Entrevista

Carlos Zorrinho, eurodeputado e professor catedrático
Esta é a hora da União Europeia fazer a sua prova de vida
CZ_nov_17_PE_1.jpgCarlos Zorrinho, eurodeputado, professor catedrático na área da gestão na Universidade de Évora, diz que este é o momento da União Europeia (UE) dar uma prova de vida. Em tempos de pandemia, considera que as instituições de ensino deram uma resposta positiva, mas lembra que o ensino presencial não pode ser substituído pelo ensino a distância.
Nesta entrevista, transmitida em em direto, em versão televisiva, no Ensino Magazine, Carlos Zorrinho fala também no sonho de ver criado um Portal Europeu do Cidadão.
O mundo está a viver um momento improvável. O novo coronavirus tem tido um grande impacto na vida das pessoas e das empresas. Como é que a União Europeia respondeu e está a responder aos efeitos da pandemia de Covid-19?
É consensual que a resposta tem sido forte. Tem sido uma resposta anormalmente colaborativa e rápida, se tivermos em conta que a União Europeia é composta por 27 estados democráticos, centenas de regiões e com processos de decisão, uns mais burocráticos - e temos que os melhorar -, e outros complexos. Numa primeira fase, a União Europeia foi um pouco egoísta. Houve alguns países que quiseram resolver sozinhos o problema, mas rapidamente perceberam que assim não iriam resolver nada e que precisavam de cooperar. A partir daí têm sido desenvolvidos instrumentos e decisões importantes, como a flexibilização do Tratado Orçamental e do uso dos fundos comunitários, os programas especiais para a saúde ou o fundo de recuperação.
Esta é uma prova de vida para a União Europeia?
Isto veio demonstrar que a União Europeia faz falta e essa era a grande questão que me preocupava. Disse-o, logo no início da pandemia, que esta era uma prova de vida para a União Europeia. Se os cidadãos europeus, no final desta pandemia percebessem que a União Europeia não tinha trazido valor acrescentado, era legítimo questionarem o porquê de lá estarem.    Mas a UE tem demonstrado que é útil, que faz falta. Está longe de ser perfeita e por isso trabalhamos todos os dias para melhorar as coisas, mas a resposta tem sido forte e solidária.
CZ_nov_17_PE_8.jpgNo debate sobre o pacote de medidas de recuperação da União Europeia, referiu que a proposta apresentada pela Presidente da Comissão Europeia "consubstancia uma evolução disruptiva na tipologia das respostas da União face a crises sistémicas. Disse ainda que é uma proposta forte e solidária. Falamos de um Fundo de Recuperação de 750 mil milhões de euros. Como é que esse fundo chegará aos países e como será distribuído?
Quando eu referi que era um salto disruptivo, disse-o porque nunca, até hoje, houve um modelo de financiamento como o que foi adotado na UE. Os países europeus vão endividar-se de forma conjunta. É uma dívida mutualizada, em que há uma responsabilidade comum. Cada país vai agora fazer os seus planos de recuperação. Parte destas verbas reforçaram os programas transversais que já existiam, como os de coesão, política agrícola comum ou de ciência, por exemplo. Mas uma parte significativa fará parte dos planos de cada país. No caso de Portugal são 15 mil milhões de euros em subvenções e 12 mil milhões em empréstimos de longa maturidade.
O pacote ainda não está fechado, mas o fundamental é que neste momento o dinheiro chegue depressa às empresas que dele precisam. É importante que para as empresas com necessidade imediata possa haver um modelo de elegibilidade antecipada. Ou seja, que não estando assinado o programa, as empresas possam concretizar as suas candidaturas, de forma a que se consigam financiar com melhores condições.
Significa que ainda há algumas etapas a cumprir para que este programa seja implementado?
