Carlos Zorrinho, eurodeputado e professor catedrático
Esta é a hora da União Europeia fazer a sua prova de vida
Carlos Zorrinho, eurodeputado, professor
catedrático na área da gestão na Universidade de Évora, diz que
este é o momento da União Europeia (UE) dar uma prova de vida. Em
tempos de pandemia, considera que as instituições de ensino deram
uma resposta positiva, mas lembra que o ensino presencial não pode
ser substituído pelo ensino a distância.
Nesta entrevista, transmitida em
em direto, em versão televisiva, no Ensino Magazine, Carlos
Zorrinho fala também no sonho de ver criado um Portal Europeu do
Cidadão.
O mundo está a viver um
momento improvável. O novo coronavirus tem tido um grande impacto
na vida das pessoas e das empresas. Como é que a União Europeia
respondeu e está a responder aos efeitos da pandemia de
Covid-19?
É consensual que a resposta tem
sido forte. Tem sido uma resposta anormalmente colaborativa e
rápida, se tivermos em conta que a União Europeia é composta por 27
estados democráticos, centenas de regiões e com processos de
decisão, uns mais burocráticos - e temos que os melhorar -, e
outros complexos. Numa primeira fase, a União Europeia foi um pouco
egoísta. Houve alguns países que quiseram resolver sozinhos o
problema, mas rapidamente perceberam que assim não iriam resolver
nada e que precisavam de cooperar. A partir daí têm sido
desenvolvidos instrumentos e decisões importantes, como a
flexibilização do Tratado Orçamental e do uso dos fundos
comunitários, os programas especiais para a saúde ou o fundo de
recuperação.
Esta é uma prova de vida
para a União Europeia?
Isto veio demonstrar que a União
Europeia faz falta e essa era a grande questão que me preocupava.
Disse-o, logo no início da pandemia, que esta era uma prova de vida
para a União Europeia. Se os cidadãos europeus, no final desta
pandemia percebessem que a União Europeia não tinha trazido valor
acrescentado, era legítimo questionarem o porquê de lá estarem.
Mas a UE tem demonstrado que é útil, que faz falta. Está longe de
ser perfeita e por isso trabalhamos todos os dias para melhorar as
coisas, mas a resposta tem sido forte e solidária.
No
debate sobre o pacote de medidas de recuperação da
União Europeia, referiu que a proposta apresentada pela Presidente
da Comissão Europeia "consubstancia uma evolução disruptiva na
tipologia das respostas da União face a crises
sistémicas. Disse ainda que é uma proposta forte e solidária.
Falamos de um Fundo de Recuperação de 750 mil
milhões de euros. Como é que esse fundo chegará aos países e como
será distribuído?
Quando eu referi que era um salto
disruptivo, disse-o porque nunca, até hoje, houve um modelo de
financiamento como o que foi adotado na UE. Os países europeus vão
endividar-se de forma conjunta. É uma dívida mutualizada, em que há
uma responsabilidade comum. Cada país vai agora fazer os seus
planos de recuperação. Parte destas verbas reforçaram os programas
transversais que já existiam, como os de coesão, política agrícola
comum ou de ciência, por exemplo. Mas uma parte significativa fará
parte dos planos de cada país. No caso de Portugal são 15 mil
milhões de euros em subvenções e 12 mil milhões em empréstimos de
longa maturidade.
O pacote ainda não está fechado,
mas o fundamental é que neste momento o dinheiro chegue depressa às
empresas que dele precisam. É importante que para as empresas com
necessidade imediata possa haver um modelo de elegibilidade
antecipada. Ou seja, que não estando assinado o programa, as
empresas possam concretizar as suas candidaturas, de forma a que se
consigam financiar com melhores condições.
Significa que ainda há
algumas etapas a cumprir para que este programa seja
implementado?
Há três passos para que isso
suceda: que o programa seja assinado depois de aprovado no
Parlamento Europeu e na Comissão Europeia; que os países entreguem,
em outubro, os seus planos nacionais de recuperação; e que,
finalmente, no dia 1 de janeiro, o programa entre em vigor.
