Editorial
Uma educação sem valores?
A educação não é uma dádiva dos deuses.
A educação é uma obra assombrosa, fruto da frágil elaboração
humana. Quando bem utilizada, reconhecemos-lhe a força e o vigor
próprio das forças cósmicas. Quando instrumentalizada, em nome de
valores inconfessáveis, revela-se débil e ténue, como se não
soubesse ser outra coisa que não fosse a de ajudar a humanidade a
ser cada vez melhor.
A educação, ou seja, a formação do ser nos saberes e
nos valores, é anterior à escola e aos obstáculos que lhe colocaram
os currículos formais. A educação era uma responsabilidade
colectiva, era a medida do progresso de um povo e, como tal,
sancionada e avaliada por cada geração.
Ninguém podia ficar dispensado do acto de educar. E
ninguém podia evadir-se do processo e dos rituais inerentes aos
procedimentos de socialização educativa.
Ser educado era ser parte do todo. Era ser membro de
corpo inteiro e de pleno direito da comunidade. De uma comunidade,
toda ela educativa, que decidia também os momentos de avaliação dos
progressos colectivamente obtidos. Ser educado era ser reconhecido,
aceite e validado para passar de sujeito a actor.
Nesse tempo, não havia educação sem ensino, e todo o
acto de ensino só faria sentido se integrado num procedimento
educativo, fosse ele formal ou informal.
Porém, o crescimento e o desenvolvimento das sociedades
encarregaram-se de criar múltiplos paradoxos. Por um lado, a
evolução tecnológica e científica veio simplificar e facilitar a
vida do Homem. Por outro lado, o alastrar das comunidades
multidimensionais encarregou-se de complexizar o acto de
educar.
A separação e a segregação de papéis e de funções
levaram a que, a partir de então, a tarefa de todos fosse apenas a
missão a prosseguir por alguns. Em poucas décadas nada ficou como
dantes. Quanto ao resto, as doutrinas e os doutrinários
encarregaram-se de sancionar o novo entendimento quanto ao
funcionamento dos estados e das nações.
Desde então, a educação foi repartida por
múltiplos agentes. Desde logo, o próprio Estado legislador e
sancionador. Mas também as famílias, as novéis instituições
escolares, as comunidades religiosas, as associações de
profissionais, os emergentes agentes de comunicação massiva, os
grupos de pares, e, enfim, o próprio indivíduo.
Esta mudança de paradigma provocou uma das maiores
rupturas no acto de socialização e de integração dos indivíduos nas
sociedades que os viram nascer.
Esta mudança de paradigma provocou, dizíamos, a
inacreditável separação do que, até então, era considerado uno e
indivisível, ou seja, a segmentação dos actos de educar e de
ensinar. A partir desse inqualificável acordo social, quem educa
pode nem saber ensinar e quem ensina pode não ter condições e meios
para educar, fazendo recurso à transmissão de valores, procedimento
indispensável à concretização do acto educativo.
A separação das responsabilidades educativas entre a
escola, as famílias, o Estado e os agentes sociais significativos
veio complicar ou dissolver o sentido dos deveres de cada um, e
abrir as portas às mútuas acusações.
A educação vale muito. Vale pelo menos a sobrevivência
da humanidade. Vale a felicidade, o bem-estar e a melhor das
qualidades da vida. Vale a cultura: o pouco que acrescentamos ao
que já temos; mais a arte, a literatura, a pintura e a música. Vale
a cura e a salvação, a alternância, a tolerância e a diversidade. E
a humanidade só avança, só cria e se recria com base naquilo que
recebeu, modelou e transformou.
Os governos perverteram a avaliação das escolas e dos
professores no momento em que privilegiaram indicadores de medida e
de progressão inerentes aos modelos de ensino e aos actos de
aprendizagem. O que tem estado em causa para se alcançar uma
valoração das escolas e dos professores, tem sido o recurso à
divulgação de rankings cuja elaboração se baseia apenas nos
resultados escolares dos alunos. Para estes responsáveis pouco
importam os resultados educativos. Isto é: saber muito do currículo
formal é bom. Francamente bom, dizem! Mesmo que disso resultem
algumas práticas marginais e desviantes desses indivíduos durante a
frequência do currículo informal ou oculto. Práticas essas que
escapam aos indicadores dos especialistas da avaliação e da
classificação através dos resultados puramente
escolares.
Por sua vez, saber pouco do currículo formal é
dramático! Mesmo que isso signifique enormes passos alcançados no
sucesso educativo das aprendizagens sociais desses
alunos…
São as políticas de educação
que temos, mas que não sancionamos. Não as perfilhamos,
precisamente porque queremos que a escola e os seus professores
sejam sujeitos a um olhar diferente. Que sejam os melhores elos
sociais e que possam ver reconhecida a sua capacidade profissional
para a co-partilha e para a co-responsabilização do ensino e da
educação das crianças e dos jovens que a sociedade lhes entregou,
para que os devolvam mais maduros, mais sabedores e mais
justos.