Entrevista

Nuno Severiano Teixeira, historiador
«Abolição de feriados feriu identidade nacional»

nunoteixeira.jpgO ex-ministro afirma que retirar o 5 de outubro e o 1.º de dezembro da lista dos feriados nacionais foi uma «estupidez.» Severiano Teixeira lança um olhar sobre a atualidade, abordando a crise europeia, nomeadamente a fragilidade das lideranças políticas, o drama da  imigração e uma eventual saída da Grécia do euro.

Lançou há poucas semanas o livro «Heróis do Mar». Escreveu esta obra por sentir que os portugueses não conhecem suficientemente a sua história, os seus símbolos e os seus heróis?

Parti para a escrita deste livro por dois motivos concretos: em primeiro lugar, por uma razão de natureza científica ou historiográfica. Existe hoje uma literatura muito abundante, na História, na Sociologia, na Antropologia, sobre as questões nacionais. Nomeadamente sobre a formação das nações e sobre a formação das identidades nacionais. É matéria que existe sobre Portugal, obviamente. Só que não há, com a mesma extensão e profundidade estudos que analisem o papel dos símbolos no quadro da formação das identidades nacionais e dos Estados-Nação. No fundo, fui ao encontro de uma área menos conhecida e menos estudada e procurei preencher essa lacuna.

E qual o outro motivo?

A outra justificação é de natureza cívica e que vem ao encontro da sua pergunta inicial. No fundo, procura-se, através de uma linguagem acessível chegar a um público mais vasto e sem perder o rigor académico. O objetivo é que os portugueses conheçam melhor os seus símbolos nacionais. Porque ninguém pode gostar daquilo que não conhece.

A propósito dos heróis nacionais, um programa de televisão elegeu Salazar como o português mais importante do século XX. Como historiador, ficou surpreendido?

Há três grandes políticos/estadistas no século XX português: Afonso Costa, Oliveira Salazar e Mário Soares. Um por cada regime, a I República, o Estado Novo e a Democracia. Não me causa surpresa a popularidade de Salazar. Goste-se ou não, é uma figura marcante do regime autoritário. É indiscutível. Agora é preciso realçar que essas sondagens são feitas por voto telefónico, telefona quem quer, por isso não estamos na presença de uma amostra representativa ou de um estudo com credibilidade científica.

É nas manifestações desportivas, nomeadamente nos mundiais de futebol e nos Jogos Olímpicos, que o fervor patriótico atinge o seu apogeu. Como explica essa comunhão coletiva em fenómenos desportivos?

Até há relativamente pouco tempo, o culto dos símbolos nacionais era formal, partia do Estado e das instituições. Tinha uma formulação que se traduzia nas cerimónias oficiais, seja nas paradas nacionais, nas comemorações dos dias nacionais, etc. Mais recentemente, o fenómeno desportivo de massas altera essa relação e faz com que os símbolos não venham propriamente de cima, não sejam induzidos pelo Estado ou pelas instituições, mas são assumidos pela sociedade civil, ou seja, por cada um dos portugueses, individualmente.  Trata-se de um fenómeno que altera a relação dos portugueses com os seus símbolos e faz com que estes sejam vistos e vividos como sendo pertença de cada português.

É este sentimento de pertença que faz com que as pessoas vistam as camisolas da seleção das quinas ou levem bandeiras para o estádio?

Exactamente. Antes dos jogos das selecções nacionais canta-se o hino e o mesmo acontece durante as cerimónias de atribuição de medalhas nos Jogos Olímpicos. Isto confere uma identificação simbólica com aquela equipa ou atleta, que representa toda a nação.

No Euro 2004 tivemos o fenómeno das bandeiras portuguesas à janela, após um repto lançado pelo selecionador nacional de então, Luis Filipe Scolari. Sente que foi uma moda que passou com o tempo?