Carlos Zorrinho é
professor catedrático na área da gestão. Já é possível quantificar
a dimensão que a crise económica relacionada com a Covid-19 poderá
atingir?
Há uma grande incerteza do que
será a segunda vaga. Se nós soubéssemos, que controlada a situação
na Europa, poderíamos passar para uma outra etapa, passariam-se a
fazer mais investimentos e apostas. O receio é que pode haver um
retrocesso. E isso cria incerteza e um grande problema. O documento
da Comissão Europeia refere que o impacto previsto pelo Fundo de
Nova Geração na economia que é de 1,85 triliões de euros, que é
equivalente ao que se espera que seja o impacto
Esta pandemia pode ser
uma oportunidade para a União Europeia sair reforçada, ou pelo
contrário pode acentuar divisões entre os países que a
compõem?negativo na economia. Mas tudo também depende da
evolução da ciência e da medicina.
Como atrás referi, desde o início
considerei que esta pandemia é uma prova de vida para a União
Europeia. A UE não pode sair desta pandemia igual ao que era antes
da Covid-19. Continua a haver duas hipóteses: a UE pode não mostrar
capacidade de resposta junto dos cidadãos e pode deixar de começar
a fazer sentido junto das pessoas; Ou dá uma resposta forte e
consistente. Estou otimista que isso aconteça. A Europa reforçada
está a ganhar à Europa enfraquecida, sobretudo porque as pessoas
ficaram menos indiferentes à União Europeia. Eu também estive em
confinamento, em Portugal. No supermercado e na rua as pessoas
perguntavam-me coisas concretas sobre a UE. Algo que não acontecia
antes. A quebra da indiferença e sentirmos que a União Europeia
somos nós, tona-nos mais exigentes e faz com que a UE seja mais
viva e tenha mais capacidade de resposta.
Fruto da pandemia, de um
momento para o outro, uma parte da sociedade passou a funcionar em
teletrabalho. Como é que foi essa sua experiência enquanto
eurodeputado?
Estive em Évora. Foi uma
experiência interessante. As dificuldades iniciais de conexão foram
ultrapassadas. Mas o teletrabalho e as ferramentas online - e eu
sou dessa área no ensino - são instrumentais. As comunidades
virtuais não podem substituir as comunidades reais. Um dos riscos
que não devemos correr é formar as novas gerações, sejam de ensino
superior ou de outros graus de ensino, para viverem em comunidades
online. Nós devemos formá-las, isso sim, para utilizarem as
ferramentas tecnológicas para criarem comunidades físicas, reais,
mais fortes, mais iguais e justas, mais participativas. Somos
pessoas e devemos ter uma vivência o mais presencial possível,
assim que a pandemia nos permita.
Mas pandemia
fez com que as instituições escolares se tivessem que adaptar ao
ensino a distância. Isto pode abrir portas a um novo paradigma
educativo?
Por um lado importa agradecer aos
alunos, aos professores e às famílias que, em situações muito
difíceis, fizeram uma adaptação rápida para salvaguardar, o que foi
possível neste ano letivo. Por outro lado, verificámos que se
manteve um ecossistema de ensino a distância aberto, o que deve ser
sublinhado. Nestas coisas da internet existir uma plataforma única
é muito perigoso. Foi importante que cada um tivesse usado o que
estava mais a jeito. No entanto, verificou-se uma grande
desigualdade nas condições de acesso junto de alunos, professores e
famílias. O programa que foi agora lançado pelo Governo para dotar
os alunos de meios e também para a formação de professores será
importante para ultrapassar isso.
Mas, acima de tudo, devemos estar
orgulhosos da resposta que demos. Agora temos de trabalhar para que
no próximo ano letivo a resposta possa ser perfeita. E a resposta
perfeita não é o online substituir o presencial, mas sim a escola
funcionar presencialmente, se as condições sanitárias o permitirem,
com um maior apoio das ferramentas tecnológicas para que as aulas
sejam mais interessantes, mais próximas da realidade e onde os
alunos se sintam mais motivados.
