impossível tratar cerca
de 10-12% dos casos. O tratamento é sempre multidisciplinar e
envolve medidas farmacológicas e não farmacológicas (como:
distração, relaxamentos, acupuntura, musicoterapia, arte-terapia,
massagens, etc).
São usados medicamentos analgésicos e adjuvantes
do tratamento, administrados sobretudo pela boca (orais,
sublinguais e transmucosos) e pela pele (transdérmicos e tópicos).
Há ainda fármacos que podem ser administrados por via intravenosa,
intramuscular, subcutânea e
intra-espinhal.
Existe a ideia de que só os doentes
terminais são tratados com morfina. Mas os analgésicos opiáceos não
são só prescritos para os doentes
terminais...
A dor, seja oncológica ou não oncológica, nunca
deve ser tratada de acordo com a gravidade da doença mas consoante
a intensidade da dor sentida pela pessoa humana. É possível
encontrar, numa enfermaria, alguns doentes terminais que não
estejam sob morfina. Significa que, a existir dor, ela será
ligeira, por isso não carecendo de morfina. A morfina e seus
derivados apenas devem ser administrados a pessoas com dor cuja
intensidade é moderada a insuportável, independentemente se têm
cancro ou não e independentemente se estão em fases precoces ou
terminais da vida. Os indivíduos com dor crónica - cuja
auto-avaliação da dor resulta na presença de uma intensidade
moderada a insuportável - poderão fazer qualquer opióide sob
prescrição clínica, procurando sempre a dose mínima eficaz. Não
interessa se essa pessoa tem cancro ou dores musculares ou dores
osteoarticulares ou osteoporose ou traumatismos,
etc.
Quais as principais
dificuldades que a área dos Cuidados Paliativos se
debate?
Apesar de todos os progressos da Medicina na
segunda metade do século XX, a longevidade crescente e o aumento
das doenças crónicas conduziram a um aumento significativo do
número de doentes que não se curam. O modelo da medicina curativa,
agressiva, centrada no combate à doença não se coaduna com as
necessidades deste tipo de doentes. No modelo biomédico clássico as
necessidades dos doentes são frequentemente esquecidas. A ausência
de cura era - e ainda é - encarada por muitos profissionais como
uma derrota, uma frustração, uma área de não investimento. Ao
contrário do passado - em que os moribundos estavam em casa e toda
a comunidade os visitava e em que os mortos eram velados no seu
leito domiciliário,- agora a morte é um fenómeno pouco social. A
morte é agora hospitalar. Em Portugal, comparativamente a 2000, a
percentagem de mortes ocorridas em hospitais/clínicas aumentou de
54,2% para 61,4% em 2008. No mesmo período de tempo, os óbitos no
domicílio diminuíram de 35,8% para 29,9%. Raramente alguém quer o
doente a falecer em casa. Assim sendo dilata-se o distanciamento
face aos problemas do final de vida. Já ninguém sabe o que é um
processo de morte. Às crianças é-lhes escondido o avô moribundo
(que há-de desaparecer numa viagem ou algo assim...) e outras
coisas parecidas. Em casa, hoje em dia, só se quer a elegância, o
perfume, a beldade. A morte é feia, pode mutilar, pode cheira mal.
Logo, tira-se de casa, esconde-se num hospital, com a desculpa que
é para o bem do moribundo. Ou não será para nosso bem? Para não
vermos, não sentirmos,não confrontarmos,não soluçarmos? As questões
em torno da morte - e que interessam a todos - constituem ainda
hoje um tema tabu.
Eu diria que a principal barreira aos CP se
dissipará com uma mudança cultural que vise normalizar socialmente
a morte e que, do ponto de vista clínico, pretenda aceitar a morte
sempre que a vida seja objetivável como não sendo salvável,
evitando a obstinação terapêutica. Outra dificuldade reside numa
medicina muito tecnológica e pouco humanizada, a do século XXI. Os
CP baseiam-se numa prestação individualizada, humanizada,
tecnicamente rigorosa, com multidisciplinaridade e
interdisciplinaridade de cuidados. Os CP têm consideração pelas
necessidades individuais dos doentes, com respeito pelos valores,
crenças e práticas pessoais, culturais e
religiosas.
Em Portugal existem profissionais suficientes na
área dos Cuidados Paliativos?
