Bocas do Galinheiro
Agustina e Oliveira
Morreu Agustina
Bessa-Luís, a tão extraordinária como enigmática escritora, que um
acidente vascular celebrar em 2007 afastou da vida pública e que no
passado dia 3 de Junho a Parca veio buscar. Para trás deixou uma
vida de dezenas de livros, o último dos quais Ronda da Noite,
publicado em 2006. Nascida a 15 e Outubro de 1922, em Vila Meã,
Amarante, uma amarantina, portanto, como gostava de se apresentar,
cedo descobriu a sua vocação para a escrita, uma escrita forjada no
meio rural onde cresceu e das referências familiares que moldaram a
sua personalidade, fria, por vezes cínica, mas profundamente
conhecedora das pessoas e das engrenagens sociais. Ora, terá sido
esta faceta da autora que chamou a atenção de Manoel de Oliveira
que adaptou várias obras da romancista ao cinema.
A primeira colaboração aconteceu com "Francisca", de 1981, uma
adaptação do romance Fanny Owen, publicado em 1979, baseado em
factos reais, no Porto do século XIX, sobre o trágico triângulo
amoroso, José Augusto e seu primo Camilo Castelo Branco e Fanny
Owen, filha de um militar inglês, com Teresa Meneses, Diogo Dória e
Mário Barroso. Um êxito comercial na altura e um dos preferidos da
autora, a que se seguiu "Vale Abraão", de 1993. Foi o cineasta que
pediu à escritora uma Madame Bovary portuguesa, já a pensar na sua
adaptação ao grande écran. É assim que nasce Ema, mulher sensual,
casada com Carlos, que não ama, conhecida por "Bovarinha", tem
vários amantes, que também não ama, pronuncio do fim trágico que as
belíssimas e míticas paisagens do Douro acentuam. Um filme/livro,
que é também uma crítica à sociedade rural, com Leonor Silveira,
uma habitué de Oliveira, e Luís Miguel Cintra.
Se até agora as coisas entre Manoel de Oliveira e Agustina
Bessa-Luís corriam bem, as adaptações eram do agrado da escritora,
as coisas azedaram uma pouco com "O Convento", de 1995. O argumento
de Oliveira foi feito a partir de um romance em que Agustina
trabalhava na altura, Pedra de Toque, que ela trocou por As Terras
do Risco, escrito em simultâneo com a evolução das filmagens, sendo
que "O Convento" é também um título dado pelo realizador ao filme,
que se desenvolve à volta da tese de que Shakespeare, seria um
judeu sefardita espanhol com ligações a Portugal por interposto
antepassado, na sequência da desavença entre ambos, com a escritora
a lamentar que o cineasta não a tenha ouvido para o argumento,
achando mesmo que Oliveira não lê os livros dela. Mas tudo volta à
normalidade com "Party", de 1996, o guião é escrito por Agustina.
Um enredo à volta de dois casais, um mais velho, Irene e Michel,
Irene Papas e Michel Piccoli e o outro, Leonor e Rogério, Leonor
Silveira e Rogério Samora, uma farsa, tratada com ironia pela
escritora, diálogos inesquecíveis, numa recriação do mito do D.
Juan (Piccoli), muito ao jeito de Agustina. Implacável.
Em "Inquietude", de 1998, o realizador volta a Agustina mas em
trio, o argumento de Oliveira é feito a partir de Os Imortais, de
Helder Prista Monteiro, Suzy, de António Patrício e A Mãe de um
Rio, um conto de Agustina, em flashback, a história de Fisalina,
uma camponesa que descobre que tem as pontas dos dedos em ouro,
Leonor Baldaque, que durante mil anos é a mãe de um rio que
corre.
"O Princípio da Incerteza", de 2002, filmado a partir de Jóia de
Família, o primeiro romance de uma trilogia intitulada O Princípio
da Incerteza, inspirado no incêndio duma boîte em Amarante. Mais um
confronto violento entre homens e mulheres, Camila (Leonor
Baldaque), António Clara (Ivo Canelas), Vanessa (Leonor Silveira) e
José Luciano, o Touro Azul (Ricardo Trepa), negócios de alterne,
Camila entregue pelo pai para pagamento de dívidas de jogo, a
"virgindade" no casamento e a força destas mulheres. Com "Espelho
Mágico" (2005), retoma a trilogia adaptando A Alma dos Ricos,
retoma alguns personagens do outro filme, como o Touro Azul, saído
da prisão, mas dá novos papéis a Leonor Baldaque e Leonor Silveira,
num filme que é uma farsa mística sobre uma pretendida aparição da
Virgem Maria. Um final estranho para a mais profícua colaboração
entre escrita e cinema em Portugal.
Como disse um dia Manoel de Oliveira: "Agustina gosta de não
gostar dos meus filmes. Mas eu gosto que ela não goste."
Até à próxima e bons filmes!
Luís Dinis da Rosa
hojeviviumfilme.blogspot.com