Entrevista

António Manuel Ribeiro, vocalista dos UHF, foi vítima de um mediático caso de stalking
«As escolas têm de ensinar cidadania»

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António Manuel Ribeiro, vocalista da banda UHF, foi vítima de um mediático caso de stalking, uma forma de violência que se caracteriza por perseguição e assédio persistentes. Em entrevista por ocasião da participação numa conferência organizada pela Comunidade Intermunicipal da Beira Baixa, o músico alerta para a necessidade de maior proteção às vítimas e lembra que tudo começa na educação.

Entre 2003 e 2012 foi alvo de stalking, uma perseguição obsessiva que afetou toda a sua vida. Podemos começar por fazer um enquadramento da situação que viveu?
A perseguidora começou por ser uma fã. Uma pessoa que aparece nos concertos dos UHF, que pede autógrafos, que vai a encontros de fãs. Vai ganhando proximidade, mas de forma pacífica. Estamos no verão de 2003 e, entretanto, começo a receber SMS meio apaixonados, muito isotéricos, de uma pessoa que assinava como Cristina/82. Mas eu não sabia quem era porque ligava de volta e ninguém atendia. Só mais tarde começo a perceber quem é essa pessoa, que como disse aparecia nos círculos dos UHF, mas em 2004 o cerco está montado.

É quando percebe que está a ser alvo de stalking.
Sim. E percebi que tudo aquilo que um stalker define como acaso é mentira. O stalker traça uma radiografia de todos planos de existência do seu alvo, dos mais corriqueiros aos mais pessoais. Comecei a ver a pessoa em todos os lugares onde ia, apesar de essa pessoa morar a 35Km de mim. O choque acontece, porém, quando recebo no apartado dos UHF uma embalagem. Ao abri-la, traz um livro completamente embebido em perfume e com as partes que eu deveria ler assinaladas, e aí percebi que aquilo não era normal. Seis meses depois, quando tive de fazer prova em tribunal, o livro ainda cheirava a perfume. A partir desse momento senti um cerco, não só na minha casa e na minha rua, mas também por onde andasse no país.

E nessa altura toma alguma decisão para pôr fim ao assédio?
Por várias vezes chamei a GNR, nomeadamente quando ela fazia escandaleira de noite na minha rua, onde praticamente não vive mais ninguém - e por essa razão ela sabia que estava à vontade. Ela fazia coisas como acionar o alarme do próprio carro ou atirar pedras aos estores da minha casa. Foram vários os dias em chamei a GNR, mas sem testemunhas não vale a pena ir a tribunal. Só quando consegui arranjar uma testemunha foi possível, finalmente, avançar com o processo.

Foi o primeiro processo de stalking julgado e condenado em Portugal. Sentiu que foi desvalorizado?
Na altura havia um vazio legislativo em relação ao stalking. Agora já existe uma lei, desde 2015, embora eu a considere uma lei endémica. Acho que o próprio magistrado do processo não percebia bem o que se passava, por exemplo, que no stalking mediático não existe relação nenhuma entre o perseguidor e a figura pública. A primeira medida aplicada foi o afastamento, mas na prática - tal como muitas outras leis e medidas - não teve eficácia, foi fácil de contornar e deixou a vítima completamente à mercê. Até ao último dia do último julgamento, a senhora fez o que quis. No final das sessões de tribunal seguia-me de carro até casa, como quem diz não ter medo. Penso que neste caso todos aprendemos: a magistratura, os políticos - que entretanto criaram uma lei - e a polícia que hoje intervém mais depressa.

Tendo em conta todo o mediatismo em torno dos casos violência, hoje estamos melhor?
Estamos. Hoje há uma nova visão sobre este e outros tipos de violência, mas eu não me calo no sentido de alertar os políticos para o facto de ser uma lei endémica, porque até ao fim do processo e eventual condenação a vítima está desprotegida e o agressor faz o que quer. Isso pode até levar ao desfecho mais gravoso, que é a morte. Por isso, eu assumo o livro que escrevi («És Meu, Disse Ela») como uma missão. Há uma frase que me dizem muitas vezes quando me encontram: obrigado pela coragem de expor o que viveu. Na verdade, o meu objetivo quando escrevi o livro era cortar o elo com este passado. Mas não esqueço que há coisas que nunca foram julgadas porque, na altura, não havia uma lei autónoma para o crime de stalking. A justiça acabou por recorrer a um somatório de crimes mais leves, como perseguição, devassa da vida privada ou injúria. Foi o cúmulo jurídico que determinou dois anos de pena suspensa.

Sente, por isso, o dever de ser uma voz contra o stalking?
É, para mim, um dever cívico. No outro dia li na imprensa que há cada vez mais vítimas de stalking. Eu contesto esses dados. Acho é que há cada vez mais divulgação e maior abertura para falar sobre essa situação. É fundamental endurecer a lei e criar mecanismos para aumentar a proteção à vítima, sobretudo enquanto os processos decorrem na justiça.

