Memórias Ficcionadas
Livre de Saneados
«Atravessei os
mares e os continentes, conheci outras línguas, outras gentes, (…)
a minha volta é só formalidade.»
("Dois
sonetos do difícil retorno", Poemas, Sidónio
Muralha)
Desde que tiveram a ousadia de
afixar, no placard exterior da Associação, fotos e relatos do
massacre de Wiryamu, abalando desse modo a paz podre em que o
Instituto vivia desde a Crise de 69, que o Director V.
Fortunatum procurava coarctar a actividade da AA, acantonando-a à
"Secção de Folhas"; uma espécie de livraria (acanhada), gerida de
forma displicente pelo Ricardi (finalista liquidatário do curso de
Serviço Social), e onde se vendiam sebentas de leitura obrigatória
(a variante universitária do «livro único»), principal fonte de
receitas da Associação (para além das quotas de sócio e de outras
miudezas como material de papelaria).
V. Fortunatum convocara a Direcção
da AA; coisa rara, pois "o coxo" - como o passaram a tratar quando
um grave acidente de viação o pôs naquele estado - não era dado ao
diálogo quanto mais à negociação.
- Quero comunicar-vos que, a partir
de hoje, a música a passar na cantina, durante as refeições, não
pode ter palavras; só instrumental e, de preferência, clássica.
- Mas a responsabilidade por essa
selecção é da "Sonora"… uma secção autónoma da Associação Académica
- ainda tartamudeou Jonas Guevara.
- E é tudo, meus senhores -
levantou-se, amparado na bengala, e foi-lhes abrir a porta… de
saída.
"Reunião" curta sem direito a
contraditório. O habitual naquele Director, um adverso convicto da
liberdade e da democracia.
Quando desciam a escadaria, de
regresso às instalações da AA, Arcílio, incrédulo, desabafou:
- Eh pá, isto quer dizer que se
acabaram os Creedence Clearwater Revival?! Mas até na escolha da
música aquele facho quer interferir! Nem na Rádio
Universidade! - estação controlada, com rédea curta, pela
Mocidade Portuguesa, e onde Arcílio tirocinara.
Um ano depois o regime caía!
A Revolução de Abril
engendrou uma nova figura - o saneado. A "vassoura" democrática ia,
desenfreada, "limpando" os da situação, no aparelho de
Estado, nas instituições de ensino, nas empresas,… O ISCSP[U], a
Faculdade de Direito e a Faculdade de Letras, nessa saga de "poder
popular de base", que entretanto emergira um pouco por todo o lado,
deram um forte contributo à correnteza de saneados; só do ISCSP[U]
foram expulsos o director deposto V. Fortunatum e mais de duas
dezenas de professores. A nova ordem era incompatível com a
convivência daquela gente "reaccionária" e "do antigamente". Por o
clima político-social não lhes ser nada propício, muitos deles
deram de frosque, para o estrangeiro. A maioria para o Brasil. Aí
se tinha exilado Marcello C., o ex-primeiro. Por lá andaram,
fazendo pela vida, enquanto o PREC seguia animado, revolucionário
qb e contraditório em demasia. Mas como a "revolução permanente" só
existe na literatura trotskista, a revolução dos cravos, ao
meter-se por caminhos ínvios, tocou no fundo a 25 de Novembro. A
partir daí, para uns, foi a acentuada marcha atrás, para outros, a
consolidação da democracia formal, a dita normalização; para estes
últimos, tal implicava a reparação dos "excessos" do PREC. Os
saneados, não tardaram a regressar da América do Sul. E de uma
assentada, acabaram por receber do Estado-mãos-largas, os
honorários de todos os meses em que foram proscritos. E assim,
aqueles professores catedráticos e similares viram-se sem escola
mas na posse de um importante capital financeiro para investir…
naquilo que, praticamente, não existia em Portugal - o ensino
superior particular.
E aquela gente parda, como
Gonçalves Proença, Soares Martinez ou V. Fortunatum, que sempre se
opôs tenazmente à liberdade, escolhia agora essa nobre palavra para
a primeira universidade privada - Universidade Livre;
criada com o capital social de 20 mil escudos (!), em Março de
1979, por despacho de Sottomayor Cardia, outro Ministro da (nossa
má) Educação (passou o resto da sua vida cívica a tentar
"limpar-se" daqueles anos de terra queimada na 5 de Outubro). A
Universidade Livre, nas instalações da Rua Victor Cordon,
facturou bem, entre 1980 e 1985. Depois foram as guerras intestinas
naquele panier de crabes: em cada cisão saía uma
universidade da cartola - a Universidade Lusíada, na Rua da
Junqueira (na vizinhança do ISCSP, o que facilitava a vida aos
turbo-professores, outra das figuras que este tipo de
ensino viria a instituir), a Universidade Autónoma, a
Universidade Moderna, a Universidade Independente e a Universidade
Portucalense. Foi um fartar vilanagem, graças aos "cursos de
papel-e-lápis" para uma clientela assegurada pela política de
numerus clausus que, todos os anos, deixava à porta das
universidades públicas milhares de candidatos.… Passados todos
estes anos, da maior parte delas, ficaram as cinzas.