Cristina Drios
A escrita é uma forma de ver o mundo
Cristina Drios exerce advocacia na área da propriedade intelectual,
e é a autora de "Os Olhos de Tirésias", romance de estreia, editado
em Março, pela Teorema. "Os Olhos de Tirésias" é a história de um
soldado português durante a I Guerra Mundial e foi finalista do
Prémio LeYa 2012. Para a escritora (que responde ao Ensino Magazine
por email) o actual período que Portugal atravessa pode ser um bom
cenário para um romance, pois os períodos conturbados são ricos em
material para um romancista trabalhar. Sobre a literatura e a arte
em geral, afirma "são aquilo que nos salva, de nós mesmos, enquanto
indivíduos e colectivo social porque decantam e sublimam a
realidade".
"Os Olhos
de Tirésias" decorre durante a I Guerra Mundial, mas não é um
romance histórico. Como surge a ideia de escrever este romance?
De facto, não pretendi escrever um
romance histórico. Usei a História, no caso, sobretudo a
participação portuguesa na I Guerra Mundial, uma vez que os
períodos conturbados contêm grande potencial de exploração
ficcional, apenas como cenário para os encontros e desencontros das
várias personagens, colocando-as quase sempre perante situações
limite e forçando-as a reagir, a superarem-se. A ideia nasceu
inicialmente em redor da personagem principal, Mateus Mateus, que,
a determinado momento, "exigiu" que eu escrevesse a sua história. À
volta dele, surgiram então as outras personagens e, mais tarde, a
narradora do romance, a sua neta.
Mateus
Mateus, o soldado português em campanha na Flandres, na I Guerra
Mundial, é o protagonista deste romance. Quem é Mateus Mateus?
Mateus Mateus é um homem estranho,
imperscrutável, imune desde criança a qualquer emoção, que vive
fechado no seu "círculo negro" e assolado por premonições. Decide
então oferecer-se como voluntário para integrar o Corpo
Expedicionário Português que está de partida para a Flandres na
esperança de se tornar um homem como os outros. E isso, de facto,
acontecerá quando, feito prisioneiro, conhece Georgette Six, a
enfermeira francesa e se apaixona por ela.
O amor
consegue triunfar em qualquer lugar, mesmo no pior cenário de
guerra?
O amor transforma-nos, ilumina-nos
e irradia. As mais belas obras de arte de todos os tempos foram
quase sempre resultado disso. Para conquistar o amado. Para chorar
a perda do amado. Para tentar reconquistar o amado. No caso de
Mateus Mateus, o amor trouxe-lhe à boca o sabor caótico dos
sentimentos e de, certa forma, triunfou.
O que é que
correu mal com a participação portuguesa na I Guerra Mundial?
Quase tudo. Portugal não estava
preparado para participar num conflito mundial dessa escala mas a
jovem República Portuguesa queria afirmar-se no xadrez político
internacional da época. Portugal, porém, não tinha meios. Os navios
que transportaram as tropas de Lisboa a Brest foram cedidos pelos
ingleses, sob o comando dos quais sempre nos ativemos e, a dado
momento, deixaram de nos ser cedidos para rendição. Isso causou
problemas gravíssimos que impediam que as tropas voltassem a
Portugal nos períodos de licença. Os próprios equipamentos, o
armamento Lee-Enfield, o fardamento e a alimentação - o odiado
corned beef - eram fornecidos pelos ingleses. Mais tarde, quando
Sidónio Pais, de pendor germanófilo, substituiu Afonso Costa no
poder, os oficiais que vinham de licença deixaram aos poucos de
voltar à Flandres. Sidónio Pais terá ordenado ao General Tamagnini
de Abreu que mudasse de campo e este terá desobedecido. De qualquer
forma, o assassinato de Sidónio Pais em Dezembro de 1918, pouco
depois da guerra terminar, gerou novo volte-face... Especulação ou
não, o exército português foi abandonado à sua sorte nos últimos
meses da guerra. No dia 9 de Abril de 1918, os portugueses que
praticamente não deixavam as trincheiras há 18 meses, exaustos, mal
nutridos e mal agasalhados para enfrentar a lama e o frio do norte,
não podiam senão tentar salvar a pele perante a investida de
divisões alemães fortes e frescas. Os alemães começaram por iniciar
a Operação Georgette no sector mais debilitado - o português -
nesse 9 de Abril dando início à Batalha de La Lys e alargaram
depois a ofensiva à restante frente, no que na historiografia
inglesa se conhece como Quarta Batalha de Ypres.
