Boss AC, rapper
O emprego «bom» de Boss AC
Nas músicas, que o país inteiro canta, está lá tudo.
As pessoas ouvem, gostam e identificam-se. Como diz na letra é um
«gajo normal», um «tuga do Mindelo», mas foi «Sexta-Feira» que o
projectou como um dos maiores fenómenos de popularidade do presente
ano. Quando fosse grande gostaria de ter sido inventor, mas acabou
como rapper. E de sucesso. Senhoras e senhores, «Boss AC» ou
simplesmente AC, para os amigos…
Em
que medida é que as raízes cabo-verdianas condicionaram a sua
carreira musical?
Tive uma influência indirecta dos
meus pais, mas as coisas aconteceram espontaneamente. O meu pai,
Toi Firmino, formou-se para ser professor, mas a vocação acabou por
desviá-lo para a pintura. A minha mãe, Ana Firmino, é uma cantora e
actriz de Cabo Verde. Admito que este convívio desde tenra idade
com o universo musical tenha facilitado a minha incursão no meio
artístico.
Apesar da sua mãe interpretar as
mornas e você o rap, pensa que podem coincidir numa
música?
A minha mãe já participou num dueto
comigo, no primeiro álbum, mas tenho esperança que possamos repetir
a experiência, desta feita num disco da autoria dela.
Sempre teve ouvido e queda para a música?
Quando eu andava na escola gostava de ser inventor
ou cientista. Nunca quis ser artista nem nada que se parecesse. De
qualquer forma, enquanto rapper, indirectamente também estou a
inventar, enquanto criador musical. Por isso, constato que não
estou assim tão longe do meu sonho de criança.
Diz
em várias entrevistas que enquanto criança fazia questão de se
sentar na primeira fila. Era bom aluno?
Eu gostava muito da escola. Na
escola primária, as minhas disciplinas preferidas eram o Português,
a Matemática, as Ciências e a Biologia. Já na altura, as
composições e os ditados saíam em rima.
Escreveu no
seu Facebook : «Já levo uns aninhos de estrada mas com este álbum
tem-me acontecido uma coisa inédita: é a primeira vez que os meus
amigos compram o disco». É um sinal de maturidade na sua
carreira?
É um sinal de reconhecimento.
Sempre tive o apoio incondicional dos amigos em todos os meus
lançamentos anteriores, solicitando os discos, autógrafos com
dedicatória, etc. Mas admito que este, tanto pela reacção dos meus
mais íntimos, como para o público em geral, ultrapassou todas as
expectativas e tem um simbolismo especial.
Como encara o fenómeno descontrolado da pirataria em
paralelo com a internet, em que os discos vão parar integralmente
ao público ainda antes do seu lançamento?
É preciso muita calma e evitar
extremismos quando se fala deste tema. No meio está a virtude. A
música não vai deixar de existir, mas o negócio tem claramente de
ser repensado. Evidentemente que prejudica a indústria e quem nela
trabalha. Os custos são muito elevados para as editoras e dói
imenso perder dinheiro. A partir daí começa o ciclo vicioso. As
editoras não investem, os artistas não gravam, etc.
Mas
a internet tem o lado virtuoso de promover músicas e trabalhos que
sem ela estariam condenados ao anonimato…
Esse é o lado positivo que importa
não negligenciar: sem esta globalização não seria possível chegar a
determinados recantos que jamais pensariam que me ouviriam. Recebo
e-mails de imensos lusófonos espalhados pelas diferentes partes do
mundo, mas também de estrangeiros, por exemplo, da Polónia,
Austrália, etc. No final do mês de Fevereiro, a música
«Sexta-Feira, emprego bom já», contabilizava 1,5 milhões de
visualizações no YouTube e continua a crescer a um ritmo galopante.
Não me importava nada que me pagassem um cêntimo por cada
visualização (risos)…
Na
música «Sexta-feira, emprego bom já» tece uma crítica social e
creio que também visa uma certa juventude que quer ter tudo sem
esforço. Admite que é uma crítica de duplo sentido?
Eu procurei uma fazer uma
caricatura adequada à situação actual. As pessoas vão interpretar a
música como quiserem, por mais explícito que eu queira ter sido em
termos de letra. Como assinala, e bem, a minha visão aponta culpas
às políticas dos governos, mas esta geração não está isenta de
responsabilidades por cair num certo conformismo.
Não é inocente eu dizer «alguém me
arranje um emprego já». Dizer emprego ou trabalho é uma diferença
subtil, mas importante, que muda tudo.
Alguma juventude peca por excesso de preguiça?
No trabalho há os que não conseguem
e há os que não querem. Mas às vezes temos de nos sujeitar, mesmo
que não gostemos.
Considera-se um músico de intervenção?
Fujo sempre do rótulo de música de
intervenção. Antes de ser músico, sou um cidadão. Sou um cidadão
activo e quero ter voz activa. Contesto os que protestam por tudo e
por nada e depois no dia das eleições, vão para a praia. Quando o
barco bate na rocha já sabemos todos o que aconteceu. Todos temos
convicções, mas abdicamos de expressá-las. Muitos esquecem que o
voto em branco é válido.
