"Já há poucos cursos de lápis e papel"
"Já há poucos cursos de lápis e papel"
É
português o comissário europeu que tutela o maior programa-quadro
de sempre de investigação e inovação da União Europeia. Em
entrevista exclusiva, Carlos Moedas debruça-se sobre um mundo em
acelerada transformação, com impactos no sistema educativo e
laboral.
Tem dito repetidamente que
a experiência no Programa Erasmus foi decisiva para a sua vida.
Este foi um dos ingredientes para chegar onde chegou?
Foi, sem dúvida, a grande mudança na minha vida e que me
abriu as portas ao mundo, permitindo-me, nomeadamente, contactar
com outras culturas e falar outras línguas. Eu tinha nascido em
Beja, uma cidade de província, pertencia a uma família sem grandes
recursos, e se ir estudar para Lisboa já era um grande esforço,
então estudar no estrangeiro era quase um sonho que eu julgava
impossível de se realizar. O Erasmus abriu-me as portas ao sonho de
ter uma experiência no estrangeiro, sem nunca ter viajado. Com 22
anos, eu saí de Portugal para França, quando até então a única
localidade que conhecia fora das nossas fronteiras era Rosal de la
Frontera. Se eu tivesse nascido numa geração em que não existia o
Erasmus, como a geração dos meus pais ou da minha irmã,
dificilmente teria o percurso que tive e nunca teria ido estudar
para o estrangeiro.
Tem três filhos, que
estudam em Bruxelas. Apesar de os tempos serem outros,
aconselhava-os a seguirem o seu exemplo?
Sim, penso que é muito importante para os jovens terem
uma experiência de Erasmus. Não é a parte académica que os vai
diferenciar dos demais, mas a grande mais valia deste programa é
mesmo as suas experiências, nomeadamente estudar numa universidade
de um país diferente e contactar com professores de outros países,
etc. Cria-se uma espécie de carapaça que nos ajuda a ser
resilientes e a adquirir um espírito de sobrevivência, dotando a
pessoa de instrumentos para lutar e combater perante as
adversidades que surjam.
Nas múltiplas viagens que
tem feito, na sua condição de comissário europeu, destaca uma
visita a uma escola de Yerevan, na Arménia, em que encontrou um
casal americano, de origem arménia, que reconstruiu uma escola, em
que privilegiou a inovação, a interceção de disciplinas e onde as
crianças seguem as suas paixões. É esta a definição da escola
ideal?
A pessoa entra naquela escola, que dá pelo nome de
«Tumo», e, de alguma forma, fica com o sentimento que está a entrar
na escola ideal. Obviamente, que o diabo está nos detalhes, e como
só estive umas horas lá, não sei como é que a escola funciona no
dia a dia. Contudo, a ideia de ser um complemento à escola do
ensino normal para ajudar a potenciar as paixões e desenvolver os
projetos dos alunos, faz com que a formação das crianças seja
distinta. Quem sai daquela escola sai com trabalho feito. E há
outra curiosidade: os responsáveis pela escola não dão diplomas,
mas sim um portfólio com aquilo que a pessoa sabe fazer.
Basicamente, o que me atraiu nesta escola foi o facto de eu
acreditar que o ensino tem de caminhar na direção das paixões, da
interdisciplinaridade, da interseção entre disciplinas, etc. Para
além disso, a localização da escola, na longínqua Arménia, também
foi surpreendente, porque temos muitas vezes a ideia que os casos
de sucesso existem apenas nas grandes cidades ou nos grandes
países. Nada mais errado. A excelência pode ser encontrada em todo
o mundo, quando está a ser tratado no hospital que foi a
investigação de muita gente que contribuiu para aquele momento. Na
saúde, o Einstein chegou à conclusão que havia algo a que se
chamava a anti-matéria. Hoje em dia quando a pessoa é diagnosticada
com cancro e faz um "PET Scan", que é um positrão - a definição da
anti-matéria -, que Einstein descobriu e que hoje nos permite
detetar onde está o tumor, se se está a desenvolver, se tem
metástases, etc. E, por este exemplo concreto, creio que é
fundamental que todos os que se interessam por estas matérias,
incluindo os jornalistas, divulgarem a ligação entre a investigação
científica e a vida quotidiana, nomeadamente as vidas que se
salvam.