Há três passos para que isso suceda: que o programa seja assinado depois de aprovado no Parlamento Europeu e na Comissão Europeia; que os países entreguem, em outubro, os seus planos nacionais de recuperação; e que, finalmente, no dia 1 de janeiro, o programa entre em vigor.
Carlos Zorrinho é professor catedrático na área da gestão. Já é possível quantificar a dimensão que a crise económica relacionada com a Covid-19 poderá atingir?
Há uma grande incerteza do que será a segunda vaga. Se nós soubéssemos, que controlada a situação na Europa, poderíamos passar para uma outra etapa, passariam-se a fazer mais investimentos e apostas. O receio é que pode haver um retrocesso. E isso cria incerteza e um grande problema. O documento da Comissão Europeia refere que o impacto previsto pelo Fundo de Nova Geração na economia que é de 1,85 triliões de euros, que é equivalente ao que se espera que seja o impacto
Esta pandemia pode ser uma oportunidade para a União Europeia sair reforçada, ou pelo contrário pode acentuar divisões entre os países que a compõem?negativo na economia. Mas tudo também depende da evolução da ciência e da medicina.
Como atrás referi, desde o início considerei que esta pandemia é uma prova de vida para a União Europeia. A UE não pode sair desta pandemia igual ao que era antes da Covid-19. Continua a haver duas hipóteses: a UE pode não mostrar capacidade de resposta junto dos cidadãos e pode deixar de começar a fazer sentido junto das pessoas; Ou dá uma resposta forte e consistente. Estou otimista que isso aconteça. A Europa reforçada está a ganhar à Europa enfraquecida, sobretudo porque as pessoas ficaram menos indiferentes à União Europeia. Eu também estive em confinamento, em Portugal. No supermercado e na rua as pessoas perguntavam-me coisas concretas sobre a UE. Algo que não acontecia antes. A quebra da indiferença e sentirmos que a União Europeia somos nós, tona-nos mais exigentes e faz com que a UE seja mais viva e tenha mais capacidade de resposta.
Fruto da pandemia, de um momento para o outro, uma parte da sociedade passou a funcionar em teletrabalho. Como é que foi essa sua experiência enquanto eurodeputado?
Estive em Évora. Foi uma experiência interessante. As dificuldades iniciais de conexão foram ultrapassadas. Mas o teletrabalho e as ferramentas online - e eu sou dessa área no ensino - são instrumentais. As comunidades virtuais não podem substituir as comunidades reais. Um dos riscos que não devemos correr é formar as novas gerações, sejam de ensino superior ou de outros graus de ensino, para viverem em comunidades online. Nós devemos formá-las, isso sim, para utilizarem as ferramentas tecnológicas para criarem comunidades físicas, reais, mais fortes, mais iguais e justas, mais participativas. Somos pessoas e devemos ter uma vivência o mais presencial possível, assim que a pandemia nos permita.
CZ_nov_17_PE_4.jpgMas pandemia fez com que as instituições escolares se tivessem que adaptar ao ensino a distância. Isto pode abrir portas a um novo paradigma educativo?
Por um lado importa agradecer aos alunos, aos professores e às famílias que, em situações muito difíceis, fizeram uma adaptação rápida para salvaguardar, o que foi possível neste ano letivo. Por outro lado, verificámos que se manteve um ecossistema de ensino a distância aberto, o que deve ser sublinhado. Nestas coisas da internet existir uma plataforma única é muito perigoso. Foi importante que cada um tivesse usado o que estava mais a jeito. No entanto, verificou-se uma grande desigualdade nas condições de acesso junto de alunos, professores e famílias. O programa que foi agora lançado pelo Governo para dotar os alunos de meios e também para a formação de professores será importante para ultrapassar isso.
Mas, acima de tudo, devemos estar orgulhosos da resposta que demos. Agora temos de trabalhar para que no próximo ano letivo a resposta possa ser perfeita. E a resposta perfeita não é o online substituir o presencial, mas sim a escola funcionar presencialmente, se as condições sanitárias o permitirem, com um maior apoio das ferramentas tecnológicas para que as aulas sejam mais interessantes, mais próximas da realidade e onde os alunos se sintam mais motivados.
