Opinião

‘Pedagogia (a)crítica no Superior’ (XXIII)
A aula é nossa

FotoLSouta2015peq.jpg«a aula é nossa.»
(Diário, Sebastião da Gama, 1958:26)
«O ano lectivo aproximava-se do seu termo; faltavam apenas duas semanas, ou seja, quatro aulas. E metade da turma (de 30 alunos em avaliação contínua) ainda não tinha feito a apresentação oral da sua 'sugestão' (um dos 5 trabalhos previstos no processo avaliativo da uc). Os estudantes interiorizam depressa o padrão cultural luso de 'tudo deixar para fim', constatava, com pesar, o Prof.S., antecipando o cenário dessas derradeiras aulas: mais uma vez, iria assistir a uma maratona de 'sugestões', sem tempo para as digerirem e, muito menos, para as comentarem.
Esta era a única tarefa em que o Prof. S. não definia datas para a sua realização; os outros trabalhos eram espaçados ao longo do semestre (no tempo fugaz que um 'semestre bolonhês' permite), tentando desta forma contrariar essa atávica tendência estudantil de deixar acumular tudo no final do semestre, seguindo-se depois a 'choradeira' habitual do sobrecarrego de trabalhos. 'Lágrimas' que (ainda) frutificam em certos 'corações' docentes de pedagogia soft e maternal. A consequência, também ela rotineira, traduz-se nos apelos das coordenações de curso, no período de preparação do novo ano escolar, para que «os colegas aliviem a carga dos alunos (…) procurando soluções na interdisciplinaridade e na fusão de trabalhos com outras uc's».
Ao não ser prescritivo nas datas para a apresentação de 'sugestões', o Prof. S. procurava incentivar a autonomia e a capacidade de planeamento de cada um dos seus estudantes. A longa prática docente mostrava-lhe que, também por este meio, conseguia perceber as suas dificuldades e conhecer melhor as suas potencialidades. Por regra, os estudantes mais velhos, os com maior experiência de vida e os mais empenhados na uc, acabavam por ser os primeiros a cumprir a tarefa; em sentido contrário, o grupo dos mais fracos e dos desinteressados, aqueles que cumprem só porque «tem de ser» e que vão adiando até ao limite do possível; ir a exame é que não, «tudo menos isso».
No arranque do semestre, o Prof. S. alojava na moodle um texto que esclarecia o conteúdo expectável das 'sugestões': os estudantes, a pares, deviam recomendar (em 10-15 minutos, no início da aula) um museu etnográfico, livro, artigo, estudo (divulgado na imprensa ou em revista científico-profissional), filme, programa televisivo, canção, evento, etc. - por eles escolhido, relativo às temáticas inscritas no programa da uc. Após a partilha em aula, e tendo em conta o feedback recebido, deveriam disponibilizar na moodle essa informação, em suporte multimédia. Esse material seria alvo de eventuais comentários individuais (2-3 parágrafos), redigidos de modo pessoal e fundamentado, visando a complementaridade, o aprofundamento ou uma outra perspectiva sobre o tópico/tema em causa. Eram igualmente enunciados os objectivos da actividade: (i) Estar atento aos recursos museológicos nacionais e à actualidade sociocultural, mantendo-se informado das novidades editoriais e das acções mais significativas levadas a cabo pelas comunidades científicas e/ou profissionais; (ii) Desenvolver capacidades de autonomia na pesquisa; (iii) Socializar a informação recolhida (como herdeiros de um high context people), praticando a comunicação oral; (iv) Treinar o uso da moodle; (v) Marcar também a agenda da aula, seguindo o velho princípio de Sebastião da Gama (expresso na epígrafe deste artigo). O rationale desta actividade procurava ir ao encontro dos mais variados 'interesses' dos estudantes. Havia, em mente, outros dois objectivos colaterais como o incentivo à leitura diária de jornais e a consulta regular na biblioteca da escola.
O Prof. S. fazia o mesmo trabalho que solicitava aos seus estudantes: desde a primeira aula que lhes ia apresentando 'sugestões' de diferentes tipologias. Já os produtos partilhados pelos alunos variavam muito em qualidade e actualidade (alguns bem 'requentados', como o clássico Papalagui). A grande maioria refugiava-se nos filmes, e o Prof.S., estoicamente, revia ad nauseam alguns daqueles trailers (Memórias de uma Gueixa, Gran Torino, Crash, Babel…) Mas também era brindado com algumas 'pérolas', por si desconhecidas, como o filme de Mira Nair (2006) O Bom Nome que, mais tarde, lhe viria a servir para ilustrar o conceito de ethnoscapes (Appadurai), o Tratado das Alcunhas Alentejanas de Francisco M. Ramos e Carlos A. da Silva (2002), o Museu da Farinha, inaugurado em 2014 em São Domingos, ou até os trabalhos do antropólogo holandês Anton Blok (1935-). Dádivas da 'cultura imaterial escolar'…
(Este texto está redigido segundo a "antiga" e identitária ortografia)

 
 
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