As profissões vão acabar e as
competências pessoais serão mais importantes do que as competências
técnicas, li recentemente num artigo. Como é que os sistemas ensino
se devem adaptar a esta mutação?
Tudo na vida vem em acumulação, tanto as competências
técnicas como as pessoais. E vivemos num contexto em que o mundo é
cada vez mais complexo e competitivo, o que leva a que só as
competências técnicas sejam insuficientes. É preciso privilegiar a
vertente da interdisciplinaridade e conseguir encontrar a inovação
e a excelência nas áreas que, à primeira vista, parecem exteriores
ao nosso saber.
Mas o
atual contexto vai no sentido de muitas profissões serem
extintas?
Eu penso é que vão existir profissões que nunca
imaginaríamos que pudessem aparecer. Dou-lhe este exemplo: a pessoa
termina o curso de engenheiro civil, mas as profissões do futuro
são tantas que esse diplomado pode ir desempenhar uma função sem
ter muito a ver com a engenharia civil, mas cuja base da engenharia
civil lhe serve e o qualifica para ser profissional.
O
paradigma digital mudou tudo?
O mundo do emprego nas plataformas digitais foi alvo de
uma tremenda revolução, nomeadamente na área da engenharia. No meu
tempo não havia Facebook, Twitter, nem qualquer "social media", em
geral. A profissão de médico está a mudar completamente com o "big
data". Todas as profissões estão, de certa forma, a mudar com o
mundo digital e novas profissões estão a ser criadas.
O sistema educativo terá de
se adaptar a estas transformações…
Quando se fala disto, emerge o exemplo da Finlândia que
mudou o sistema de ensino. Eles, que já são muito bons e
competentes, decidiram que numa parte do ensino secundário seria
implementada uma lógica interdisciplinar e fomentado o trabalho em
conjunto. Isto é fundamental numa etapa inicial do sistema de
ensino, porque o que se nota é que os investigadores são
resistentes a trabalhar em conjunto. Por exemplo, um físico vai
resistir a trabalhar diretamente com um sociólogo.
Os cursos de base
tecnológica irão progressivamente substituir os chamados cursos de
lápis e papel?
Francamente, acho que já há muito poucos cursos de lápis
e papel. O digital está em todo o lado e os cursos de humanidades
não se podem excluir. O historiador do futuro terá como base o
lápis e papel, mas ele terá que fazer "text and data mining", tem
que saber tratar dados, fazer estatísticas, etc. Vemos hoje nas
engenharias e na medicina que o cruzamento com o mundo digital é
cada vez mais forte. No futuro, todos os cursos resultarão da
interceção entre o lápis e o papel e o digital. Todos os cursos e
todas as profissões estão a mudar.
Tutela o Horizonte 2020,
com um orçamento de aproximadamente 77 mil milhões de euros. Qual a
importância deste programa para Portugal?
Os resultados para Portugal têm vindo a ser cada vez
melhores. No último programa-quadro, a que chamávamos o FP7, que
foi até 2013, Portugal conseguiu 500 milhões. E neste momento, no
Horizonte 2020, já estamos na barreira dos 400 milhões. Se a meio
do programa já se atingiu este valor, penso que podemos ambicionar
em chegar aos mil milhões no fim deste programa. Isto é de crucial
importância para as universidades, também para as empresas
portuguesas, e é, no fundo, um selo de excelência. Também já
ultrapassámos os 50 bolseiros portugueses no European Research
Council, homens e mulheres que podem trabalhar em qualquer local do
mundo.
De que forma uma criação ou
um avanço científico num laboratório ou numa investigação pode
contribuir para mudar as nossas vidas, nomeadamente na saúde?
O caso da saúde é de facto muito interessante. O Andre
Geim, que inventou o grafeno e que foi prémio Nobel e nosso
bolseiro, diz sempre que a relação entre o que se cria na ciência e
os produtos é de tal ordem longa, que as pessoas não sentem isso. O
cidadão comum provavelmente não tem a noção ao olhar para um
telefone inteligente ou quando está a ser tratado no
hospital que foi a investigação de muita gente que contribuiu para
aquele momento. Na saúde, o Einstein chegou à conclusão que havia
algo a que se chamava a anti-matéria. Hoje em dia quando a pessoa é
diagnosticada com cancro e faz um "PET Scan", que é um positrão - a
definição da anti-matéria -, que Einstein descobriu e que hoje nos
permite detetar onde está o tumor, se se está a desenvolver, se tem
metástases, etc. E, por este exemplo concreto, creio que é
fundamental que todos os que se interessam por estas matérias,
incluindo os jornalistas, divulgarem a ligação entre a investigação
científica e a vida quotidiana, nomeadamente as vidas que se
salvam.