A questão da formação dos professores na área das novas tecnologias assume uma dimensão importante?
Essa vertente, mesmo quando estive no Plano Tecnológico, em Portugal, sempre me preocupou. Uma questão que considero fundamental passa por adaptar as capacidades e competências dos professores para que façam o seu papel essencial, transmitido o conhecimento com os suportes que têm disponíveis. Nós temos excelentes professores, mas a sua média etária é elevada. Embora a idade não signifique ser jovem ou menos jovem de espírito, o apelo que faço - e sei que as suas condições de trabalho e de remuneração estão longe daquelas que seriam os seus sonhos -, é que façam um esforço especial de adaptação para que possamos sair desta crise ainda melhor preparados.
Além de eurodeputado, está ligado ao ensino superior, pois é professor catedrático da Universidade de Évora. Como é que analisa o modo como as instituições de ensino superior portuguesas responderam ao problema da Covid-19?
O ensino superior está bem preparado e a resposta foi mediata. Logo que possível é importante que as aulas presenciais regressem. Não podemos cair na tentação, sobretudo nas pós-graduações, de fazer apenas o ensino a distância, pois aprende-se muito mais olhos nos olhos.
A pandemia abriu mais as instituições de ensino superior à sociedade. Criaram-se redes de testes à Covid-19, desenvolveram-se protótipos de ventiladores, cederam-se instalações…
Isto demonstrou que os politécnicos e universidades têm consciência que têm que estar ligados à sociedade. Isto também é resultado de uma decisão das instituições europeias e votada no parlamento Europeu, que permitiu que os fundos alocados aos países membros pudessem ser reafetados. Isto fez com que equipas de investigação que estavam a estudar uma determinada área (que depois deverá ser retomada) passassem o seu foco para dar resposta ao momento atual. Esta situação deve-nos servir como inspiração para o futuro. Vem aí o programa de Recuperação de 750 mil milhões de euros, mas virá mais dinheiro com o Plano Plurianual de Investimento até 2027. É importante que não se criem programas burocráticos, fechados, onde em 2021 se define o que se vai fazer em 2026. O mundo muda muito depressa. Tem que haver flexibilidade. Neste momento é preciso focar tudo em rede para vencer a pandemia, mas depois iremos fazer outra coisa.
No debate no parlamento europeu sobre Uma Europa num mundo digital, referiu, numa intervenção por escrito, que "o Parlamento Europeu tem tido um papel fundamental na definição do enquadramento legislativo para a transição digital e para a transição energética, e que "os valores partilhados no mundo analógico devem ser transpostos para o mundo digital, aproveitando a transição para corrigir distorções". A pandemia pode ter acelerado processos?
A pandemia tem acelerado os processos. A União Europeia partiu atrasada na transição digital face a outros países como a China, Japão, Coreia do Sul ou Estados Unidos da América. Não sei é se essas nações estão a aplicar esses recursos digitais com as garantias de proteção, de privacidade, de não manipulação de informação, de controlo de informação, que se exige à União Europeia. O importante é que possamos, na Europa, fazer essa transição com esses valores da sociedade analógica. Os dados são o petróleo do século XXI, devem estar disponíveis de forma anónima, mas tudo deve ser feito com o foco nas pessoas, no seus interesses e no serviço que se lhes pode prestar.
CZ_nov_17_PE_9.jpgNesta matéria o professor falou em três linhas estruturantes: Usar o património comum de valores e princípios partilhados como a base de uma prática fundada na ética e na prioridade às soluções para os cidadãos, tornar o acesso à Internet de alta qualidade universal e desenvolver redes de qualificação generalizada das populações para lidar com o novo contexto tecnológico, social, económico e político. Isso está a acontecer?
