Bocas do Galinheiro
Na morte de Abbas Kiarostami e Michael Cimino
Como
se costuma dizer, é vira o disco e toca a mesma. Neste caso é
voltar à perda de grandes vultos do cinema. Agora chegou a vez dos
realizadores Abbas Kiarostami e Michael Cimino.
Sobre o iraniano, já aqui
escrevemos sobre a admiração que lhe votávamos. A primeira vez que
ouvi falar de Kiarostami foi em 1992 quando a Cinemateca lhe
dedicou um ciclo, ano em que ganhou o prémio Roberto Rossellini com
"A Vida Continua". Foi o primeiro passo para, dois anos depois, em
1994, aceder à secção oficial de Cannes com "Através das
Oliveiras".
Cineasta singular, herdeiro de
Murnau e Rossellini, toda a sua obra reflecte a vivência do seu
Irão natal, com algum radicalismo, mas sem artificialismos. O uso
de elementos dramáticos é reduzido ao mínimo, mas, fortemente
apoiados, por uma sensibilidade narrativa impar, a que se alia um
realismo muito próximo do mestre italiano.
"Através das Oliveiras" foi o
terceiro filme de uma trilogia onde se incluem "Onde Fica a Casa do
Meu Amigo" (1987) e "A Vida Continua" (1991), este último uma
viagem pelo rasto do terramoto que sacudiu o Irão em 1990. Nele, o
realizador filma a rodagem do próprio filme, ou seja, entra no
mundo do cinema, mostra-o por dentro, como já outros o haviam feito
noutros filmes, mas levantando o véu sobre os segredos do cinema,
tanto que o actor que faz de realizador vê aparecer diante da
câmara Kiarostami, revelando o artifício que ele próprio criara. Ou
seja, reconstrói a realidade, o que viram não passou de um filme.
Claro está que o recado não se destina ao público mas, isso sim,
aos senhores do lápis azul da censura. É, tem sido, com artifícios
que o autor tem conseguido fintar os ayatollas. O mesmo se passou
com o seu filme seguinte, "O Sabor da Cereja", seguramente um dos
que mais me cativou.
Palma de Ouro no Festival de
Cannes em 1997, o filme foi retirado da competição, retido pela
censura iraniana, acabou por chegar à última hora. Filme e autor
foram efusivamente recebidos. O júri, por seu lado, carimbou o
esforço com o prémio, apesar de dividido com "A Enguia", de Shohei
Imamura.
A história de "O Sabor da Cereja"
é, como o cinema de Kiarostami, simples É, também, um filme de
viagem, uma viagem ao fim. Um homem, Badii, numa sociedade onde o
suicídio é considerado uma aberração, tenta encontrar alguém que o
ajude a consumar a sua morte. É assim que, das ruas de Teerão, às
terras áridas e inóspitas, ele vai sucessivamente, sem sucesso,
pedindo ajuda, ao mesmo tempo que nós, pelo vidro do jipe que
conduz vemos desfilar o Irão dos desempregados, dos militares, dos
que tentam sobreviver a todo o custo, nem que seja recolhendo sacos
de plástico, das crianças que brincam em velhas carcaças de carros
abandonados. Até que encontra o velho taxidermista que, apesar de
disposto a ajudá-lo, lhe explica a importância do sabor das
cerejas, leia-se, o sabor da vida. E, mais uma vez Kiarostami
desmonta a realidade, atenua o pessimismo latente, mostrando em
vídeo a equipa de rodagem dirigida pelo próprio Kiarostami. Aquilo
que vimos até podia ser verdade, mas não é. É apenas mais um filme,
passado no Irão!
Em 2002, com "Dez", desafia mais
uma vez a velha oligarquia, ao, de dentro do seu carro, filma as
mulheres que se sentam ao lado da mulher condutora, e assim dar-nos
uma visão da sociedade iraniana e da condição da mulher no Irão, em
dez sequências.
Com a intensificação das
restrições à criação, exponencial na era Ahmadinejad, faz os seus
últimos filmes em Itália, "Cópia Certificada" (2010), com Juliette
Binoche, e no Japão "Like Someone In Love" (2012).
Nascido em Teerão em 1940, para
além de cineasta, era poeta e pintor. Morreu no passado dia 4 em
Paris, onde estava internado devido a um cancro.
Antes de Kiarostami, no dia 2,
falecera o norte-americano Michael Cimino, nascido em Nova Iorque
em 1939, e que, ao contrário do iraniano, tem uma obra mais curta,
mas muito mais irregular e polémica. A sua estreia como realizador
acontece em 1974 com "Thunderbolt and Lightfoot" (A Última
Golpada), com Clint Eastwood, um ladrão veterano que quer passar o
testemunho a um jovem Jeff Bridges, e juntar o antigo bando para um
último golpe. Uma fita muito Eastwood. Mesmo assim um bom começo. A
subida ao céu acontece em 1978 com o celebrado "O Caçador".
Óscares, entre outros, para melhor filme e melhor actor secundário
para Christopher Walken, numa história sobre o Vietname, mas não
só, sobre três amigos de uma comunidade russa na América, e o
sofrimento suportado em teatro de guerra, no caso como
prisioneiros, de que a emblemática sequência da roleta russa é o
culminar. Depois foi a descida ao Inferno com "As Portas do Céu"
(1980). Um dos maiores flops de sempre, levou inclusive à falência
da United Artists, naquele que pretendia-se que fosse um êxito como
"O Caçador", aqui um western sobre a luta que opôs emigrantes
europeus do Leste aos barões do gado no Wyoming, ou como nem sempre
é fácil concretizar o "american dream". O filme passou a maldito.
De grande esperança, Cimino passou a proscrito, só viria a filmar
cinco anos mais tarde "O Ano do Dragão", com Mickey Rourke, o
polícia incorruptível que é colocado na esquadra de Chinatown. Daí
até à sua morte apenas mais três filmes e uma entrada na obra
colectiva "Cada Um o Seu Cinema", de 2007.
Até à próxima e bons
filmes!
Luís Dinis da Rosa
Este texto não segue o novo acordo ortográfico