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O caminho legislativo é uma das formas de combater o crime. Como olha para a via da educação?
É também importante. Educar é explicar, sensibilizar e alertar. Num inquérito recente a 4 mil jovens com uma média de 15 anos, 1 em cada 4 admite a violência sexual no namoro como natural. Perante este tipo de mentalidade, temos de educar os jovens. Explicar que a violência não é um comportamento normal. Não significa não. Amor não é submissão, é a vontade de dois.

Tem participado em ações de sensibilização com estudantes?
Sim, tenho sido convidado para ir a escolas. Desde escolas secundárias a instituições do ensino superior, em Portugal e no estrangeiro. Fui convidado, por exemplo, para ir à Sorbonne, em Paris. Noto que é o sector feminino quem está mais interessado e faz as perguntas mais concretas.

As escolas olham para este tipo de casos com surpresa, com resignação ou vontade de mudar as coisas?
Com vontade de mudar as coisas, por isso são, desde logo, os professores que me convidam. Os jovens estão hoje muito desacompanhados durante o dia e há fenómenos de assédio que são potenciados pelas redes sociais. Os pais têm pouco tempo para acompanhar os filhos, portanto, as escolas também têm de ensinar cidadania.

Hoje sente que tem a sua vida de volta?
Tenho a minha vida de volta, mas sou uma pessoa diferente. Sofri de stress pós-traumático. Às vezes olho para aquele primeiro Big Brother, no ano 2000, e parece-me que houve uma caixa de pandora que se abriu com os reality shows. As pessoas acham que têm direito a tudo. Mas a sua liberdade acaba onde começa a do outro.

Entrando no universo dos UHF, um dos maiores nomes do rock português. Assinalaram 40 anos de carreira em 2018. Consideram-se uma banda que atravessa gerações?
Sem dúvida. A forma como somos recebidos nos concertos faz valer a pena continuar, mesmo 40 anos depois. A música tem o papel de levar um assunto até às pessoas, tocar em algumas feridas, mas também é entretenimento. Todos merecemos momentos de diversão.

O convite para tocar em Semanas Académicas é um importante indicador da intemporalidade das vossas canções?
Acho que sim. E é algo que sempre me surpreendeu até começar a entender. Num disco nosso de há 15 anos («La Pop End Rock»), temos uma canção que fala dos "Velhos do Restelo", mas eu chamo-lhes de "Velho Pastel de Belém". Eram os músicos mais velhos da minha cidade, Almada, que nos desconsideravam. Diziam que não era possível ser músico profissional em Portugal. Mas eu queria ser músico, tinha esse objetivo perfeitamente definido. Conseguimos atingi-lo porque nos tornámos importantes para a geração daquele tempo. Agora, o que eu nunca pensei é que a nossa música passasse de geração em geração. Pensei várias vezes que isto ia acabar tudo naturalmente, que passava de moda. Mas depois descobri que nunca estivemos muito na moda. Estávamos sempre um pouco na margem. Quem adere a modas acaba mais facilmente no dia seguinte. Os UHF sempre foram a ligação entre as canções e o público.

O álbum mais recente de originais dos UHF foi lançado em 2013. Enquanto não sai o próximo álbum, já deram a conhecer o single «Hey! Hey! ('bora lá)». É um grito para seguir em frente?
Era a expressão que usávamos quando em 1978 criámos a banda. Eram só dificuldades. Não tínhamos dinheiro para guitarras ou bateria, íamos de transporte público para os concertos... Perante todas essas dificuldades, dizíamos "'bora lá". Não vale a pena lamentar-nos, é preciso trabalhar e esforçarmo-nos por conseguir o que queremos. As contrariedades não têm de ser impeditivas. Temos de começar a subir a montanha que queremos conquistar, até podemos parar a meio do caminho para recuperar do esforço, mas depois é continuar a subir se queremos chegar ao topo.

CARA DA NOTÍCIA

Uma voz contra o stalking

António Manuel Ribeiro, nascido em Almada em 1954, é músico e poeta, especialmente conhecido como vocalista e fundador da banda de rock UHF. Compositor da maioria dos temas editados, quer a solo quer com a banda, abraçou também os livros e as canções com a sua poesia.

Mais recentemente é autor do livro «És Meu, Disse Ela» que descreve toda a história do pesadelo que o músico viveu entre 2003 e 2012, período em que foi alvo de stalking, um dos primeiros casos conhecidos em Portugal e o primeiro a ser julgado. Cristina/82, uma mulher de quem nada sabia, começou a persegui-lo e a atormentá-lo, num cerco infernal. Atacou-o com milhares de mensagens, chamadas, esperas, perseguições, delírios inimagináveis.

António Manuel Ribeiro diz que voltou agora a ser livre, escapando a um caso que poderia ter acabado em violência grave.

Com a banda UHF assinalou no ano passado 40 anos de carreira e prepara-se para lançar em breve um novo álbum.

Tiago Carvalho
Ensino Magazine
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
 
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