Apresentou com Carlos Coelho um estudo denominado
"Antecipar o futuro - 10 tecnologias que podem mudar as nossas
vidas". Consegue eleger uma?
É difícil, porque todas elas são tecnologias que vão
mudar o futuro e o nosso mundo. Mas há uma em particular que está a
mudar de forma radical e talvez me possa focar nessa, que é a
impressão 3D.
Quais são as principais
vantagens?
Permite relocalizar a perda de emprego que tivemos
durante a globalização. A impressão 3D permite uma impressão
customizada, ou seja, feita à medida. Portanto, podemos trazer
emprego para a Europa, em que uma indústria já não produz em grande
quantidade, mas é definida a quantidade para um determinado
cliente. mudança nos custos é outro aspeto extraordinário. Em
África, conseguimos imprimir uma casa por 35 euros. Imagine o
impacto que isto pode ter em continentes, como o africano, por
exemplo. A impressão 3D está a redefinir a indústria. Mas há mais
exemplos, agora na área da saúde. Recentemente, em Nova Iorque,
durante a operação a um bebé de três meses, fez-se a impressão 3D
do coração para os médicos poderem treinar a operação antes de
iniciar a cirurgia.
Reclama mais investimento
em ciência por parte dos governos de forma a criar mais empregos no
futuro. Os estados europeus estão mais sensíveis a este
setor?
Acho que sim. Mas o que me dá ainda uma certa tristeza é
que o líder mundial que mais fala de ciência e inovação seja o
presidente chinês, Xi Jinping. Os líderes europeus deviam olhar
para esse fenómeno que é a ambição chinesa neste domínio. Mas
sejamos francos: a Europa ainda é o centro da ciência fundamental
no mundo. Mas gostava de ver nas lideranças europeias um acentuar
da ciência e na inovação. Talvez isso não se concretize porque no
dia a dia estas temáticas, por norma, não se traduzem em votos nas
urnas.
Mas dado o impacto na vida
dos cidadãos, admite que a mensagem sobre os seus benefícios não
tenha sido passada?
Acho que é uma realidade. Não temos sabido transmitir às
pessoas a importância e a ligação direta da ciência e da inovação
para criar emprego e empresas. E, deste modo, eu acho que investir
em ciência até devia ser traduzido em votos.
A comunidade científica,
onde começa o processo, está mais próxima dos decisores, ou seja,
dos políticos? Há maior articulação?
Hoje em dia, penso que sim. Tem existido essa evolução e,
na sequência disso, escolhemos sete consultores científicos para
assessorar os políticos, onde se inclui a professora Elvira
Fortunato. O objetivo é que os cientistas estejam próximo da
legislação e que possam dar "input" científico para que os
políticos tomem as decisões certas baseados em factos científicos.
Já agora, permita-me uma palavra para o professor Alexandre
Quintanilha, um cientista, que decidiu participar na vida política,
no cargo de deputado. Penso que deviam existir mais cientistas com
esta coragem para enfrentar um mundo que é muito distinto do mundo
da ciência. É importante existir a ponte entre os gabinetes dos
políticos e os laboratórios dos cientistas.
Sobre o potencial
científico de Portugal, um estudo recente indica que subimos para o
11.º posto na produção científica. Como avalia este
resultado?
É muito bom. Se há uma história interessante e de sucesso
a contar sobre o país é que aquilo que foi o desenvolvimento de
Portugal na área científica, da inovação e das empresas. Isto já
para não falar na indústria têxtil e na indústria agroalimentar, em
que conseguimos progredir muito através da inovação.
Portugal organizou a web
summit em 2016 e vai acolher uma grande conferência no final do ano
no domínio da inovação social, onde diz, Portugal lidera. Pode
trocar por miúdos e explicar ao nosso leitor no que consiste a
inovação social?
