Bocas do galinheiro
O homem tranquilo
Às voltas com o "euro",
depois do segundo empate de Portugal, passei os olhos por uma
reportagem com os adeptos irlandeses que passeiam a sua alegria e
bom humor por França, cantando e bebendo, alguns até irão aos
jogos, presumo, quando me lembrei de John Ford, cineasta maior e
dileto filho dessa Irlanda, que tanto evocou nos seus filmes,
apesar de já ter nascido nos Estados Unidos. E veio-me à cabeça,
aquele que para mim é o maior de todos os seus filmes focados nas
suas origens: "O Homem Tranquilo" (The Quiet Man, 1952).
"Impetuoso e homérico". Assim se
pode caracterizar "Homem Tranquilo", parafraseando Barry Fitzgerald
quando olhou a cama desfeita no dia que se seguiu à noite de
núpcias de Mary Kate Danaher e Sean Thornton. Não foi bem assim. Os
ímpetos foram outros. Que para o caso muito interessam. Num filme
em que todo o universo fordiano se descobre, a sua visão do mundo,
humanista, os seus ideais, os seus desvarios, as suas ideias, o
amor de Maureen O'Hara (Mary Kate) e John Wayne (Sean), com todos
os obstáculos que enfrenta. Não é apenas mais uma "love story", é
toda a História de uma Irlanda a que o realizador regressa, para
glorificar e para aí reencontrar as suas raízes, mas também as
tradições, os costumes e as convenções, mesmo que já não lhe digam
muito, relativamente à maneira de viver no Novo Mundo. Miragem? Não
tanto.
A caminho de Inisfree, John Wayne, o
antigo boxeur, ao deparar-se-lhe pela primeira vez Maureen O'Hara,
bela, ruiva de cima-abaixo, camisa azul e saia vermelha, pergunta
se ela é real, ao que o velho Barry Fitzgerald lhe responde ser
apenas uma miragem provocada pela sua terrível sede. Porém, a sede
era outra. A dos corpos, a das paisagens verdes, dos pubs, das
canções tradicionais irlandesas, mas também a sede do amor, ou
desejo (?), descobertos mesmo ali, à chegada, corporizado naquela
inesquecível e sedutora Mary Kate Danaher. Os dados estavam
lançados. O destino dos dois também, doseado por uma incrível carga
erótica que Ford consegue emprestar a esta "história de amor para
adultos" e que a atravessa de ponta a ponta. No encontro à saída da
missa, quando Wayne lhe estende a mão com água benta, suprema
blasfémia, um choque atravessa aqueles dois corpos que não mais
deixarão de se atrair. Epidérmica, a atracção. Profundo, o desejo.
Até ao fim. Primeiro naquele supremo beijo, na cabana, com o vento
a unir os corpos, depois o entrelaçar dos dois no cemitério, a
chuva a encharcar-lhes as roupas e a colá-las cada vez mais à pele.
"Impetuoso e homérico". Ford, claro, porque os dois, apenas nas
cogitações de Fitzgerald. Por vontade dela só o serão muito
depois.
Adaptado por Frank S. Nugent duma
história de Maurice Walsh, "O Homem Tranquilo" é um marco na
filmografia de John Ford, na esteira de filmes que tocaram a gesta
da libertação da sua Irlanda como "Mother Machree" (Minha Mãe,
1928), "O Denunciante", (1935) e "A Taberna do Irlandês", de 1963.
A história até é simples: John Wayne/Sean Thornton começa uma
segunda existência, preso todavia a um passado que pretende
esquecer (pugilista de êxito nos Estados Unidos, matou o seu
opositor do último combate) e que se lhe atravessa sempre nesta
segunda "vida" quando sabe que terá que enfrentar o cunhado que se
recusa a pagar o dote da irmã, uma luta que ele quer evitar, mas
que é inevitável. Para apagar a desonra, não a sua, mas a da
mulher. Humilhada, sentia-se, pela atitude do irmão. A dele ele já
a lavara, ao contar ao padre, em irlandês, claro, porque há
princípios de que não se abdica, a razão e a existência do seu
casto casamento. O regresso às origens tem um preço. E Sean teve
que pagá-lo, submetendo-se aos códigos irlandeses de Mary Kate,
exigindo o pagamento e aceitando a luta. Homérica. Impetuosa. Até
ao fim. Até à vitória e à entrega de Maureen O'Hara.
Num cinema em que o conjunto é
reduzido à essência do movimento dentro dos planos, sempre ligados
por um "raccord" de Câmara fixa, são sempre os actores que se
movimentam. E Ford soube escolhê-los. A começar por John Wayne, o
eterno "cowboy" do cinema americano e de John For em particular.
Com este começou em "Stagecoach" (Calvagada Heróica, 1939). Depois,
bem depois são dezenas de filmes, sempre com aquele misto de dureza
e ternura que se prolongaram até "A Taberna do Irlandês". Aqui, é
igual a si próprio. Os mitos não se explicam.
Do clã irlandês do Abbey Theater,
Maureen O´Hara, sempre bela, rebelde e sedutora, de famosos e
ruivos cabelos, descoberta por Charles Laughton no Abbey. Começou
com Hitchcock em "Pousada da Jamaica", em 1939. John Ford deu-lhe
alguns dos seus melhores papéis. Este "duelo" com John Wayne
(contracenaram numa mão cheia de filmes) é seguramente dos
maiores.
Mas lá estão também Barry
Fitzgerald, mais conhecido por "O Bom Pastor", onde era o padre, ou
o seu irmão Arthur Shields. Victor McLaglen (Red Will Danaher, o
truculento irmão de O'Hara) recebeu a nomeação para o óscar de
melhor actor secundário. Depois de perder à pancada com Wayne
perdeu a estatueta para Anthony Quin. Por mim teria nomeado Barry
Fitzgerald.
Filme síntese do imaginário
fordiano, "O Homem Tranquilo" valeu a John Ford mais um óscar do
melhor realizador. Justíssimo, pelo que escrevemos atrás. O amor de
um homem à sua terra merece, quando é sentido e assumido, todos os
prémios do mundo.
Até à próxima e bons filmes!