Opinião

Arquivo Morto
O Culto do Insólito

Rolando de Bacqlitte descendia, segundo a lenda familiar, de um espadachim gascão, companheiro de aventuras militares de Cyrano de Bergerac. Nada mais incerto, mas a existência de um exemplar de "O Outro Mundo", assinado, com dedicatória, pelo menestrel de nariz comprido, servia de comprovativo, um pouco espúrio, diga-se, à alegada amizade e antiga linhagem. De qualquer modo, o jovem rebento de cepa minhota e gaulesa, cedo evidenciou uma verve desbragada e um gosto imoderado pelo insólito. Nascido na derradeira década do século XIX, teve na infância o seu primeiro contacto com as realidades não-cartesianas, através do convívio com uma trupe de zíngaros, que acampava anualmente na propriedade da família. Não se sabe ao certo a origem de tal benesse, mas rumores não confirmados, levam a crer que o patriarca do clã, avô de Rolando, tinha em grande estima o seu homólogo húngaro, de apelido Karposy.

A verdade é que, no pequeno e impressionável Rolando, a marca do convívio perdurou, de tal modo que, chegado à adolescência, sem acne nem édipo, começou a frequentar os meios espiritualistas que faziam furor na então bem pensante sociedade parisiense. Travou amizade com o doutor Encausse e outros próceres do meio ocultista, mas depressa se desenganou, preferindo a companhia do belo sexo e a rambóia etílica.

Consta que viajou extensamente pelo Levante, em busca do fantasma de Gérard de Nerval, seu herói literário e mentor. É certo que não passeou nenhuma lagosta pela trela, mas não desdenhou apresentar-se como domador de pulgas amestradas num "cabaret" do Cairo. Nas letras, um dos seus maiores feitos, nunca reconhecido, foi o de traduzir "Assim Falava Zaratustra" para esperanto. Também concebeu um dispositivo eléctrico-acústico, utilizado com liberalidade e grande êxito, em sessões de mesa de pé-de-galo. Escapou intacto à carnificina das trincheiras, graças ao domínio da bilocação. Nas suas "Memórias Aquém Tumba", relata diversos episódios horripilantes da guerra mundial. E numa das páginas mais pungentes, descreve como conheceu, na terra-de-ninguém, numa noite de trovoada, um soldado lusitano, o qual, veio a saber depois, era um seu primo distante, por parte da mãe. As horas sombrias passadas na lama, debaixo de fogo da metralha, e das ameaças constantes dos gazes teutónicos, fortaleceram nele o desejo de aprofundar os mistérios da condição humana. Findo o conflito, restabelecido da anemia e das nevroses da batalha, viajou para o Hindustão, aconselhado por um tal Larry, um americano que se dizia amigo do escritor inglês Somerset Maugham. Mais tarde descobriu que não passava de um embusteiro, mas a sugestão deu os seus frutos.

Nas referidas "Memórias", conta-nos como foi acolhido por um faquir afegão, de quem recolheu numerosas técnicas do insólito. Tal encontro, se há acasos, havia de determinar o resto da sua existência, lançando-o numa carreira internacional de funâmbulo prático. Muitos desses episódios, segundo o especialista Hervé de Moulinsart, "não passam de pastiches disfarçados" de velhas histórias, mas "nem por isso isentas de um certo encanto naif", pontuados aqui e ali, "por um delicioso sentido de bouffonerie". Mais tarde, Sèrge Groguevich, um dos mais entusiastas divulgadores do " psicomentalismo", misto de hipnose e calistenia visual, havia de reivindicar "as altas qualidades profiláticas" retiradas da leitura de "A Arte da Corda Bamba", opúsculo sem data, policopiado, atribuído a Bacqlitte. Nada permite afirmar a sua autoria, embora um análise semântica empreendida pelo alfarrabista alsaciano Klaus von Bière, aponte no sentido da "consistência paradigmática", e numa "segura implementação biónica", ou seja, aquilo funcionava, malgré tout.

Contudo, a maior contribuição do malogrado Rolando, cifra-se na revitalização da indução de baixa voltagem, enquanto instrumento terapêutico. A sua proficiência, dizem os seus contemporâneos, em numerosos testemunhos, era mais do que notável. Uma simples aplicação catapultava o receptor para um estado de estupor e, no mesmo movimento, devolvia-lhe uma acuidade impressionante. Segundo esses mesmos relatos, André Breton terá sido um dos experimentadores, embora o efeito, por razões desconhecidas ou não divulgadas, se tenha extraviado, dando origem a "uma fixação eclesiástica", daí o subsequente cognome de papa do surrealismo. Outro contemplado foi Antonin Artaud, com resultados ainda mais decepcionantes, sem esquecer o trágico destino do montanhista René Daumal, talvez devido à sua anterior dependência química. Por estas e por outras, o referido método nunca foi publicitado ou impresso. Pesquisas recentes deixam supor a sua possível origem egípcia, ou mesmo caldaica. Nunca o saberemos, hélas. O seu testamento nunca foi encontrado, nem deixou continuadores. A perda deste notável pesquisador, em tão infausto e revoltante naufrágio, deixou-nos a todos mais pobres. R.I.P.

( Notícia inserta na "Revista de Estudos Marítimos", Brest, nº 9, vol. 99, ano de 1949).

 
 
 
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