Não se voltou a repetir com tanta intensidade, mas o fenómeno perdurou. Hoje em dia não há ninguém que não vá assistir a um jogo da seleção sem camisolas vestidas e cachecóis ao pescoço. As bandeiras à janela ainda se veem, aqui e ali. Mas o que é importante destacar é que transformou a relação com os símbolos, que entendo ser positiva. As pessoas passaram a vê-los como seus e a usá-los. Quero recordar que anos depois do Euro 2004 chegou a ser formada uma bandeira humana em pleno estádio do Jamor.

Diz-se frequentemente que o país não tem desígnios nacionais, à exceção do futebol e pouco mais. Partilha desta visão?

Não concordo. Na democracia recente existiram desígnios nacionais de grande dimensão e que foram plenamente atingidos. Dou-lhe alguns exemplos elucidativos. Em primeiro lugar, a saída de um período revolucionário muito difícil e de dois anos do chamado PREC. A consolidação da democracia em Portugal é um desígnio essencial, que foi ganho. Com o fim do império e da descolonização, Portugal recebe 1 milhão de retornados (o equivalente a 10 por cento da sua população)  que integra rapidamente. É um objetivo espetacular e que traduz outro desígnio. A seguir o nosso país propõe-se encontrar uma alternativa para o império: a integração europeia. Em 1986, entrámos como membro de pleno direito da União Europeia. Outro desígnio. Mas há mais. Anos mais tarde Portugal passa para o pelotão da frente da UE e, o que seria impensável há alguns anos, é membro fundador da moeda única, entrando no núcleo duro do euro. Outro desígnio nacional. Acabei de lhe dar prova de uma sucessão de desígnios conquistados e que são prova de orgulho próprio. Mas o auge desse movimento é a Expo 98. Do ponto de vista imaginário é esse Portugal moderno e europeu que se reconcilia, através da exposição universal, com o seu passado grandioso da expansão marítima.

Contudo, a última década não tem estado propriamente para grandes celebrações…

Desde 2000 para cá temos, de facto, atravessado um ciclo histórico de maiores dificuldades. É natural que haja menos orgulho nesses desígnios e um maior desânimo coletivo. Acho que o que é preciso, justamente, é encontrar novos desígnios e tudo fazer para os concretizar. Temos condições para isso.

Este governo aboliu temporariamente os feriados do 5 de outubro e do 1.º de dezembro. Pensa que é um sinal contrário que se dá à população do ponto de vista nacional e patriótico?

Abolir os feriados foi uma estupidez. As comemorações nacionais têm um sentido simbólico e uma lógica sistemática. Ou seja, o conjunto dos feriados, sejam os cívicos ou religiosos, têm uma lógica integrada. Contemplam, geralmente, os momentos da independência do país, os momentos da instauração dos regimes, os regimes contemporâneos e as identidades culturais dos países. O 1.º de dezembro é o Dia da Restauração, o 5 de outubro o dia da fundação do regime republicano, o 25 de abril o dia do regime democrático atual e, finalmente, o 10 de junho, o dia da identidade cultural, com base em «Os Lusíadas», o símbolo literário da identidade nacional. Quando nós retiramos a este sistema um ou dois dos seus elementos, estamos a ferir o sistema no seu conjunto e a própria identidade nacional.

Esta medida explica-se apenas por critérios economicistas?

Os autores desta medida não o fizeram por mal, fizeram-no por ignorância e por estarem animados por uma lógica estritamente económica que parece que nem tem retorno de natureza financeira por se trabalhar mais 2 dias. Mas o mais grave é que qualquer ganho que houvesse não pagava os ferimentos causados do ponto de vista simbólico.

O seu livro fala muito da tensão entre republicanos e monárquicos. Pensa que o debate entre regimes está definitivamente encerrado?

Se perguntar aos monárquicos, eles dirão que não está. O regime republicano parece- -me perfeitamente consolidado e creio que à esmagadora maioria da população portuguesa não se coloca esse problema. Nunca fiz uma sondagem, mas social e politicamente a monarquia não tem a relevância necessária para relançar o debate. A última vez que se colocou foi durante o regime de Salazar em que o então Presidente do Conselho resolveu à sua maneira com a seguinte declaração: «a questão existe, mas não se põe.»

