João Proença, ex-secretário geral da UGT
“O tratado orçamental é uma ‘bíblia’ para os pobres”
Fez do consenso e do diálogo a sua
imagem de marca ao longo das quase duas décadas que liderou a
central sindical. João Proença em discurso direto.
17 de
maio de 2014, o dia em que terminou oficialmente o programa de
assistência financeira a Portugal, foi comparado, por muitos, ao
1.º de Dezembro de 1640, o dia da restauração. O espírito da troika
ainda permanece por cá?
O Governo tentou revestir de um
grande simbolismo essa data, capitalizando o momento em termos
eleitorais, visto que as europeias se realizaram a 25 maio.
Continuamos é sem saber quando é que a troika vai embora. O Governo
continua a assumir compromissos com a troika que o povo ignora e
desconhecemos que outros acordos vão ser firmados com vista ao
futuro com a União Europeia, o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional. Para além disso, Portugal integra uma União Europeia
que tem sido fiel à austeridade cega e generalizada que tem sido
fortemente criticada tanto pelas forças de esquerda, como pelos
sindicatos.
Ou seja,
temos austeridade para lavar e durar?
Este quadro de medidas só vai
agravar a situação do desemprego em toda a União Europeia, que
continuará a ser afetada de forma generalizada. Veja que até os
alemães não escapam a uma política de restrições salariais, mas
beneficiam de taxas de juro mais baixas. Isto é a perversão de um
mecanismo que se vira contra os países mais fracos a braços com uma
lógica de empobrecimento que não dá mostras de ser invertida.
Diz que o
lema deste Governo é «quero, posso e mando». A insensibilidade
social é a principal caraterística dos nossos governantes?
Este executivo adotou uma
política que revela que quis ser mais troikista que a troika. Achou
que podia fazer rapidamente o ajustamento e depois de o fazer podia
beneficiar de condições propícias ao crescimento económico. Mas não
foi isso que aconteceu. Pior, não percebeu que isso não jogava com
a política que estava a ser seguida em termos europeus.
A
austeridade secou tudo à volta?
A ultra-austeridade conduziu a um
decréscimo brutal do produto económico e retrocedemos muitos anos.
Tudo em nome de ajustar o défice a uma velocidade muito superior à
da Espanha e da França, por exemplo. E que resultados tiramos em
ser excelentes discípulos da Alemanha? Eles estão à vista de
todos.
O Tratado
Orçamental não vai tornar a disciplina das contas públicas um dogma
inatacável?
Eu sempre disse que em paralelo
com o Tratado Orçamental devia existir uma política com dimensão
económica e social, definindo metas concretas. Simplesmente estas
dimensões conheceram o peso que foi dado à vertente orçamental e
monetária. O Tratado Orçamental é, sobretudo, uma "bíblia" para os
pobres e não uma "bíblia" para os ricos.
Os mais fortes, os mais ricos, e
falamos sempre em primeira análise da Alemanha, a ditarem as
leis…
Repare, os alemães estão a fazer
dumping com o euro. Se eles tivessem moeda própria, de acordo com
as regras da economia, a moeda deles estaria altamente avaliada,
como o escudo seria desvalorizado. No fundo, falta equilibrar no
espaço europeu políticas restritivas e políticas de crescimento,
acabando com a lógica vigente de cada país jogar com as suas
políticas. E depois há dois pesos e duas medidas. Veja que ninguém
respeita o Pacto de Estabilidade e Crescimento de maneira cega e os
primeiros a darem o exemplo são os franceses, os espanhóis e os
italianos. Nós, respeitamos, obedientemente.
A saída
limpa ou «à irlandesa» não serve de consolo?
Não foi minimamente «à
irlandesa». Portugal está sujeito a constrangimentos que ainda se
ignoram, grosso modo, nomeadamente no que diz respeito aos
compromissos assumidos com as entidades europeias na eventualidade
de algo correr mal. Portugal continua a ser um país sob vigilância.
A troika já não nos visitará de 3 em 3 meses, mas existe uma
supervisão permanente dos nossos credores.