O seu
romance tem elementos autobiográficos?
Alguns autores afirmam que um
romance é sempre autobiográfico. E é-o, uma vez que é impossível
escapar ao facto de que tudo num romance é fruto de quem o escreveu
e passou pelo crivo, pela experiência e pela emoção do próprio
autor. Nesse sentido, há alguns elementos autobiográficos no
romance, camuflados nas diversas personagens. Porém, esses
elementos não são sequer mais preponderantes, como facilmente
poderá parecer, na personagem da neta-narradora.
A escrita
nacional tem conseguido escapar a este tempo de crise?
Não posso falar em nome da "escrita
nacional"... Sei que são poucos os escritores portugueses que no
seu país conseguem viver unicamente da escrita, com ou sem crise. A
crise, porém, veio apertar ainda mais o crivo das editoras e isso
torna muito difícil a um estreante publicar a sua primeira obra. A
crise aguça os dois reversos da medalha: só consegue publicar quem
é muito vendável ou mediático ou quem é, de facto, muito bom.
Porém, gostava de deixar uma nota de esperança: a escrita - e as
restantes formas de arte - são aquilo que nos salva, de nós mesmos,
enquanto indivíduos e colectivo social porque decantam e sublimam a
realidade.
O período
que o país atravessa poderia dar um bom cenário para um romance.
Porquê?
Sem dúvida. Todos os períodos
conturbados - crises, revoluções, guerras - são ricos em material
para um romancista trabalhar. Embora não pense que um escritor
tenha necessariamente de se engajar politicamente, acho que, como
todos os artistas, tem um papel importante uma vez que lhe cabe
captar e transmitir o espírito do tempo.
É uma
leitora voraz que não vai a lado nenhum sem levar um livro. Algum
livro a marcou ao ponto de querer ser escritora, ou essa decisão é
"obra de muitos livros"?
Não se decide ser escritor: ou se é
ou não se é. Embora, naturalmente, a arte de escrever possa ser
aperfeiçoada com muito trabalho, na génese tem de estar um talento
inato. O que se decide é querer publicar ou não... De qualquer
forma, houve um livro que me marcou ao ponto de eu pensar que não
me importaria de morrer logo a seguir se conseguisse um dia
escrever algo daquele nível: o "Estrangeiro" de Albert Camus.
Talvez a razão tenha sido a de o ter lido muito precocemente, aos
doze ou treze anos!
Homens e
mulheres escrevem de forma diferente? Faz sentido falar de escrita
feminina e escrita masculina?
Todos escrevemos de forma diferente
uma vez que na nossa escrita está tudo o que somos, as experiências
que vivemos, as leituras que fizemos, a música que ouvimos, os
sítios que conhecemos. Todos somos únicos e isso reflectir-se-á
necessariamente em qualquer forma de criação artística. Na minha
opinião, não faz sentido falar de escrita feminina e de escrita
masculina. Eventualmente, homens e mulheres interessar-se-ão por
temas diferentes e tenderão a escrever sobre eles. De resto, apenas
faz sentido falar em boa e má literatura.
A citação
que introduz Os Olhos de Tirésias é de Alfred Döblin e diz: «Mas a
coisa principal no homem são os olhos e os pés. É preciso ser capaz
de ver mundo e de ir ter com ele.». Essa poderia ser a sua máxima
de vida, uma vez que tem "na bagagem" muitas viagens e conhece
cerca de quarenta países?
Sim, poderia! Talvez invertesse a
máxima: primeiro há que ir ter com o mundo e depois é preciso ser
capaz de o ver... Foi essa densidade que tentei dar às personagens
de "Os Olhos de Tirésias" pois, de certa forma, é a maneira de
termos o nosso destino em mãos embora, por vezes, os nossos pés e
olhos nos levem sem que percebamos bem para onde. A escrita é
também uma outra forma de andar e de ver o mundo sem sair do lugar.
Não há, aliás, qualquer viagem se não houver viagem interior.