Não. Apesar de já existir um conjunto de
profissionais com formação avançada em CP, com cursos de
pós-graduação e de mestrado, com estágios feitos com orientadores
idóneos, no País e no estrangeiro, ainda são poucos os que
trabalham a tempo inteiro nesta área. A principal razão é política,
de cariz económico financeira. Em Portugal deverão existir 1 a 1,5
equipas domiciliárias de CP por 100 mil habitantes, constituídas
por 2 médicos e 3 a 4 enfermeiros, assim como 80 a 100 camas por
milhão de habitantes, sendo que uma unidade de internamento em CP
deverá ter 10 a 15 camas. Tendo em vista a população residente em
Portugal, seriam necessárias entre 106 e 160 equipas domiciliárias
de CP. Isto é, seriam necessários 266 médicos e 465 enfermeiros. No
que respeita a lugares de internamento, deveriam existir entre 643
e 804 camas para prestar apoio paliativo domiciliário. Estes
números traduzem-se em cerca de uma equipa por cada 750 mil a
1170000 habitantes, sendo que as atuais recomendações são de uma
equipa por 100 mil habitantes. Existem menos de 25 unidades de
internamento em CP, com número de camas variável de 5 a 20 por
unidade. A oferta está claramente aquém das atuais recomendações de
80 a 100 camas por milhão de habitantes, segundo a Associação
Europeia de CP. Estima-se a necessidade em Portugal de 1062 camas
para CP, das quais 319 em 28 unidades em instituições de agudos e
531 camas em 46 unidades em instalações de crónicos, com as
restantes em lares. Existe ainda a necessidade de aumentar as
equipas domiciliárias de CP, conforme o Relatório de Primavera 2013
do Observatório Português dos Sistemas de
Saúde(OPSS).
Como é que os familiares do doente
oncológico vêem os Cuidados Paliativos? Existe risco de pensarem
que enviar um doente para os Cuidados Paliativos é desistir
dele?
Ainda há um grande desconhecimento do que são os
CP a nível profissional, técnico. Donde, a ignorância das pessoas
leigas é ainda maior. Há países onde a Medicina Paliativa já é uma
especialidade médica, podendo os doentes consultar paliativistas do
mesmo modo que consultam outro clínico. Os CP não podem continuar a
ser vistos como cuidados de fim de vida, ou seja, da agonia. Logo
que exista o diagnóstico de uma doença grave, progressiva,
eventualmente fatal, o individuo deverá ser referenciado para que
todas as suas necessidades sejam valorizados. A doença poderá de
facto não ser curável mas o doente que a possui pode ser "curado" e
ativamente tratado. Ainda que nos últimos meses de vida o individuo
possa sentir a sua doença a piorar, se tiver um bom apoio clínico,
pode não necessariamente sentir o impacto dessa pioria. Existem
várias medidas para mitigar a dor, aumentar a esperança, regredir a
ansiedade e a tristeza, por exemplo. Num modelo integrativo de
atenção ao doente e à família, os CP devem ser vistos, não como o
fim de linha, mas como uma parte do suporte e da sustentação que os
doentes e as famílias carecem no continuum que é a trajetória de
uma doença incurável. Veja-se um caso: um homem de 60 anos tem um
cancro X avançado, bastante metastizado, sem indicação cirúrgica.
Uma observação estúpida seria dizer "não há mais nada a fazer". Mas
há sempre alguma coisa a fazer. O oncologista propõe-lhe fazer uma
quimioterapia Y e o radio-oncologista indica uma radioterapia Z.
Ambas com intuito não curativo, feitas para que o doente viva ainda
algum tempo, com menos sobrecarga da doença. O paliativista deveria
intervir com o oncologista e o radio-oncologista no sentido de,
integralmente, aliviarem todos os sintomas físicos, emocionais,
sociais e espirituais que perturbassem a qualidade de vida deste
doente e da sua família. Todas as decisões seriam tomadas, caso o
doente e família concordassem, com respeito pelos valores, crenças
e práticas pessoais, culturais e religiosas. Desta forma as pessoas
não se sentiriam no fim de uma linha de produção, jamais se
sentiriam abandonadas; sentir-se-iam acompanhadas, clinicamente,
até ao último dia da sua vida.
E da parte dos médicos, há obstinação
terapêutica em casos que deveriam ser tratados nos Cuidados
Paliativos?
A prática da medicina tem como objetivo prevenir
ou curar a doença e aliviar os sintomas do doente. No entanto, uma
das dificuldades com que se depara esta ciência é a incapacidade de
prever, com exatidão, o modo como cada pessoa responderá a um tipo
específico de tratamento. Os avanços tecnológicos nos domínios da
biomedicina permitiram que o curso do termo da vida se modificasse.