O contexto europeu e mundial em que vivemos é muito complexo. Acredita que a mera disciplina financeira, por si só, está a ser elevada a novo desígnio?

A disciplina financeira não é um desígnio, é um meio. A crise que vivemos é extensa e profunda. E não é só portuguesa, é essencialmente do projeto europeu. É preciso assinalar que Portugal fez um conjunto de sacrifícios - aliás, mais do que lhe era pedido - e cumpriu toda a sua parte do compromisso. Agora há uma parte que Portugal não pode resolver sozinho e que reside na dimensão europeia. A crise que atravessamos é económica e financeira, mas estas dificuldades na zona euro traduzem muito mais do que isso.

O quê, concretamente?

A crise de conjunto do projeto europeu. E se os dois desafios que se colocam não forem superados, o projeto europeu pode ficar comprometido.

A que desafios se refere?

O primeiro desafio é o da coesão entre o norte e o sul da Europa. A crise económica e financeira até pode ser resolvida, mas sem ser sanado o problema da coesão dificilmente os outros problemas podem ser debelados. Mas há uma segunda dimensão da crise que reside no fator confiança. A crise de confiança dos cidadãos europeus nas instituições europeias. Sem encontrar uma solução de solidariedade e de confiança, que permita dar um salto qualitativo no projeto europeu, dificilmente se supera esta crise.

A crise institucional também se deve a uma crise de lideranças?

Sem dúvida. Há uma crise de lideranças clara na Europa. No início do projeto de construção europeia foi o tandem franco-alemão que resolveu os problemas que surgiram.  E porquê? Porque existiam lideranças políticas como Adenauer, do lado alemão, Schuman, do lado francês, que viram para além do momento e que firmaram um acordo que aparentemente era um acordo técnico, sobre o carvão e o aço, mas que afinal de contas era uma verdadeira aliança entre a França e a Alemanha, os dois inimigos que tinham feito as duas guerras mundiais do século XX. São líderes que veem longe e para além da próxima eleição.

Miterrand e Kohl foram os dois últimos grandes líderes do velho continente?

Sim. O que assistimos no final da guerra fria, nos anos 90, foi uma vez mais o compromisso entre o eixo Paris-Berlim, em que houve uma liderança de Kohl e de Miterrand, que se traduziu no seguinte acordo: a França deixou que a Alemanha se reunificasse e a Alemanha deixou que a França criasse o euro, em lugar do marco. Ambos líderes tinham vistas largas. O que se passa é que os atuais lideres europeus em funções não têm sido capazes de ter essa visão estratégica e a coragem política de olhar para além dos seus eleitorados. Porque estão focados unicamente na próxima eleição. É aqui que reside a crise de liderança europeia.

No dia em que falamos a situação grega está ao rubro, longe de um acordo. Sem fazer futurologia, qual pensa que será o desenlace desta novela sem fim?

Se houvesse bom senso, haveria uma solução para a Grécia. Com razoabilidade e bom senso de ambas as partes, claro. Mas é preciso dizer que o que está em jogo não é apenas uma questão financeira. Está em causa uma situação geopolítica muito delicada. É preciso ter consciência que a Grécia tem uma situação geográfica complexa, nas imediações dos Balcãs e próximo da Turquia, e que tradicionalmente acarreta muitas consequências para a Europa no seu conjunto. É fundamental saber, por este e por outros fatores, se a Grécia fica fora ou dentro da União Europeia.

Consegue antever os dois cenários, em separado?

Ficando dentro da União Europeia, pode acontecer o cenário de bloquear decisões que têm que ser tomadas por unanimidade, na UE e na NATO, que podem trazer grandes consequências para a segurança europeia. Por outro lado, um desfecho de saída do euro e da União Europeia por parte da Grécia pode lançar este país numa área geopolítica de influência russa, cenário a partir do qual desconhecemos as consequências.

Estamos numa espécie de guerra fria não declarada?