A questão da formação dos
professores na área das novas tecnologias assume uma dimensão
importante?
Essa vertente, mesmo quando
estive no Plano Tecnológico, em Portugal, sempre me preocupou. Uma
questão que considero fundamental passa por adaptar as capacidades
e competências dos professores para que façam o seu papel
essencial, transmitido o conhecimento com os suportes que têm
disponíveis. Nós temos excelentes professores, mas a sua média
etária é elevada. Embora a idade não signifique ser jovem ou menos
jovem de espírito, o apelo que faço - e sei que as suas condições
de trabalho e de remuneração estão longe daquelas que seriam os
seus sonhos -, é que façam um esforço especial de adaptação para
que possamos sair desta crise ainda melhor preparados.
Além de eurodeputado,
está ligado ao ensino superior, pois é professor catedrático da
Universidade de Évora. Como é que analisa o modo como as
instituições de ensino superior portuguesas responderam ao problema
da Covid-19?
O ensino superior está bem
preparado e a resposta foi mediata. Logo que possível é importante
que as aulas presenciais regressem. Não podemos cair na tentação,
sobretudo nas pós-graduações, de fazer apenas o ensino a distância,
pois aprende-se muito mais olhos nos olhos.
A pandemia abriu mais as
instituições de ensino superior à sociedade. Criaram-se redes de
testes à Covid-19, desenvolveram-se protótipos de ventiladores,
cederam-se instalações…
Isto demonstrou que os
politécnicos e universidades têm consciência que têm que estar
ligados à sociedade. Isto também é resultado de uma decisão das
instituições europeias e votada no parlamento Europeu, que permitiu
que os fundos alocados aos países membros pudessem ser reafetados.
Isto fez com que equipas de investigação que estavam a estudar uma
determinada área (que depois deverá ser retomada) passassem o seu
foco para dar resposta ao momento atual. Esta situação deve-nos
servir como inspiração para o futuro. Vem aí o programa de
Recuperação de 750 mil milhões de euros, mas virá mais dinheiro com
o Plano Plurianual de Investimento até 2027. É importante que não
se criem programas burocráticos, fechados, onde em 2021 se define o
que se vai fazer em 2026. O mundo muda muito depressa. Tem que
haver flexibilidade. Neste momento é preciso focar tudo em rede
para vencer a pandemia, mas depois iremos fazer outra coisa.
No debate no parlamento
europeu sobre Uma Europa num mundo digital, referiu, numa
intervenção por escrito, que "o Parlamento Europeu tem tido um
papel fundamental na definição do enquadramento legislativo para a
transição digital e para a transição energética, e que "os valores
partilhados no mundo analógico devem ser transpostos para o mundo
digital, aproveitando a transição para corrigir distorções". A
pandemia pode ter acelerado processos?
A pandemia tem acelerado os
processos. A União Europeia partiu atrasada na transição digital
face a outros países como a China, Japão, Coreia do Sul ou Estados
Unidos da América. Não sei é se essas nações estão a aplicar esses
recursos digitais com as garantias de proteção, de privacidade, de
não manipulação de informação, de controlo de informação, que se
exige à União Europeia. O importante é que possamos, na Europa,
fazer essa transição com esses valores da sociedade analógica. Os
dados são o petróleo do século XXI, devem estar disponíveis de
forma anónima, mas tudo deve ser feito com o foco nas pessoas, no
seus interesses e no serviço que se lhes pode prestar.
Nesta matéria o
professor falou em três linhas estruturantes: Usar o património
comum de valores e princípios partilhados como a base de uma
prática fundada na ética e na prioridade às soluções para os
cidadãos, tornar o acesso à Internet de alta qualidade universal e
desenvolver redes de qualificação generalizada das populações para
lidar com o novo contexto tecnológico, social, económico e
político. Isso está a acontecer?
