Bocas do Galinheiro
De poeta…todos temos um pouco
Como
dira João de Deus, alter ego de João César Monteiro, "adorei!".
Em "Paterson" (2016), o último filme de Jim Jarmush,
acompanhamos Paterson, o nome do protagonista (Adam Driver), a par
da cidade onde vive (do Estado de New Jersey, ali mesmo ao lado de
Nova Iorque), facto comentado numa das suas diárias idas ao bar de
Doc, e do poema em cinco cantos de William Carlos Williams, médico
e poeta, um dos diletos filhos de Paterson, a par de Lou Costello,
esse mesmo, o de Abbot e Costello, célebre dupla de comediantes
muito popular nas décadas de 40 e 50 do século passado, no cinema,
na rádio e com direito a revista de banda desenhada, e Lou com
estátua e tudo (soube-o no filme, claro). Ora são estas três
frentes, Paterson, que é condutor de autocarro, a cidade e a
poesia, a de William Carlos Williams e a de Paterson, ele próprio
escrevinhador de poesias que guarda num caderno secreto que promete
fotocopiar, a pedido insistente da sua companheira, iraniana, de
nome Laura, como a musa de Petrarca, interpretada por Golshifteh
Farahani.
O filme, de uma magnifica leveza, escorreito, decorre ao ritmo de
Paterson, que acorda todos os dias praticamente à mesma hora (sem
despertador), toma o mesmo pequeno almoço e de lancheira em punho
dirige-se para o terminal dos autocarros onde se senta ao volante
do que conduz, sem antes escrever umas linhas de um novo poema (que
vemos a passar na tela à medida que os versos avançam, da autoria
de Ron Padgett), até lhe ser dada a ordem de partida pelo mesmo
colega todos os dias, para depois seguirmos com ele viagem pela
cidade e com ele ouvirmos as banais conversas dos passageiros que
entram e saem na linha. Este rigor formal e narrativo do cinema de
Jarmuch, que se corporiza neste motorista, tem a sua outra face na
mulher, um tanto hiperactiva, nas constantes alterações que imprime
à decoração da casa, sempre a preto e branco e de formas obcecadas,
nos pratos que cria diariamente para o jantar e quando desvenda a
Paterson, quer ser uma estrela da música country, pelo que
adquire uma viola online, a preto e branco, claro, uma arlequim que
afanosamente dedilha de acordo com o dvd de instruções incluído na
compra. Ou seja, um casal de contrastes que, sem se contrariarem,
nem se imporem, vivem uma vida banal, mas feliz, apoiam os sonhos
do outro: ela quer que ele publique os seus versos, por ele tudo o
que ela idealiza está bem. Sem mais, com a companhia de Marvin, o
bulldog de Laura, que Paterson odeia mas que todos os dias leva a
passear, com a tal paragem obrigatória no bar. Entretanto o nosso
poeta continua a escrever e a ler poesia e nada parece interferir
na sua rotina. Faz-nos lembrar a motorista de táxi de um dos
episódio de "Night on Earth", são cinco, todos passados em táxis em
localizações diferentes, fita de Jarmuch de 1991, em que a
protagonista, Winona Ryder, abordada por uma agente, interpretada
por Gena Rowlands, confessa gostar do que faz e não pretende
tornar-se uma estrela da 7ª arte. Referência do cinema
independente, Jarmuch tem a virtude de conseguir transportar para
os seus filmes esse estilo descomprometido e não alinhado, sem
dramatismos, calcorreando o quotidiano, sem pressas, entrecortado
aqui e ali por pequenos incidentes.
Conhecido principalmente a partir de "Stranger Than Paradise", de
1984 (tem um filme anterior, "Permanent Vacation", de 1980, que
nunca vi), vencedor da "Camera d'Or" em Cannes nesse ano, e prémio
especial do júri de Sundance, de 1985, o festival de referência do
cinema independente, reaparece em 1986 com "Down by Law", uma
primeira colaboração com o italiano Roberto Benigni.
Reencontrar-se-iam em "Night on Earth" e "Coffee and Cigarettes",
de 2003, para em 1989, com "Mystery Train", fazer uma incursão pela
cidade de Memphis e pelos seus mitos, sendo que Elvis Presley é o
maior deles, sem esquecer o mítico Sun Studio. Em 1995 faz uma
visita ao western, em "Dead Man", onde não falta o veterano Robert
Mitchum, a que se seguiu "Ghost Dog - O Método do Samurai", com
Forest Whitaker, um inadaptado assassino da máfia, guiado pelo
código de honra de "O Livro dos Samurais", que tal como o William
Blake de "Dead Man" tem que matar para não morrer, porque de
maneiras diferentes, ambos têm a cabeça a prémio. Outros filmes
mereceriam uma abordagem que não podemos fazer agora, casos de
"Broken Flowers", de 2005, ou a nostálgica procura de um homem,
Bill Murray, por as suas ex, ou "Only Lovers Left Alive", de 2013,
uma incursão no universo dos vampiros, por interposto músico e a
sua amante de séculos.
Nascido em Akron, no Ohio, em 1953, é em Nova Iorque que Jarmush
desperta para o cinema e para a música, mas é a sua passagem por
Paris que, digamos, formata o seu estilo de cineasta independente,
forjado nas escolas japonesa, indiana e, claro, no cinema europeu
que em muito influenciou os "independentes" americanos.
Até à próxima e bons filmes!