No dia em que falamos, 6 de
junho, celebra-se o "Dia da Libertação dos Impostos". Ou seja, a
partir de hoje é que começamos a ganhar para nós…
Se calhar essa data já está
desatualizada, porque o Governo continua a aumentar os impostos e
outros estão na calha.
O nosso
Estado está viciado em impostos?
O problema é que os impostos não
se traduzem em benefícios e contrapartidas para a população. Para
que é que eles servem? Têm efeito redistributivo?
Eu lembro-me que a senhora
Margaret Thatcher quis destruir o serviço nacional de saúde e os
ingleses recusaram. Há uns anos, num país nórdico, um partido
conservador concorreu a um ato eleitoral prometendo diminuir a
carga fiscal, mas em simultâneo diminuir o nível de Estado social.
Sabe o que aconteceu? Perdeu as eleições.
O que o Governo PSD/CDS tem feito
neste domínio manifesta-se na forma como foi paralisada a
administração pública em áreas essenciais, a injustiça fiscal
aumentou, etc. No outro dia li um estudo que apontava que o
principal país exportador de Moçambique era a Holanda…
E
porquê?
Porque as SGPS portuguesas estão
sediadas na Holanda para fugir aos impostos. Os ricos conseguem
sempre arranjar mecanismos para fugir aos impostos, mas o mesmo não
acontece com a classe média.
O Estado social
português está sob ameaça?
Completamente. Existem problemas
muito sérios na educação, na saúde, na justiça e até na segurança
social. Apesar dos sacrifícios brutais feitos pelos portugueses a
prestação de serviços do Estado não é, nem de longe nem de perto,
comparável ao esforço dispendido pelos contribuintes. E ainda por
cima a carga fiscal incide sobretudo sobre os rendimentos de
trabalho (pensões e salários), enquanto os rendimentos de capital
permanecem à margem. Isto é injusto.
A reforma
de Estado prometida pelo vice-primeiro ministro Paulo Portas foi
uma bandeira desde o início da legislatura, mas continua por
cumprir. Amputou-se em vez de reformar?
A propalada reforma é um total
"bluff". O que se assiste é à destruição do Estado e ao corte nos
locais e nos atores errados (Estado social, trabalhadores da
administração ; pública e pensionistas). Em vez de se criar um
clima de mobilização e motivação nos trabalhadores da administração
pública, criou-se um clima de intimidação e ameaça permanente. Para
além disso, o Estado não está a gerir melhor a administração
pública em matéria de poupanças. Só se corta, em vez de se
implementar uma melhor gestão e tudo se faz para promover a fuga de
quadros e garantir a partidarização das chefias. Isto já para não
falar do recurso abusivo aos consultores externos, criando uma
administração pública paralela desnecessária.
Diz-se
que este Governo é o mais ideológico em muitos anos, com um forte
pendor liberal. O que é que um governo socialista faria
diferente?
No caso concreto da reforma da
administração pública posso dizer-lhe que a prioridade seria
garantir a estabilidade de funcionamento em áreas centrais. Por
outro lado, terá de haver uma maior responsabilização de quadros
dirigentes e, sobretudo, aproximar a administração pública das
populações. Encerrar serviços no interior é uma política
inaceitável. Finalmente, por a funcionar melhor a administração
publica. E é possível. Há desperdícios brutais.
Acha que
existem funcionários públicos a mais?
Pelo contrário. Acho que há a
menos, nomeadamente em alguns serviços. Só que nos próximos anos
não será possível encetar uma politica de aumento de
trabalhadores.
A destruição tem sido imensa.
Veja que na educação, uma área central, registou-se uma forte
desmobilização. E quando falamos de educação é o básico, o
secundário, mas também as universidades e todos os campos que se
relacionam com a ciência e investigação. Destruiu-se toda a área da
inovação, e a qualificação profissional do secundário - uma
conquista do governo anterior - foi esquecida, etc. No fundo
abandonou-se uma política educativa que vinha a ser seguida e que
na minha opinião tinha os seus méritos. Também aqui o problema é
mais de políticas do que falta de verbas.