É pertinente esse esclarecimento, até porque há várias
confusões em que as pessoas incorrem. Primeiro entre inovação e
invenção. Uma invenção não é uma inovação, pode vir a ser ou não. A
inovação social é aquela inovação que melhora a relação com o
cidadão e cria essas pontes entre uma inovação tecnológica para uma
inovação de processo. Nesse sentido, a inovação social leva-nos
para uma melhoria daquilo que é a nossa vida e cruza o sistema hoje
que temos que é o melhor do mundo na Europa, em termos sociais. E
para desenvolver o Estado Social é preciso a participação dos
cidadãos.
Em que moldes vai ser
organizada esta iniciativa, prevista para Lisboa?
Será uma iniciativa conjunta do Governo português, da
Comissão Europeia e da Fundação Gulbenkian. Não queria deixar de
referir o grande apoio da ministra, Maria Manuel Leitão Marques,
que é uma "expert" e uma das pessoas que mais sabe sobre este
assunto, nomeadamente como promover uma administração pública mais
eficiente e mais próxima da população. A inovação social é uma
aposta estratégica deste país e creio que terá de ser para
continuar, nomeadamente ao nível da simplificação do Estado.
Como é que os portugueses e
Portugal são vistos na Europa e no mundo?
Portugal tem uma grande vantagem: somos vistos sempre
como um país muito neutral - aquilo a que eu chamo de neutralidade
positiva - em que as pessoas não têm um "a priori" negativo. Isso
permite-nos ter uma boa relação com a maior parte dos países do
mundo e ser uma peça da negociação da política internacional muito
importante. Estou a pensar na figura do secretário-geral da ONU,
António Guterres, que personifica os valores que acabei de referir
e que define na perfeição a maneira como o mundo vê Portugal e os
portugueses.
Ainda existe a fama de
latinos do sul que têm fama e proveito de indisciplinados?
Acho que essa imagem já é quase um mito. Eu saí de
Portugal em 1992/93, passei 15 anos fora do país, e notei que nesse
período esse rótulo foi desaparecendo. Penso que somos um povo
muito respeitado e que já não olham para nós como um povo que
trabalha pouco e que vive à custa dos outros. Isso já não
existe.
Finalmente, vamos falar da
Europa, que completou recentemente 60 anos. O projeto europeu ou
muda ou morre?
Morrer não morre, mas se não mudar, fragiliza-se. É
importante que seja mais claro para as pessoas quem faz o quê, o
que é que a Europa é e não é. Acho que muitos europeus não sabem o
que faz a Comissão Europeia, qual o papel, quais os poderes, etc.
Muitas vezes somos responsabilizados por aquilo que não está nas
nossas mãos. Temos de ter a capacidade de no futuro nos
reinventarmos. A relação entre a UE e os estados é muito difícil,
com a primeira a ser culpada pelo que faz e pelo que não faz. O
ponto de partida para a discussão terá de ser o Livro Branco do
presidente Juncker, sobre a definição com os chefes de Estado se
queremos mais ou menos Europa, quais as suas tarefas, etc. Penso
que o "brexit" e a discussão sobre o futuro da Europa serão etapas
decisivas nos anos mais próximos.
«99 por cento dos
orçamentos para resolver o problema do desemprego juvenil estão na
mãos dos estados, não estão na mão da Comissão. Se não estamos
unidos, não iremos muito longe», disse depois da publicação do
Livro Branco sobre o futuro da UE. As suas palavras são um urgente
toque a reunir?
O presidente Juncker dizia que temos muitos europeus em
part-time, só são europeus para receber, para ser solidários já não
são. Penso que é preciso definir, com clareza, quem quer ficar num
grupo de países que tem em comum um projeto partilhado. Quem não
quiser estar, não está.
Refugiados, "brexit" e o
terrorismo. Na sua opinião, há algum tema que classificaria de mais
urgente?
Esses temas que referiu são todos prioritários. Esta
Comissão Europeia teve de lidar com o maior número de crises desde
a Segunda Guerra Mundial, as chamadas policrises. Temos de
continuar a lutar porque acreditamos na Europa e acreditamos que
hoje em dia a solução que temos para os grandes problemas, como a
desigualdade criada pela globalização, as questões ambientais, só
poderá ser tomada ao nível da UE. A loucura do populismo, de querer
confinar as pessoas nas suas fronteiras, não vai resolver os
problemas dos europeus. Pelo contrário, só vai agravá-los. É
preciso passar e explicar essa mensagem. mesmo nos países
mais improváveis.
Nuno Dias da Silva
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