Espero que aconteça e que se avance. Fui relator do programa Wi-Fi for You, o qual viu aprovado um financiamento de 120 milhões de euros para o arranque (protótipo). Esse programa foi aprovado por unanimidade no Parlamento Europeu, mas a Comissão Europeia não tem sido tão rápida a implementá-lo. De qualquer maneira, todos os municípios de Portugal e da Europa ficarão com o acesso a antenas de internet gratuita de alta definição. Falta fechar essa malha, onde também deve ser chamado o investimento privado. E depois, e é um sonho que tenho, mas em política também é preciso sonhar, deve-se criar um Portal Europeu do Cidadão com serviços públicos. Esse portal precisará das componentes de acesso (o que ficará garantido) e tecnológica, e depois que os cidadãos estejam preparados para o usar. Mas uma coisa puxa a outra.
E como é que se encontra Portugal nesta área?
Durante muito tempo fomos líderes europeus, e se calhar ainda somos, no ranking europeu da qualidade de serviços públicos disponibilizados online. Não podemos afrouxar um minuto que seja. Mas temos que formar mais as pessoas que não conseguem aceder a esses serviços. Além disso, temos de fazer com que as pessoas tenham acesso à internet e ao computador. Nesta fase da pandemia as consultas médicas online mostraram a sua importância. É evidente que, para que isto aconteça, as pessoas têm que saber aceder ou ter alguém que as ajude. No século passado liderei um projeto piloto "As cidades Digitais e as Regiões Digitais" que se espalhou pela Europa. No Alentejo Digital tínhamos, em cada Junta de Freguesia, um mediador humano que ajudava as pessoas a aceder aos computadores e a usar esses recursos. Isto pode ser feito nos centros de saúde ou noutros serviços. Temos aí grandes desafios.
É também presidente da Assembleia Parlamentar Paritária África-Caraíbas-Pacífico/União Europeia. Nesta relação referiu que a União Europeia precisa, para se posicionar com sucesso no quadro geopolítico em transformação, de continuar a desempenhar o seu papel de potência multilateral que promove parcerias entre iguais.    Isso está a ser conseguido?
Estamos a trabalhar muito nesse sentido. A União Europeia é a potência global que mais coopera. Nesta pandemia, quando muitos outros países fugiram - e é inqualificável o facto dos Estados Unidos da América não apoiarem a Organização Mundial de Saúde -, a União Europeia já reafetou 36 mil milhões de euros para apoios imediatos aos países com mais dificuldades.
Numa outra perspetiva, estamos a trabalhar no fecho da parceria estratégica com África e no acordo África, Ilhas e Pacífico. Isto é uma prova da grande importância    do papel multilateral da União Europeia, que faz acordos com os Estados Unidos - agora menos -, com Canadá, América do Sul, Caraíbas, Pacífico ou África, que se disponibiliza para partilhar, não apenas bens e serviços, mas também valores e ideias. Este sentir multilateral é o segredo para termos mantido a paz durante mais de 60 anos e para termos um mundo menos desigual.
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CARA DA NOTÍCIA
Entre a Europa e a Universidade

Carlos Zorrinho, 59 anos, é casado e tem dois filhos. Doutorado em Gestão da Informação, é professor Catedrático do Departamento de Gestão da Universidade de Évora. Exerceu várias funções académicas e governativas. Foi secretário de Estado de António Guterres e de José Sócrates e deputado à Assembleia da República na VII, VIII, IX, XI e XII Legislaturas.
É atualmente Deputado no Parlamento Europeu, Presidente da Delegação Portuguesa do PS e membro das comissões de Indústria, Investigação e Energia e do Ambiente, Saúde e Segurança Alimentar. Na União Europeia, Carlos Zorrinho, além de eurodeputado, é presidente da Assembleia Parlamentar Paritária África-Caraíbas-Pacífico / União Europeia.
João Carrega
Diretor do Ensino Magazine
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
 
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