Neste sentido, a natureza deixou de constituir o único árbitro
entre o viver e o morrer. Consequentemente, surgiu um conjunto de
problemas bioéticos que não encontra respostas unânimes e que tem
vastas repercussões na cultura contemporânea. O adágio popular
"enquanto há vida, há esperança" condiciona o médico a perpetuar
pautas e medidas terapêuticas. É certo que o médico não pode nunca
abandonar o doente, porém tal não implica que não possa reduzir,
conter, abster certos tratamentos. Negar a utilização de um arsenal
tecnológico não significa a omissão de um tratamento. Quando não
existam possibilidades realistas de cura, mas o clínico mantenha
todas as intervenções possíveis -sem perceber os limites
científicos, de acordo com a boa prática sustentada,- ocorre uma
atitude de obstinação terapêutica. Esta gera o prolongamento do
processo de morrer, intensificando a agonia e o sofrimento do
doente/família. De modo breve, acontece a distanásia. O Código
Deontológico da Ordem dos Médicos, no Artigo 58.ºcita
«1- nas situações de doenças avançadas e progressivas cujos
tratamentos não permitem reverter a sua evolução natural, o médico
deve dirigir a sua ação para o bem-estar dos doentes, evitando
utilizar meios fúteis (de diagnóstico e terapêutica)que possam, por
si próprios, induzir mais sofrimento, sem que daí advenha qualquer
benefício». No Artigo 5.º o mesmo Código diz «são
condenáveis as práticas não justificadas pelo interesse do doente
ou que pressuponham ou criem falsas necessidades de consumo». Os CP
são uma forma da Medicina continuar a apoiar um doente sem cura,
pugnando por uma política de não abandono da pessoa humana e dos
seus entes queridos.
A opção da actriz norte-americana
Angelina Jolie em fazer uma cirurgia profilática (dupla mastetomia)
fez parte da atualidade noticiosa dos últimos dias. Em Portugal
esta facilitado o processo para se fazer uma opção
dessas?
Sim. A mesma operação poderia ser feita após
total explicação da necessidade da mesma e dos riscos da sua não
realização. De facto já há mulheres que fazem mastetomias e
histeretomias profiláticas quando a carga genética é elevada. Todas
as situações deste tipo deverão ter acompanhamento e
seguimento em Consultas de Risco.
A dor também está presente no início da
vida. Mas com todos os avanços da medicina, ainda faz sentido as
mulheres sofrerem durante o
parto?
Não. O trabalho de parto pode estar associado a
dores cuja intensidade pode ser moderada a insuportável. Já existem
técnicas, procedimentos e analgésicos que impedem a presença de
qualquer sofrimento evitável. As mulheres devem exigir não sofrer e
os profissionais de saúde devem pugnar para que a dor nem sequer
esteja associada a um momento mágico que é o nascimento de um
filho.
Em que situação se encontra o projeto
para uma rede nacional de cuidados
paliativos?
Atualmente, encontra-se em vigor um Plano
Nacional de Cuidados Paliativos (PNCP), aprovado por despacho do
Ministério da Saúde, a 29 de março de 2010, no qual foram definidos
padrões para os diferentes tipos de respostas em CP. Foi também
publicada, a 5 de setembro de 2012, a Lei 52/2012 (Lei de Bases dos
CP) que consagra o direito e regula o acesso dos cidadãos a estes
cuidados, define a responsabilidade do Estado, e cria a Rede
Nacional de CP (RNCP), a funcionar sob tutela do Ministério da
Saúde. A RNCP é uma rede funcional e baseia-se num modelo de
intervenção integrada e articulada, que prevê diferentes tipos de
unidades e de equipas para a prestação de CP, cooperando com outros
recursos de saúde hospitalares, comunitários e domiciliários. A
prestação de CP organiza-se mediante modelos de gestão que garantam
uma prestação de cuidados eficazes, oportunos e eficientes, visando
a satisfação das pessoas numa lógica de otimização dos recursos
locais e regionais, de acordo com a Lei de Bases da Saúde. A Lei de
Bases dos CP aguarda regulamentação para ser aplicada. Até prova em
contrário os CP vão continuar integrados na pioneira "rede nacional
de cuidados continuados integrados". Esta rede congrega vários
tipos de resposta: cuidados de reabilitação, de média e de longa
duração e CP. No caso dos CP existem unidades de internamento e
equipas multidisciplinares de CP, situadas quer nos hospitais quer
na comunidade. Na atual rede, e no caso dos CP, tem havido
problemas relacionados com: falta de camas de internamento,
escassez de recursos treinados em CP, limites à contratação de
profissionais diferenciados na atual situação económica do País, má
referenciação de doentes (confundindo-se os doentes em situação de
reabilitação pós-aguda dos casos de presença de doença crónica
cujos cuidados podem ser assegurados em lares, por
exemplo).
O que o levou a optar pela área dos
Cuidados Paliativos?
Não foi uma decisão espontânea. Depois de algum
percurso de descoberta por diversas áreas da prática clínica
percebi que não foram as doenças (nem o seu diagnóstico ou
tratamento) que me fizeram vir para Medicina. Foi a paixão pelos
doentes, pelas suas dúvidas, pelas suas necessidades globais e foi
a circunstância de achar que eu podia minorar o seu sofrimento.
Assim se foi delineando a Medicina Paliativa em mim: uma
necessidade. A de tratar o doente antes de combater a doença. O
doente - e o seu primado - sempre como prioridade e a(s) sua(s)
doenças secundariamente.
Acredita em
Deus?
Acredito na hospitalidade, na compaixão, na
reciprocidade, na solicitude e na responsabilização de todos os
seres que se abrigam na bondade do
coração.
Eugénia Sousa
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