Alexandra Bento, Bastonária da Ordem dos Nutricionistas
«As cantinas escolares devem oferecer refeições saudáveis e seguras»
Alexandra
Bento alerta que as orientações do Ministério da Educação no que
respeita ao funcionamento de cantinas e refeitórios escolares
«podem não estar a ser cumpridas nos estabelecimentos de ensino». A
Bastonária defende uma aposta na literacia alimentar e nutricional
dos portugueses.
No início de maio a
Direção-Geral de Saúde (DGS) e a indústria alimentar rubricaram
protocolos em prol de uma alimentação mais saudável. Que medida ou
medidas destacaria deste acordo? Este acordo peca por
tardio?
A Ordem dos Nutricionistas considera que este foi um importante
momento para a saúde dos portugueses, uma vez que a reformulação de
um conjunto de produtos alimentares irá melhorar o seu perfil
nutricional no que respeita aos teores de açúcar, de sal e de
ácidos gordos trans, o que determinará um consumo potencialmente
mais saudável. Porém, consideramos que as metas de reformulação
poderiam ter sido mais ambiciosas, já que para alguns produtos se
ficou aquém das reduções inicialmente previstas. De destacar ainda
a necessidade de uma maior representatividade do setor
agro-alimentar, tanto mais que existem produtos para os quais não
se atingiu consenso quanto às suas metas de reformulação, como é o
caso dos produtos de charcutaria e os queijos.
Por último, consideramos fundamental que seja assegurada a
supervisão de todo este processo de reformulação alimentar,
garantindo que as metas definidas são cumpridas.
Há poucos meses foi aberto
um concurso para a contratação de 40 nutricionistas para o Serviço
Nacional de Saúde (SNS), onde trabalham cerca de quatro centenas de
profissionais. Tem dito, repetidamente, que são ainda poucos os
profissionais, especialmente no setor público e sabendo quanto
custa uma consulta desta natureza no setor privado, pode afirmar-se
que ainda é um luxo recorrer a um nutricionista em
Portugal?
O nutricionista coloca os seus conhecimentos e competências ao
serviço da população, seja no setor público (no SNS, ao nível dos
cuidados de saúde primários e ao nível dos cuidados de saúde
hospitalares), seja no setor privado ou social.
O investimento que fazemos na nossa saúde nem sempre é valorizado,
sendo com frequência percecionado apenas como um custo. Sabemos que
o referido concurso pretende integrar 40 nutricionistas no SNS, no
caso concreto nos centros de saúde, número que continua a ser
insuficiente face às necessidades e perfil de saúde dos
portugueses. Recorrer a um nutricionista, para quem necessita,
deveria ser um direito e não só para quem tenha capacidade
económica de aceder a uma consulta de nutrição num serviço privado
de saúde. O acesso à saúde é um direito e, em Portugal, não está
garantido o direito ao acesso à consulta de nutrição nos serviços
públicos de saúde.
O SNS encontra-se na encruzilhada, ainda a braços com as
consequências dos cortes da troika e das cativações. Uma aposta
consistente e estratégica na prevenção da saúde dos portugueses
resultaria em poupanças no futuro em termos da procura dos serviços
públicos. É sabido que o dinheiro não estica, mas como sensibilizar
os governantes para esta prioridade em termos de política de
saúde?
Sabemos que um dos passos para obter ganhos em saúde é reduzir
custos de tratamento e internamento. Isto é conseguido através dum
investimento estratégico na prevenção de doença e promoção da
saúde. A sensibilização dos governantes passa por fundamentar a
necessidade deste investimento, uma vez que os maus hábitos
alimentares são a principal causa de muitas doenças crónicas cujos
tratamentos têm vindo a representar um encargo cada vez maior para
o SNS. Apenas 1% do Orçamento do Estado é dedicado à prevenção de
doenças, valor que é muito inferior a outros países europeus. Urge
uma aposta séria e efetiva na prevenção de doença, designadamente
ao nível dos cuidados de saúde primários, pois assistimos a um
investimento maioritariamente focado no tratamento e a um cenário
em que os portugueses estão a viver mais anos, mas sem saúde. A
ausência de saúde tem implicações económicas e sociais,
nomeadamente na diminuição da produtividade e aumento dos custos
com internamento. Assim, um investimento na prevenção aumentará os
anos de vida livre de doença que se traduzirá em maior qualidade de
vida da população e uma redução da sobrecarga do SNS.
Os
dados estatísticos indicam que uma má alimentação mata mais do que
o tabaco, o álcool ou o consumo de droga. A prevalência de doenças
crónicas associadas a desequilíbrios nutricionais tem merecido o
alerta de diversos especialistas. A frase "somos o que comemos" faz
cada vez mais sentido?