Espero que aconteça e que se
avance. Fui relator do programa Wi-Fi for You, o qual viu aprovado
um financiamento de 120 milhões de euros para o arranque
(protótipo). Esse programa foi aprovado por unanimidade no
Parlamento Europeu, mas a Comissão Europeia não tem sido tão rápida
a implementá-lo. De qualquer maneira, todos os municípios de
Portugal e da Europa ficarão com o acesso a antenas de internet
gratuita de alta definição. Falta fechar essa malha, onde também
deve ser chamado o investimento privado. E depois, e é um sonho que
tenho, mas em política também é preciso sonhar, deve-se criar um
Portal Europeu do Cidadão com serviços públicos. Esse portal
precisará das componentes de acesso (o que ficará garantido) e
tecnológica, e depois que os cidadãos estejam preparados para o
usar. Mas uma coisa puxa a outra.
E como é que se encontra
Portugal nesta área?
Durante muito tempo fomos líderes
europeus, e se calhar ainda somos, no ranking europeu da qualidade
de serviços públicos disponibilizados online. Não podemos afrouxar
um minuto que seja. Mas temos que formar mais as pessoas que não
conseguem aceder a esses serviços. Além disso, temos de fazer com
que as pessoas tenham acesso à internet e ao computador. Nesta fase
da pandemia as consultas médicas online mostraram a sua
importância. É evidente que, para que isto aconteça, as pessoas têm
que saber aceder ou ter alguém que as ajude. No século passado
liderei um projeto piloto "As cidades Digitais e as Regiões
Digitais" que se espalhou pela Europa. No Alentejo Digital
tínhamos, em cada Junta de Freguesia, um mediador humano que
ajudava as pessoas a aceder aos computadores e a usar esses
recursos. Isto pode ser feito nos centros de saúde ou noutros
serviços. Temos aí grandes desafios.
É também presidente da
Assembleia Parlamentar Paritária África-Caraíbas-Pacífico/União
Europeia. Nesta relação referiu que a União Europeia precisa, para
se posicionar com sucesso no quadro geopolítico em transformação,
de continuar a desempenhar o seu papel de potência multilateral que
promove parcerias entre iguais. Isso está a ser
conseguido?
Estamos a trabalhar muito nesse
sentido. A União Europeia é a potência global que mais coopera.
Nesta pandemia, quando muitos outros países fugiram - e é
inqualificável o facto dos Estados Unidos da América não apoiarem a
Organização Mundial de Saúde -, a União Europeia já reafetou 36 mil
milhões de euros para apoios imediatos aos países com mais
dificuldades.
Numa outra perspetiva, estamos a
trabalhar no fecho da parceria estratégica com África e no acordo
África, Ilhas e Pacífico. Isto é uma prova da grande importância
do papel multilateral da União Europeia, que faz acordos com os
Estados Unidos - agora menos -, com Canadá, América do Sul,
Caraíbas, Pacífico ou África, que se disponibiliza para partilhar,
não apenas bens e serviços, mas também valores e ideias. Este
sentir multilateral é o segredo para termos mantido a paz durante
mais de 60 anos e para termos um mundo menos desigual.
CARA DA
NOTÍCIA
Entre a Europa e a
Universidade
Carlos Zorrinho, 59 anos, é casado e tem dois filhos.
Doutorado em Gestão da Informação, é professor Catedrático do
Departamento de Gestão da Universidade de Évora. Exerceu várias
funções académicas e governativas. Foi secretário de Estado de
António Guterres e de José Sócrates e deputado à Assembleia da
República na VII, VIII, IX, XI e XII Legislaturas.
É atualmente Deputado no Parlamento Europeu, Presidente da
Delegação Portuguesa do PS e membro das comissões de Indústria,
Investigação e Energia e do Ambiente, Saúde e Segurança Alimentar.
Na União Europeia, Carlos Zorrinho, além de eurodeputado, é
presidente da Assembleia Parlamentar Paritária
África-Caraíbas-Pacífico / União Europeia.
João Carrega
Diretor do Ensino Magazine