João Ricardo Pedro, vencedor do Prémio Leya
A obra que a crise não parou
João Ricardo Pedro venceu com o romance de estreia,
O Teu Rosto Será o Último, o Prémio Leya, de 2011. O livro
conquistou o Júri do Prémio, 100 mil euros e leitores. O prémio
Leya que tem o maior valor monetário dos prémios literários
nacionais, foi instituído pelo grupo editorial Leya, no ano de 2008
e é agora, pela primeira vez, atribuído a um escritor de
nacionalidade portuguesa.
Engenheiro electrotécnico, João
Ricardo Pedro ficou desempregado em 2009. Em casa, começou a
escrever O Teu Rosto Será o Último. Em boa hora o fez. Foram quase
dois anos a criar uma história que tem como protagonista Duarte, um
jovem e virtuoso pianista e a história da família dele. Mas, o
sucesso foi imediato.
Em entrevista ao Ensino Magazine o
escritor diz como foi importante o 25 de Abril na sua vida e
adianta que está a escrever um novo romance. De caminho lembra que
na escola nunca leu nenhuma das obras obrigatórias.
É o
primeiro português a vencer o Prémio Leya e vence-o com um primeiro
romance. Enquanto escrevia O Teu Rosto Será o Último, alguma vez
pensou num cenário destes para a sua vida?
Não. A minha vontade era mesmo
conseguir acabar o livro. Só pensei concorrer ao Prémio acerca de
dois meses do limite da entrega. Depois, quando estava a escrever
já com a intenção de concorrer e no momento em que fui entregar os
originais à Editora, fiquei com a sensação de que poderia ganhar.
Mas, não consegui, na altura, imaginar que tudo isto iria ter este
desenlace e passar-se desta forma.
O Teu Rosto
Será o Último fala de três gerações de uma família: Augusto Mendes,
o médico da província; o filho António, que cumpre duas comissões
na guerra colonial; e o Duarte, o pianista virtuoso, que vive nos
tempos da esperança do pós 25 de Abril. Como surge a ideia de
escrever uma história, que é também a História, dos últimos anos,
do século XX. em Portugal?
Quando comecei a escrever o livro
não tinha nenhuma história na cabeça. Foi ao escrever que essas
histórias começaram a surgir. Também foram as histórias da minha
infância e da minha adolescência. O livro passa-se geograficamente
em zonas que me são familiares, numa época que me é familiar.
Acabaram por ser as histórias que instintivamente acabei por
escrever. Nunca houve essa intenção, acabou por acontecer um bocado
por acaso. Reconheço que é um livro que também tem haver com a
minha história.
O Teu rosto
Será o Último começa assim: «Uma coisa parecia certa: no dia vinte
e cinco de abril de mil novecentos e setenta e quatro, faltaria
ainda um bom bocado para as sete da manhã, Celestino apertou a
cartucheira à cintura, enfiou a Browning a tiracolo, verificou o
tabaco e as mortalhas, esqueceu-se do relógio pendurado num prego
que também segurava um calendário e saiu porta fora. » O romance
tem início com o 25 de Abril. Esta data tem um papel importante na
sua história?
Tem. As várias histórias que estão
no livro foram surgindo ao longo do tempo. Mas, quando surgiu essa
do Celestino e inventei esse parágrafo, automaticamente, decidi que
o livro ia começar assim. Pelo simbolismo da data e porque foi um
momento decisivo na história de Portugal. Como são relatadas ao
longo do livro coisas que se passam depois, e coisas que se passam
antes, o dia 25 de Abril acaba por ser aquele momento charneira,
que foi decisivo para a história de Portugal e foi decisivo para
muita gente. Apesar de não o ter vivido - porque era muito pequeno
e não me lembro - sempre foi um dia que vivi com afectividade.
Acaba, também, por ser uma homenagem ao 25 de Abril.
Duarte é o
personagem principal do romance. O que é que o autor pensa do
Duarte?
É uma
pergunta muito difícil. Por um lado é estranho ser difícil, uma vez
que é uma personagem que eu inventei e que viveu comigo durante
quase dois anos. O Duarte poderia ter sido um amigo meu, da minha
infância, da minha adolescência. Poderia ter sido um vizinho, um
primo. O Duarte é aquele rapaz que já nasce num país que tem tudo
para dar certo e que lhe pode proporcionar todas as coisas para ele
poder ser feliz. Mas, o que é certo, é que ele tem, um dom, e o
que, aparentemente, poderia ser uma coisa boa é algo contra a qual
ele se revolta. Acaba por não ser um modo de ele ser feliz.