Guerra fria no sentido tradicional do termo, não creio. Mas em termos de tensão entre a Rússia e o ocidente, sim. As tensões na Geórgia, em 2008, e na Ucrânia, que ainda se sentem, foram os momentos mais agudos. Mas deixe-me dizer que do lado europeu a gestão da crise não tem sido a mais sábia.

Acha que Putin é um líder perigoso?

Existe um projeto politico na Rússia que é autoritário e musculado internamente e que externamente traduz-se na recuperação das zonas de influência tradicionais do império russo que foram perdidas aquando do desmembramento da União Soviética.

A crise da imigração é outra questão que não se consegue resolver. O Mediterrâneo está transformado num mar morto de imigrantes africanos que procuram demandar a Europa. É outro sintoma do desnorte europeu?

A imigração é um caso concreto da crise de solidariedade europeia. O fluxo de massa humana quem vem do norte de África e entra por Itália, não quer ficar por lá, quer deslocar-se para outras zonas da Europa. A Itália é fronteira externa da União Europeia, por isso, entendo que o problema é europeu e não da Itália. Portanto, a solução tem de ser europeia. O que assistimos é à resistência de países do centro e norte da Europa para considerar que este problema é conjunto. É mais uma manifestação da crise de solidariedade que existe no projeto europeu.

A solução passa por todos os parceiros se sentarem à mesa?

Não tenho as soluções técnicas, mas sei que a solução política passa por os líderes conversarem e considerarem este problema como sendo de todos os Estados-membros da União Europeia. A todos os níveis. A começar com a segurança marítima e depois com a cooperação internacional que é preciso ter com os países de trânsito e de origem dos fluxos, porque o problema não se resolve apenas no quadro europeu. Um problema transnacional não pode ser resolvido apenas pela Itália, por Portugal ou pela Espanha.

Disse no «Expresso», em 2014, que na «universidade ainda vigora a tradição de que o conhecimento deve ficar encerrado numa torre de marfim.» Está a mudar alguma coisa?

A mudar sim, mas com lentidão. Eu quis dizer com essa frase que as universidades devem ter as suas agendas de investigação científica e de transmissão de conhecimentos, mas em Portugal a relação entre a universidade e a sociedade encontra-se ainda em construção. Porquê? Porque o conhecimento que se produz nas universidades é um bem público, no sentido que deve ser colocado ao serviço de todos. Há algumas áreas em que esse princípio está mais avançado, por exemplo, nas áreas de ponta de Ciências e Tecnologia, mas na generalidade dos campos do conhecimento ainda se regista atraso. Na minha área, as Ciências Sociais e Humanas, ainda há que fazer um caminho muito grande. Neste campo é preciso que os decisores políticos e empresariais compreendam que esses estudos e esses conhecimentos são úteis à tomada de decisão. Creio, contudo, que estamos a progredir.

Tem uma longa carreira académica, apenas interrompida nos anos em que esteve no governo. Da experiência acumulada, pensa que os alunos que lhe passam pelas mãos estão agora pior ou melhor preparados?

A minha experiência não sei se é representativa da generalidade, porque os alunos que entram no curso de Ciência Política e de Relações Internacionais da Universidade Nova têm como média mais baixa 16,1 valores. São bons estudantes, portanto. Não me posso queixar. Contudo, de uma forma geral, em certas áreas, há aspetos que podiam ser melhorados, nomeadamente, o Português, a Matemática e a Filosofia, que creio serem disciplinas essenciais.

Em relação aos níveis de empregabilidade, que estão diretamente relacionados com a interface entre o meio universitário e a comunidade civil e empresarial, também aqui estamos perante um processo em construção e afinação?

Creio que se está a fazer o caminho na direção certa. No caso da Universidade Nova os níveis de empregabilidade são bastante elevados. De toda a maneira, é preciso melhorar a relação entre universidades e empresas. Creio que se podia começar, desde logo, no plano do ensino, com estágios de natureza profissionalizante, continuar no âmbito da investigação com projetos encomendados, etc, etc. Não estou pessimista. Creio que Portugal está no bom caminho a nível universitário. O que acontece é que uns caminham mais devagar e outros mais depressa.

Nuno Dias
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