Por que é
que entende que certos cortes no Estado são mais imorais do que
inconstitucionais?
O Governo tem usado e abusado das
medidas inconstitucionais para aplicar na administração pública,
mas há exemplos de completa imoralidade na gestão que eu gostaria
de denunciar. A ADSE, o sistema privado de proteção na saúde
aos trabalhadores da administração pública, está a ser super
financiado para combater o défice. Exige-se 3,5% aos trabalhadores,
quando é sabido que 2,5% era suficiente para garantir o equilíbrio
financeiro do sistema.
O
canalizar de 0.25% do aumento do IVA para a sustentabilidade do
sistema de segurança social é uma medida necessária?
Não me diz nada e cheira-me a
fraude. Recordo-me que num Governo de Cavaco Silva 50 por cento do
aumento do IVA foi para financiar o regime contributivo. Isso é
diferente. Hoje, na discussão deste regime o que está em cima da
mesa é se o regime for só financiado por trabalhadores-
empregadores estamos a penalizar a produção nacional face aos bens
importados.
Os países
europeus não se podiam entender sobre uma eventual harmonização
fiscal?
Participei durante a década de 80
em vários grupos de trabalho criados para darem pareceres sobre as
medidas previstas em termos fiscais e uma era como financiar o
sistema de segurança social. Falhou tudo. Nunca houve entendimento.
Uma harmonização fiscal, por mais mínima que fosse, na Europa,
seria fundamental. Era necessário combater o dumping fiscal nas
empresas, criando uma taxa social mínima para evitar a fuga aos
impostos. Mas é difícil. O Luxemburgo e a Áustria, só para citar
dois países, vivem de facilidades fiscais e ao nível europeu
qualquer alteração de grande envergadura requer uma unanimidade em
Bruxelas.
Como comenta a
medida de alinhar os salários à produtividade?
A produtividade tem que ser tida
em conta nas negociações salariais. Mas a política de rendimentos
tem de ser discutida considerando outros fatores, nomeadamente a
redistribuição justa da riqueza que estiver a ser criada por uma
empresa. Por isso, defendo que os aumentos de salários são uma
parte fulcral da política de rendimentos que deve ser objeto de
acordos bipartidos ou tripartidos por via da negociação
coletiva, mas nunca de imposição por nenhum Governo e muito menos
com efeito retroativo.
Tem uma
vasta experiência sindical. Esteve 17 anos e alguns meses como
secretário geral da UGT, mas no total foram três décadas de
vivência nos sindicatos e na Concertação Social. Qual é o papel dos
sindicatos nas sociedades modernas, de mera contestação ou de
construção?
Não há uma democracia política
sem um movimento sindical forte, mas também sem um movimento
patronal forte.
A UGT e a
CGTP têm seguido rumos diferentes e marcado distâncias nas suas
intervenções. As duas centrais sindicais ganhariam em estar mais
concertadas?
A CGTP sempre teve uma posição
ideológica contra o diálogo social tripartido. Por isso, quando a
Concertação Social foi criada em 1984 a CGTP recusou pertencer, só
acabando por fazê-lo três anos mais tarde. A CGTP nunca assinou um
acordo daqueles que eu qualifico de difíceis. Um acordo obriga a
cedências mútuas e é de soma positiva quando aquilo que se ganha é
mais do que aquilo que se perde.
Pelo o que me diz, é mais o que
separa as centrais sindicais do que o que as une…
Considero fundamental que as
centrais sindicais prossigam a unidade na ação. Nem sempre é
possível a nível europeu este objetivo, mas tem sido em Espanha, na
Itália e na Holanda. Em Portugal, a posição ideológica da CGTP,
nomeadamente em Concertação Social, tem impedido ir mais longe em
certos dossiês. A CGTP usa a concertação como um palco para a
contestação em vez de usar o palco para o diálogo e a
negociação.
Devido à
multiplicação das paralisações, o efeito da greve
banalizou-se?