O Teu Rosto
Será o Último é um título enigmático. Porque este título?
É enigmático inclusivamente para
mim. Enquanto fui escrevendo o livro tive alguns títulos
provisórios. Depois, houve uma noite, ou uma madrugada, em que
acordei com essa frase na cabeça e nesse momento decidi que iria
ser o título do Livro. E gostei, porque enquanto o livro remete
para uma série de coisas que se passam no passado, o título, por
causa do verbo, parece estar a remeter para o futuro. Essa tensão
entre o título e o livro agradou-me. Mas, não consegui encontrar
uma explicação, nem consigo relacionar muito bem o título com o
livro.
Disse
existirem elementos autobiográficos na obra. Pode dar exemplos?
Há coisas que me são muito
familiares, os meus avós também eram da província, da Beira Baixa.
Tive uma infância em que passei as férias do Verão e os Natais na
casa dos meus avós. Depois, toda a minha infância e adolescência
foram passados nos subúrbios de Lisboa, em Queluz. Há essas
coincidências geográficas, porque eram mundos que me eram
familiares. A história do pai do Duarte, da guerra, também me é
familiar. O meu pai também andou na guerra colonial, e os meus
tios. Sempre convivi de perto com pessoas que tinham passado por
essa experiência. Os factos não são autobiográficos, mas todo o
ambiente. Todas as coisas que se passam no livro, não se passaram
comigo, mas, poderiam ter passado.
A sua
formação académica é a engenharia electrotécnica. Como é que foram
os seus tempos de Escola?
Não foram muito felizes nem
infelizes. Ia à Escola por obrigação. Durante o liceu sempre fui um
aluno que fazia o mínimo para passar. Mesmo quando tomei a decisão
de ir para engenharia electrotécnica foi mais ou menos como uma
espécie de mal menor. Era bom aluno a matemática, mas, aos 17 ou 18
anos não fazia a mínima ideia do que queria fazer. Ainda não tinha
maturidade suficiente para decidir a esse nível. Acabei por tirar
engenharia com bastante esforço. Depois acabei por trabalhar nessa
área, sempre a pensar que se calhar não era bem isso que queria
fazer na minha vida. E depois surgiu isto.
Nesse
percurso onde que entra a ideia de escrever um livro?
Os livros obrigatórios do
secundário, acho que não li nenhum. Só comecei a ler aos 17 anos.
Quando começo a ler, começo a ler muito, e a interessar-me muito
por literatura. A literatura acaba por adquirir um papel cada vez
mais importante na minha vida. Aos 20 e tal anos começo a pensar
que, se calhar, também era capaz de escrever um livro. Essa ideia
começa a crescer dentro de mim. Sempre a adiar o momento, por falta
de tempo ou por falta de coragem. Era uma ideia que estava cá
dentro, mas eu nunca tinha decidido pôr mãos à obra.
Desses
escritores que começou a ler aos 17 anos, quais o marcaram
mais?
O primeiro livro que comprei foi a
Metamorfose, do Kafka. Depois li Hemingway, um escritor que me
marcou muito. Curiosamente, só passados alguns anos é que li os
escritores que devia ter lido no liceu, como o Eça de Queiróz. Li
passado dez ou quinze anos da altura que devia ter lido. Mas, foi
um escritor que me marcou e que gosto, imenso. Há dois escritores
portugueses que me influenciaram muito também, quando os descobri:
o José Cardoso Pires e o António Lobo Antunes. Foram os escritores
contemporâneos portugueses que me puseram a pensar que era possível
escrever histórias sobre os sítios que conhecia e sobre as coisas
que aconteciam agora. Foram escritores que me deram muita vontade
de escrever.
O Teu Rosto
Será o Último está estruturado em capítulos muito diferentes, que
podem ser lidos, quase, como contos. Foi sempre essa a ideia para o
livro?
Surgiu por acaso. Foi uma questão
de método. Ia abrindo ficheiros do computador novos, para escrever
episódios separados. Quando todos os episódios foram crescendo e
fui tendo cada vez mais capítulos pensei que em vez de fazer um
romance linear, em que se conte tudo acerca da vida daquelas
pessoas, separar aquelas vidas em capítulos, em que o que os
ligasse fossem coisas mais invisíveis do que óbvias. Fiquei com a
ideia que cada capítulo tinha que funcionar, quase, como um conto.
Mas, depois tinha de estabelecer ligações entre eles, para poder
chamar a isto um romance. Essa decisão não aconteceu desde o
início, talvez tenha sido a meio do livro. Porque me agradava haver
muitas zonas temporais que não eram faladas, nem escritas. Há muita
coisa que se passa na vida das personagens que não são relatadas. É
pôr só os momentos decisivos daquelas pessoas.