Atualmente os hábitos alimentares inadequados são o fator de risco
que mais contribui para os anos de vida saudável perdidos pela
população portuguesa. A alimentação adequada tem o potencial de
prevenir doenças e aumentar o número de anos vividos com qualidade,
assumindo, por isso, um papel de enorme importância. De acordo com
o mais recente estudo "Global Burden of Disease", a melhoria dos
hábitos alimentares poderia poupar em Portugal mais de 233 000 anos
de vida. A nível mundial a alimentação inadequada é responsável por
um número superior de mortes do que outros riscos como o fumo do
tabaco. Segundo o mesmo estudo, mais de metade de mortes
relacionadas com a alimentação e 2/3 dos anos de vida saudáveis
perdidos associados à alimentação resultam da excessiva ingestão de
sódio e da reduzida ingestão de cereais integrais e de frutas.
Contudo, mais prejudicial do que ultrapassar as recomendações dos
alimentos ou nutrientes cuja presença deve ser limitada na
alimentação, é não atingir as recomendações dos alimentos
protetores da nossa saúde, onde se incluem os cereais integrais, a
fruta e os hortícolas. "Somos o que comemos" porque o que comemos
determina a nossa saúde, mas também "comemos aquilo que somos",
pois a alimentação de cada um depende muito daquilo que somos: da
literacia, do nível de educação, do gradiente social, do ambiente
que nos envolve, da cultura e da capacidade de nos relacionarmos
com os outros e com o mundo em que vivemos.
Como classificaria o índice de literacia alimentar e
nutricional dos portugueses?
Metade da população portuguesa terá níveis reduzidos de literacia
em saúde e 40% dos consumidores não compreende a informação
nutricional básica. Este valor aumenta quando a população
apresentava menor nível de escolaridade. De facto, é a população
com menores níveis de escolaridade que menos compreende as
informações constantes nos rótulos alimentares. Estes resultados
nacionais são preocupantes, revelando a necessidade de aposta na
literacia alimentar e nutricional dos portugueses. Sendo a
literacia alimentar a base que capacita a população para realizar
escolhas alimentares saudáveis, isto é, a sustentação que permite
garantir a ingestão alimentar adequada às necessidades
nutricionais, a aposta no aumento da literacia alimentar da
população tem o potencial de melhorar as escolhas
alimentares.
A alimentação nas escolas e nas universidades é foco de
críticas recorrentes. Qual o feedback que tem da qualidade da
oferta alimentar que se pratica nas cantinas
escolares?
As cantinas escolares devem oferecer refeições saudáveis e seguras
que ajudem a satisfazer as necessidades nutricionais e energéticas
dos seus alunos. Apesar de todas as orientações publicadas pelo
Ministério da Educação para as cantinas e refeitórios escolares, a
evidência sugere que estas podem não estar a ser cumpridas nos
estabelecimentos de ensino.
Algumas não conformidades frequentemente identificadas nas cantinas
incluem a falta de variedade de produtos hortícolas na sopa, a
ausência ou baixa disponibilidade de hortícolas no prato,
predomínio do fornecimento de pratos de carne e ausência de
leguminosas no prato. Para além do incumprimento das recomendações,
regista-se frequentemente um elevado desperdício alimentar que se
encontra entre os 10 e 38%, tendencialmente inferior no caso da
sopa e maior no segundo prato, acompanhamentos e hortícolas. Esta
realidade aparenta demonstrar fiscalização insuficiente por parte
do Estado relativamente ao equilíbrio nutricional das refeições
escolares disponibilizadas. Para a Ordem dos Nutricionistas a
alimentação escolar constitui uma prioridade, tendo enviado no
início do passado ano uma proposta concreta à Secretária de Estado
Adjunta da Educação para integrar nutricionistas nas escolas em
todo o país. Estes profissionais seriam responsáveis pela garantia
do controlo da qualidade e quantidade das refeições escolares,
nomeadamente ao nível da oferta alimentar e da higiene e segurança
alimentar, assegurando simultaneamente a adequação alimentar e
nutricional da oferta e a respetiva monitorização e
fiscalização.
Em termos alimentares, em especial na vertente escolar, os
constrangimentos económicos e financeiros prevalecem relativamente
aos valores da saúde?
Os constrangimentos económicos são um dos fatores que podem
dificultar o acesso a uma alimentação equilibrada. Contudo, e
enfocando na vertente escolar é possível fazer com o mesmo
Orçamento do Estado, mais e melhor, é neste sentido que vai a
proposta da Ordem dos Nutricionistas.
Continuando na vertente do ensino: veria com bons olhos a
inclusão nos programas curriculares de aulas de educação alimentar
ministrada desde os níveis inferiores?
Sim, sem dúvida. Existe evidência científica de que as escolas
devem promover abordagens continuadas e multicompetentes,
desenhando estratégias com vista a incluir a componente alimentar
no currículo, que poderia ser ministrada por professores
devidamente treinados para o efeito por nutricionistas. Esta medida
contribuiria para aumentar a literacia alimentar e capacitar os
alunos para escolhas alimentares saudáveis, trabalhando
conhecimentos, comportamentos e atitudes.
Há um ano entrou em vigor um decreto-lei que determinava a
substituição de alimentos menos saudáveis nos bares, cafetarias e
refeitórios dos hospitais. Impunha-se a aplicação de uma medida
semelhante nas escolas?
