‘Pedagogia (a)crítica no Superior’ (XXIII)
A aula é nossa
«a aula é
nossa.»
(Diário, Sebastião da Gama, 1958:26)
«O ano lectivo aproximava-se do seu termo; faltavam apenas
duas semanas, ou seja, quatro aulas. E metade da turma (de 30
alunos em avaliação contínua) ainda não tinha feito a apresentação
oral da sua 'sugestão' (um dos 5 trabalhos previstos no processo
avaliativo da uc). Os estudantes interiorizam depressa o padrão
cultural luso de 'tudo deixar para fim', constatava, com pesar, o
Prof.S., antecipando o cenário dessas derradeiras aulas: mais uma
vez, iria assistir a uma maratona de 'sugestões', sem tempo para as
digerirem e, muito menos, para as comentarem.
Esta era a única tarefa em que o Prof. S. não definia datas para a
sua realização; os outros trabalhos eram espaçados ao longo do
semestre (no tempo fugaz que um 'semestre bolonhês' permite),
tentando desta forma contrariar essa atávica tendência estudantil
de deixar acumular tudo no final do semestre, seguindo-se depois a
'choradeira' habitual do sobrecarrego de trabalhos. 'Lágrimas' que
(ainda) frutificam em certos 'corações' docentes de pedagogia
soft e maternal. A consequência, também ela rotineira,
traduz-se nos apelos das coordenações de curso, no período de
preparação do novo ano escolar, para que «os colegas aliviem a
carga dos alunos (…) procurando soluções na interdisciplinaridade e
na fusão de trabalhos com outras uc's».
Ao não ser prescritivo nas datas para a apresentação de
'sugestões', o Prof. S. procurava incentivar a autonomia e a
capacidade de planeamento de cada um dos seus estudantes. A longa
prática docente mostrava-lhe que, também por este meio, conseguia
perceber as suas dificuldades e conhecer melhor as suas
potencialidades. Por regra, os estudantes mais velhos, os com maior
experiência de vida e os mais empenhados na uc, acabavam por ser os
primeiros a cumprir a tarefa; em sentido contrário, o grupo dos
mais fracos e dos desinteressados, aqueles que cumprem só porque
«tem de ser» e que vão adiando até ao limite do possível; ir a
exame é que não, «tudo menos isso».
No arranque do semestre, o Prof. S. alojava na moodle um
texto que esclarecia o conteúdo expectável das 'sugestões': os
estudantes, a pares, deviam recomendar (em 10-15 minutos, no início
da aula) um museu etnográfico, livro, artigo, estudo (divulgado na
imprensa ou em revista científico-profissional), filme, programa
televisivo, canção, evento, etc. - por eles escolhido, relativo às
temáticas inscritas no programa da uc. Após a partilha em aula, e
tendo em conta o feedback recebido, deveriam
disponibilizar na moodle essa informação, em suporte
multimédia. Esse material seria alvo de eventuais comentários
individuais (2-3 parágrafos), redigidos de modo pessoal e
fundamentado, visando a complementaridade, o aprofundamento ou uma
outra perspectiva sobre o tópico/tema em causa. Eram igualmente
enunciados os objectivos da actividade: (i) Estar atento aos
recursos museológicos nacionais e à actualidade sociocultural,
mantendo-se informado das novidades editoriais e das acções mais
significativas levadas a cabo pelas comunidades científicas e/ou
profissionais; (ii) Desenvolver capacidades de autonomia na
pesquisa; (iii) Socializar a informação recolhida (como herdeiros
de um high context people), praticando a comunicação oral;
(iv) Treinar o uso da moodle; (v) Marcar também a agenda
da aula, seguindo o velho princípio de Sebastião da Gama (expresso
na epígrafe deste artigo). O rationale desta actividade
procurava ir ao encontro dos mais variados 'interesses' dos
estudantes. Havia, em mente, outros dois objectivos colaterais como
o incentivo à leitura diária de jornais e a consulta regular na
biblioteca da escola.
O Prof. S. fazia o mesmo trabalho que solicitava aos seus
estudantes: desde a primeira aula que lhes ia apresentando
'sugestões' de diferentes tipologias. Já os produtos partilhados
pelos alunos variavam muito em qualidade e actualidade (alguns bem
'requentados', como o clássico Papalagui). A grande
maioria refugiava-se nos filmes, e o Prof.S., estoicamente, revia
ad nauseam alguns daqueles trailers (Memórias de uma
Gueixa, Gran Torino, Crash, Babel…) Mas também era brindado
com algumas 'pérolas', por si desconhecidas, como o filme de Mira
Nair (2006) O Bom Nome que, mais tarde, lhe viria a servir
para ilustrar o conceito de ethnoscapes (Appadurai), o
Tratado das Alcunhas Alentejanas de Francisco M. Ramos e
Carlos A. da Silva (2002), o Museu da Farinha, inaugurado em 2014
em São Domingos, ou até os trabalhos do antropólogo holandês Anton
Blok (1935-). Dádivas da 'cultura imaterial escolar'…
(Este texto está redigido segundo a "antiga" e
identitária ortografia)