O Teu Rosto
Será o Último colocou alta a fasquia, o segundo romance tem de
estar a altura deste sucesso?
(Risos) Não sei. Acho que já foi
tão bom ter escrito este livro. Ter tido a sorte de ter esta
visibilidade e repercussão, haver muita gente que lê e que gosta.
Mas, quando comecei a escrever o segundo livro, senti-me na mesma
um principiante. Foi como se a experiência adquirida ao escrever
este, não tivesse adiantado nada. A sensação que tenho quando me
sento todos os dias a escrever, à secretária, é que estou a
escrever pela primeira vez. E, apesar de já ter passado dois anos a
escrever, não adiantou nada. Ainda é um mistério muito grande o que
vai ser, espero não desiludir (Risos).
É um
Romance? Podemos esperá-lo para breve?
É um romance. Mas ainda é muito
cedo para falar disso. Talvez daqui a dois anos.
Começou a
escrever o seu livro quando ficou desempregado. Como lê a actual
situação económica e política do país?
Vejo com a preocupação da maioria
das pessoas. Aquela sensação que tomamos a dura consciência que
vivemos num país efectivamente pobre. Mas a maior angústia nem é
aquilo porque estamos a passar, é nenhum de nós parecer ver como é
que isto vai acabar. Não haver ninguém a conseguir dar respostas e
a apontar para uma luz ao fundo do túnel. Isso é o que angustia
mais - a mim e acho que à maior parte das pessoas. Ninguém
conseguir imaginar como é que vai ser a nossa vida daqui a dez
anos.
Do que tem
sido dito e escrito sobre O Teu Rosto Será o Último o que é para si
e mais verdade sobre o livro?
Estive nos fins-de-semana na Feira
do Livro, a dar autógrafos e muitas pessoas vêm ter comigo
emocionadas. Quando tenho oportunidade de falar com elas, alguns
minutos, é engraçado ver como as pessoas dão destaque a coisas
diferentes do livro. Há pessoas que se identificam com as partes da
guerra, outras com as coisas da música, pessoas que se identificam
com a história da doença da mãe do Duarte. O livro ecoa dentro de
cada leitor de forma diferente. Isso para mim tem sido emocionante.
Tem sido muito bom falar, principalmente, com os leitores e
perceber o que foi a experiência de leitura deste livro. Quanto ao
que sai nos jornais e sai na crítica, toda a gente têm sido muito
simpática comigo. Tento criar alguma distância relativamente a
isso, para não ter nenhuma crise de excesso de ego. Tem sido bom o
que se tem dito, mas, se calhar, para o próximo livro vão dizer
coisas más. Quem faz os livros têm de manter alguma distância
relativamente a isso, para não ter momentos de grande euforia, nem
momentos de grande depressão. Acima de tudo tem sido importante
esse contacto com os leitores e perceber que o livro toca as
pessoas de maneiras diferentes.
No seu
romance os personagens sofrem. Como foi escrever sobre eles?
Às vezes, sofria com eles, também.
Quando estava a escrever, nunca sabia muito bem onde é que a
história de cada um deles ia ter. As coisas também aconteciam de
uma forma inconsciente. Era surpreendido com muitos dos momentos de
maior sofrimento. O que é estranho, porque era eu, como criador,
que lhes estava a impor o sofrimento, que acabava também por se
virar contra mim. É uma relação tão intensa, quando se está a
escrever parece que aquelas pessoas ganham vida mesmo. Fazem parte
da nossa vida, durante o tempo em que estamos a escrever. Acho que,
também sofri todas aquelas coisas por elas.
Durante
quase dois anos esteve a escrever O Teu Rosto Será o Último. Foi
fácil desligar-se do livro?
A partir do momento que decidi
concorrer ao Prémio acabei por ter aquele dia limite. Sabia que era
aquele dia preciso em que ia acabar de escrever o livro. Quando
acabei de escrever e o entreguei, senti por um lado um enorme
alívio, de me ver livre daquilo; mas, por outro lado, senti um
vazio enorme. Sabia que tudo aquilo que tinha vivido, ao escrever,
acabava naquele preciso momento. Mas depois consegui-me libertar,
até mais facilmente do que eu pensava. Agora, a não ser quando
estou a dar entrevistas, ou quando falo com os leitores sobre o
livro, já raramente me recordo. Foi uma espécie de luto que correu
bem.
Eugénia Sousa
eugenia@rvj.pt