De referir que a Direção-Geral da Educação tem documentos
orientadores da oferta alimentar para os bufetes e máquinas de
venda automática, bem como para as cantinas. Contudo, na Educação
são compreendidos como referenciais, e por outro lado na Saúde
tratam-se de despachos com cariz obrigatório.
Neste sentido, a implementação de uma medida semelhante nas escolas
poderia contribuir positivamente para a melhoria da oferta
alimentar. Contudo, não deve ser vista como a única medida a tomar,
uma vez que a modificação da oferta alimentar deve ser acompanhada
de medidas que incidam sobre a modificação da procura alimentar,
como é o caso da educação alimentar, com objetivo de contribuir
para escolhas alimentares saudáveis e, consequentemente, para a
saúde, bem-estar e qualidade de vida das crianças e jovens.
A obesidade e o sedentarismo, reforçado pelo aumento
exponencial do consumo de informação e entretenimento nos
telemóveis, televisões e PlayStation, são marcas na população
portuguesa, alcançando valores preocupantes nas classes etárias
mais jovens. Considera uma emergência nacional promover uma cultura
de saúde através de uma alimentação correta em articulação com a
prática de exercício físico?
De acordo com o último Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade
Física (2015-2016), apenas 36% dos jovens dos 15 aos 21 anos são
considerados fisicamente ativos, cumprindo com as recomendações
atuais para a prática de atividade física promotora de saúde. O
baixo nível de atividade física representa, tal como os hábitos
alimentares inadequados, um dos fatores de risco modificáveis
responsáveis pelos anos de vida saudável perdidos pelos
portugueses. Face à prevalência do sedentarismo em Portugal, que
assume valores preocupantes nas classes etárias mais jovens, e à
necessidade de melhoria dos hábitos alimentares dos portugueses, a
conjugação de uma alimentação adequada com o aumento da atividade
física permitirá maximizar os ganhos em saúde.
Nos últimos tempos surgiram muitas tendências alimentares
no mercado, com a promessa de resultados físicos rápidos. A
proximidade do verão leva a que muitos e muitas recorram às
popularmente chamadas de "dietas da moda". Como nutricionista que
conselho daria a uma pessoa com esta intenção?
Com a aproximação do verão surgem no mercado dietas "da moda" para
quem procura emagrecer rapidamente, contudo deve haver precaução.
Estas dietas podem apresentar riscos para saúde se implementadas
sem base científica e sem o devido acompanhamento por um
nutricionista, de forma a garantir uma abordagem individualizada e
a existência da intervenção nutricional mais adequada a cada
indivíduo, face às suas necessidades e características individuais.
Para que a perda de peso seja eficaz é importante que a abordagem
seja personalizada, com definição de objetivos realistas e
acompanhamento ao longo do tempo. O emagrecimento com saúde
consiste ainda na aposta num estilo de vida saudável com
planeamento e proficiência em escolhas alimentares saudáveis
durante todo o ano.
Tendo em conta a necessidade de cuidados de saúde
permanentes e crescentes numa população envelhecida, a profissão de
nutricionista afigura-se para os novos profissionais como uma
carreira com boas perspetivas de futuro?
As necessidades de atuação do nutricionista a nível clínico,
comunitário e de saúde pública são inquestionáveis. O
envelhecimento da população e o aumento da esperança média de vida
dos portugueses poderá exacerbar mais ainda estas necessidades.
Reveste-se de enorme importância a efetiva integração de
nutricionistas em todas as estruturas que lidem direta ou
indiretamente com a temática da alimentação e da nutrição, para que
se concretizem as ações necessárias no que respeita ao tratamento e
prevenção de doenças. O perfil de saúde do nosso país reflete a
urgência e a necessidade da intervenção destes profissionais.
CARA DA
NOTÍCIA
Um combate pela saúde dos portugueses
Alexandra Bento é Bastonária da
Ordem dos Nutricionistas, doutorada em Ciências do Consumo
Alimentar e Nutrição pela Faculdade de Ciências da Nutrição e
Alimentação da Universidade do Porto e mestre em Inovação Alimentar
pela Universidade Católica Portuguesa, onde é professora convidada
e regente das unidades curriculares de Política Alimentar e
Nutricional, Nutrição Humana e Gastrotecnia. Foi durante mais de
uma década presidente da Associação Portuguesa dos Nutricionistas,
onde abriu caminho para a criação da Ordem dos Nutricionistas.
Iniciou o seu percurso profissional como nutricionista no Hospital
de Amarante, sendo atualmente assessora superior de nutrição da
Administração Regional de Saúde do Norte.
Pela sua ação na defesa e promoção de hábitos alimentares
saudáveis, recebeu a Medalha de Mérito Grau Ouro da Câmara
Municipal do Porto em 2015 e foi distinguida pela Medalha de Ouro
do Ministério da Saúde em 2018. Autora de várias publicações
científicas e artigos de opinião, em 2017 publicou o livro "Comer
bem é o melhor remédio".
Nuno Dias da Silva
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