Não estou de acordo. Os países do
norte da Europa são de muito diálogo e poucas paralisações. Já no
sul há mais greves, sendo que Portugal é o país com menor número de
greves, se compararmos com a Itália, a Espanha, a Grécia e a
própria França. Por cá os efeitos são mais visíveis nos setores dos
transportes porque penalizam mais fortemente a população. E repare
que Portugal tem algo que não acontece muito noutros países, que é
a salvaguarda dos serviços mínimos. Mas estou em crer que o
caminho certo seria fomentar o diálogo com as empresas públicas de
transportes, que usam e abusam de uma política de «quero, posso e
mando».
É
definido como um homem de consensos. Fica chocado quando a
atividade política se transforma numa «arena de
gladiadores»?
Criou-se uma atividade política
com um elevado grau de conflitualidade e os acordos são muito mal
vistos e desvalorizados, quer fora quer dentro do âmbito
parlamentar. Falta uma cultura política de acordos em Portugal. Mas
digo-lhe que quando não há entendimento a culpa é normalmente mais
de quem governa do que da oposição, isto apesar de eu admitir que
os acordos políticos à esquerda têm sido bastante dificultados. As
maiorias absolutas também costumam ser autoritárias na ação e
impeditivas em áreas que careciam de medidas ; que deviam ser
prolongadas para além da legislatura. No fundo, devia preservar-se
uma lógica de continuidade e estabilidade de políticas em áreas
centrais como a justiça, a educação e na segurança social, etc.
Infelizmente, este Governo tem sido o campeão da ausência de
diálogo.
Acho que a nível nacional devia
ser seguido o bom exemplo do Poder Local em que devido à
proximidade com as populações os consensos são mais
frequentes.
O
desemprego tem baixado paulatinamente. São sinais
encorajadores?
O desemprego só não é maior
devido à manipulação dos dados da formação e por causa das pessoas
que são empurradas para a emigração. O IEFP usa e abusa de falsas
formações, nomeadamente de ações de curta duração para retirar as
pessoas das estatísticas do desemprego. É gastar dinheiro mal
gasto. Sejamos frontais. Por mais manipulações que haja, com
uma economia que cresce residualmente não é possível criar postos
de trabalho.
Que
políticas defende para fixar jovens no país?
Lançaram-se alguns programas para
combater o desemprego jovem, mas sem sucesso. Faltou consequência
nas políticas e falhou-se o objetivo de empregar de forma
sustentada os jovens licenciados, a partir do momento em que o
Estado deixou de ser o grande recrutador dos
recém-diplomados.
Muitos
cursos de ensino superior encerraram ou vão encerrar. As fracas
garantias de empregabilidade dos universitários é um grave problema
por resolver?
A empregabilidade não pode ser o
critério único para o Estado financiar cursos superiores e
mantê-los nas universidades. Eu defendo que as universidades
apostem na internacionalização e no diálogo entre si. Acompanhei de
perto o diálogo que ocorre entre a Universidade da Beira Interior e
a Universidade de Évora para encontrarem áreas de especialização,
sem competirem entre si nos territórios em que se inserem. Na Beira
Interior existe o setor têxtil, agrícola e veterinário, por
exemplo. No Alentejo pode pretender-se atrair pólos industriais e
laboratórios estatais, por exemplo. No fundo, criar uma política
própria para o setor universitário. É preciso não esquecer que as
universidades do interior são fatores cruciais em termos de
desenvolvimento do interior porque é uma maneira de os quadros ali
formados permanecerem na região.
Será
preciso um milagre para fazer a economia crescer até aos 3 por
cento?
A economia todos os dias cria e
destrói centenas ou milhares de postos de trabalho. As
economias não estão paradas, mas falta crescer o mínimo
suficiente, não diria 3 por cento, talvez 1 ou 2 por cento. E falta
promover o investimento, claro. O problema que permanece é
que a única política de emprego que existe passa por empurrar os
jovens para a emigração. O que vai existindo de emprego por cá é
trabalho precário, mal remunerado e muitas vezes exigindo um alto
nível de qualificação. E o dramático é coexistir um desemprego
muito elevado e uma população ativa a diminuir de forma acelerada,
o que põe em causa o sistema de segurança social.
Nuno Dias da Silva
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