Cultura

BOCAS do galinheiro
Don Quixote à portuguesa

bocas.jpgVoltamos hoje a um personagem que já abordámos há alguns anos, D. Quixote, a propósito do último filme de Terry Gillian, um quixotesco Monty Python, estreado este ano em Cannes, "The Man Who Killed Don Quixote". A fita ainda não estreou por cá, mas no festival francês foi notícia antes de ser filme: Paulo Branco, que começou por ser o produtor, muitas cenas foram filmadas em Portugal, basta lembrar as peripécias por causa das filmagens no Convento de Cristo, depois desentendeu-se com o realizador, mantendo porém os direitos sobre o filme, e tentou impedir a sua exibição. Claro que a organização do festival apoiou Gillian, o filme foi exibido e, não sendo uma obra prima, ou parecendo não ser, no seu estilo grotesco, com um toque de non-sense pynthoniano, Terry Gillian consegue momentos inolvidáveis. Basta lembrar o desconcertante "Brazil" ou o enigmático "Doze Macacos". Filme sobre a adaptação falhada da obra de Cervantes por um jovem realizador, interpretado por Adam Driver e a sua relação com um velho sapateiro que tal como o herói do livro, endoideceu e julga ser Don Quixote, "O homem que matou D. Quixote", não fora as peripécias porque passou e a providência cautelar de Paulo Branco, se calhar nem estávamos aqui a falar dele. Cannes ficou a ganhar e nós também porque João Salavisa e Gabriel Abrantes arrebataram prémios este ano.
"El Ingenioso Hidalgo don Quijote de la Mancha", de Miguel de Cervantes, publicado em 1605 e 1615, é justamente considerado uma das obras de referência da literatura universal. A história do fidalgo Alonso Quijano que ensandeceu pela leitura de livros de cavalaria e se baptiza a si próprio como Don Quijote, que inventa uma dama a quem servir e adorar, chamada Dulcinea del Toboso, que montado no seu cavalo Rocinante e com armas enferrujadas, acompanhado do seu escudeiro Sancho Panza, um camponês a quem o fidalgo em troca dos seus serviços promete o governo de uma ilha, luta contra moinhos, é por demais conhecida. Não estranha que uma obra de tal envergadura tenha suscitado a cobiça do cinema, tão ávido de bons textos. Ora se há obras onde não falta matéria para um bom argumento, "Dom Quixote" é seguramente uma delas. E como nisto das adaptações cada um faz o que pode, há-as para todos os gostos.
"Don Quixote" é o mais lendário dos (muitos) filmes incompletos de Orson Welles. Iniciado em 1955, com Francisco Regueira no papel de Quixote e Akim Tamiroff como Sancho Panza, numa rodagem itinerante ao estilo de "Othello", e com Welles como Welles. Pelo meio as histórias dos gastos sumptuosos do realizador, com charutos vindos de avião para os locais das filmagens e contas caladas em hotéis. Em 1992 uma versão do filme montada por Jesus Franco foi mostrada na Expo de Sevilha. Segundo o crítico espanhol Juan Cobos, a mesma tem pouco a ver com a de Welles, das poucas à altura da novela de Cervantes. Mas houve muitas tentativas.
A começar uma primeira de 1915, realizada por Edward Dillon, com 5 bobinas e supervisão de D. W. Griffith. Ainda no tempo do mudo há uma adaptação inglesa de 1923, realizada por Maurice Elvey, e em 1926 Lau Lauritzen faz uma versão cómica com Carl Schenstrom num Quixote dinamarquês. Em 1933 G. W. Pabst, já no sonoro, faz a sua versão, também conhecida como "As Aventuras de D. Quixote", realizada em França após o nazismo e o exílio do director, com o grande cantor Fedor Chaliapine no papel do cavaleiro. Na URSS as aventuras do cavaleiro da triste figura passaram ao grande écran em 1957 pela mão de Grigori Kosintsev com o seu "Don Kichot", na interpretação de Nicolai Cherkasov. Segundo alguns, esta é a versão cinematográfica definitiva, tendo em conta que Welles não terminou a sua.
Obviamente que em Espanha os cineastas usaram o filão Cervantes e especialmente Quixote. Em 1947 Rafael Gil realiza "Don Quijote de la Mancha", uma adaptação fiel da novela, com Rafael Riveles no protagonista e Juan Calvo como Sancho Panza, aparecendo Fernando Rey como Sansón Carrasco, ele que entraria num filme para a televisão de Jacques Bourdon e Louis Grospierre, como Duque, para encarnar Don Quixote na versão televisiva e cinematográfica feita em 1991 por Manuel Gutiérrez Aragón, com um inspirado Alfredo Landa como Sancho Panza e que abarca o primeiro livro de "El Quijote". Em 2002 Gutiérrez Aragón dirige "El Caballero Don Quijote", o filme da segunda parte, agora com Juan Luis Galiardo e Carlos Iglesias nos protagonistas, projecto que não foi levado a cabo devido à morte de Rey que, recorde-se, também integra o elenco do filme inacabado de Orson Welles.
Uma referência para dois projectos completamente diferentes. Um filme de 1973, "Don Quixote", realizado por Robert Helpmann e Rudolf Nureyev, uma adaptação cinematográfica do ballet de Ludwig Minkus, e a versão made in Hollywood, "Man of la Mancha", realizado em 1972 por Arthur Miller, esse mesmo, o de "Love Story", com Peter O'Toole no protagonista, acolitado pelo escudeiro James Coco e com uma bombástica Sophia Loren como Dulcinea, na versão impossível da obra de Cervantes. Pelos vistos, obra literária de tão grande envergadura não está talhada para grandes adaptações ao cinema. Já aconteceu com outras.
Até à próxima e bons filmes!

Luís Dinis da Rosa
Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico
 
 
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