Fale-nos um pouco do que esteve na base da concepção do
vídeo «Sexta-feira». Muitos dizem que é inspirado nos bonecos da
Playmobil, outros dizem que são Legos. Afinal do que se
trata?
Garanto que a Lego não pagou nada
(risos). São bonecos articulados concebidos por uma animação a
cargo de um produtor e um designer em 3D. Apresentaram-me a maquete
e eu disse «é isto mesmo». Quisemos transportar o espírito
bem-disposto de toda a banda, através de um vídeo fresco, inovador
e diferente de tudo.
A
crise também já se faz sentir na frequência do ensino superior.
Segundo dados recentes, 3300 estudantes cancelaram a inscrição na
faculdade desde o início do ano lectivo, por incapacidade
financeira. Não considera frustrante?
Faltam condições económicas, há
muito desmotivação e poucos incentivos. Perante este contexto, o
caminho rumo à desilusão é curto. Muitos estudantes formam-se em
pura teoria para ter um emprego melhor e acabam na caixa de um
supermercado. Isto é o exemplo acabado de que possuir formação
superior não é garantia de nada.
Diz
na sua música «Sexta-feira» que «não tirou o curso superior de
otário». É uma mensagem para muitos jovens que formam-se
direitinhos para os centros de emprego?
Estou consciente que não vou mudar
o mundo com uma música, mas com tantas discussões que se continuam
a gerar, tenho a sensação que já fiz a minha parte.
A
exposição da sua música pode convertê-la num hino de uma
geração?
Não sei. Gosto da identificação e
do retrato, encaixam bem no momento delicado, mas só o tempo dirá
se será hino. Uma vitória, por mais pequena que seja, já foi
conseguida, estou satisfeito. Mas como tudo indica que a situação
vai piorar, provavelmente em 2013 ou 2014 vão surgir outras
músicas, na senda desta.
Como comenta o convite à emigração feito por dois
governantes deste executivo?
Considero ridículo e inédito. Em
vez de incentivar a nova geração e os novos quadros, de promover a
investigação e o desenvolvimento, dizem «tás mal, muda-te».
Trata-se de mais um sintoma do claro divórcio entre o povo e os
políticos.
O
que mais o preocupa no desemprego jovem: a emigração de portugueses
qualificados ou a clara sensação de que o país não tem um projecto
para os jovens?
Os organismos oficiais são os
últimos que podem fomentar este tipo de discurso. Têm é de tudo
fazer para arranjar soluções. Esta debandada dos jovens licenciados
vai deixar marcas. Faz o lembrar o sentimento com que se fica
quando um pai deixa o próprio filho na rua.
Para já ainda temos profissionais suficientes e capazes,
mas se os realmente bons emigrarem em massa significa que ficaremos
entregue aos medíocres?
O pior é que o sentimento de
desilusão generalizada não se aplica apenas aos jovens. As
perspectivas futuras são cada vez mais sombrias. Estamos todos na
corda bamba sem saber o que vai acontecer amanhã. Até os empregados
com contratos efectivos não sabem os que lhes espera. As leis
laborais foram suavizadas para facilitar os despedimentos. Nada é
seguro. Tenho casos de familiares e amigos próximos que estavam em
empresas que aparentemente vendiam saúde e que, subitamente, foram
despedidos. Vivemos num grande ponto de interrogação.
O
futuro do país é uma incógnita e a juventude está no meio do
turbilhão. Que papel têm desempenhado os movimentos dos indignados
e outros congéneres para mudar o actual estado de
coisas?
Eu creio que a mobilização é sempre
positiva. Com uma cidadania activa, juntos podemos mudar as coisas.
Mas não chega. Creio que há muita inconsequência no passar das
ideias à prática. Não se sabe muito bem contra quê está o movimento
dos indignados, por exemplo. Do mesmo modo que continuar a apelidar
de «geração à rasca» uma determinada geração é um mero truque de
linguística, sem consequências práticas.
O
almirante Pinheiro de Azevedo dizia que o «povo é sereno». Os
brandos costumes vão fazer com que os confrontos não passem das
palavras?
Os confrontos não resolvem nada.
Veja que na Grécia e em Espanha só agravaram a situação. Mas o
aperto económico e financeiro vai em crescendo. Não estou a dizer
que devemos pegar em «cocktails molotov» e em paus e pedras e
começar uma guerra, mas como eu digo na minha música, qualquer dia
«a bolha rebenta»
Dentro ou fora da Europa, com ou sem euro, este país tem
futuro?
Quero acreditar que sim. O governo
e a oposição têm que acabar com as guerrinhas de comadres.
Trabalhar em prol do bem comum e fazer prevalecer o bom senso.
Sente-se um privilegiado no actual
contexto?
Quem assim pensa esquece-se que eu
próprio tenho uma profissão bastante volátil. Cíclica, tem momentos
bons e outros menos bons. Já me perguntaram; «que autoridade tens
para falar em emprego bom se tens um super emprego?». Esta análise
é fruto do mediatismo que me rodeia, só que ser figura pública
ainda não paga contas. Tenho de pagar a renda como todos, abastecer
o carro como todos, ir ao supermercado como todos. Com a agravante
de não haver «fim do mês». Isto aplica-se a qualquer profissão
liberal na área do entretenimento. Está longe de ser um mar de
rosas.
Nuno Dias da Silva
Universal Music