Maria da Graça Carvalho, ex-ministra da Ciência, Inovação e Ensino Superior
«Existe um défice de doutorados em Portugal»
Maria
da Graça Carvalho é uma referência nacional e internacional no
domínio da ciência e da inovação. A antiga ministra fala do
programa Horizonte 2020, do potencial científico de Portugal, do
ensino superior e do projeto europeu.
Foi
distinguida com o Prémio Maria de Lourdes Pintassilgo, atribuído
pelo Instituto Superior Técnico (IST). Qual a importância desta
distinção?
Fiquei, ao mesmo tempo, contente,
surpreendida e honrada com o prémio. Considero esta distinção muito
importante principalmente pelo simbolismo. Maria de Lourdes
Pintassilgo foi uma das primeiras mulheres engenheiras em ambiente
fabril. Trabalhou, entre outros locais, na CUF. Mas esteve sempre
de uma forma feminina. Defendeu que a igualdade não é imitar os
comportamentos masculinos, mas reside na diversidade. E são esses
os valores que as mulheres devem trazer para a sociedade, para a
profissão e para a política: a sua maneira de ser e de resolver os
problemas, necessariamente distinta da dos homens.
E de que
forma é inspirador por este prémio levar o nome da primeira mulher
ministra e que liderou um governo em Portugal?
Maria de Lourdes Pintassilgo esteve
na política e ficará para a história por ter sido, até à data, a
primeira e única primeira-ministra no nosso país. Não querendo
comparar, não posso deixar de notar que tenho um percurso que se
desenvolveu no mesmo sentido. Nunca estive em ambiente fabril, mas
numa primeira fase da minha carreira, fui professora do Técnico e
investigadora na área da engenharia, com muitos projetos em
parceria com a indústria: trabalhei em ambiente de fábrica, que é
uma realidade que verdadeiramente gosto. Numa etapa posterior,
estive na política, primeiro como ministra do XV e XVI governos e
depois deputada ao Parlamento Europeu, cargo que Maria de Lourdes
Pintassilgo também desempenhou. Não deixa de ser interessante esta
semelhança de percurso.
Agora está
na pele de conselheira dos decisores da Europa…
Sim, agora estou em funções como
membro da Unidade de Aconselhamento Científico da Comissão
Europeia, uma administração pública internacional das mais
prestigiadas e competentes do mundo.
Dizia o
comissário Carlos Moedas no discurso durante a cerimónia de
atribuição do prémio que «não podemos ainda falar em igualdade de
género na ciência e na investigação». O que falta para encurtar
esta distância?
Falta ainda muito. Em Portugal, no
ensino superior, nos alunos de pós-graduação, mesmo nos
investigadores, as mulheres estão em maioria, mas quando começamos
a avançar ao longo da carreira o número de mulheres vai diminuindo
de forma vertiginosa. Na carreira académica começamos por ter
muitas alunas de doutoramento e doutoradas, mas já temos menos
professoras associadas e muito menos professoras catedráticas. Se
falarmos de reitoras, a situação ainda se agrava mais. E isto
acontece tanto na ciência e na vida académica como em outros
setores da sociedade. Estou a referir-me, nomeadamente, ao setor
empresarial em que a situação é especialmente flagrante. Veja que,
no universo das empresas cotadas na bolsa de Lisboa, só uma empresa
é que tem uma presidente mulher e nos conselhos de administração,
só 12 por cento da composição dos seus membros são mulheres.
Isso
deve-se a alguma resistência social?
Há um ecossistema com hábitos
masculinos muito enraizado, que faz com que os homens que estão nas
empresas convidem para trabalhar as pessoas que estão mais
próximas, que também são homens. Trata-se de uma barreira difícil
de penetrar. Por isso, é que eu sou defensora das quotas, como
medida transitória, para permitir que as mulheres rompam com este
ecossistema instalado e comecem a entrar nestes circuitos.
Entretanto, também se assiste, para já noutros países, que não em
Portugal, a uma regressão no ; número de mulheres nalgumas
áreas tecnológicas, nomeadamente na computação e nas tecnologias da
informação, que são grande áreas de futuro. Falo, por exemplo, da
Suíça e dos Estados Unidos, países que tinham números muito
significativos de mulheres nestas áreas nos anos 80. É precisamente
nas empresas tecnológicas que o desnivelamento no número de
mulheres e homens é mais acentuado. É o caso da Google, Linkedin,
Apple, que têm um número de mulheres muito reduzido e as que
existem não estão geralmente em funções técnicas.
O prémio
que recebeu distingue duas mulheres formadas pelo IST. O que é que
esta escola de referência lhe deu, em termos de qualificação e de
valores?
Algo muito importante que destaco é
o método de estudo e de trabalho: como organizar um trabalho, um
projeto, um relatório, o trabalhar em grupo. Isto é algo que se
aprende no Técnico, e em especial, na engenharia mecânica, que é a
minha área. Lembro-me que havia uma cadeira, Organização da
Produção, que na altura de estudante era mal compreendida e o tempo
veio a confirmar a sua enorme utilidade, porque, no fundo, dá-nos a
conhecer métodos para organizar o nosso trabalho. Depois, algo que
eu tenho e que é também inato, mas que foi cimentado ao longo do
curso: a capacidade de olhar para problemas muito complexos e
tentar percebê-los, simplificá-los, modelá-los e tirar
conclusões.
No fundo, está a elencar uma abordagem científica e
factual…
É uma abordagem científica e de
engenharia para resolver problemas complexos. E tive sempre essa
preocupação quando fui professora no relacionamento com os meus
alunos. O segredo para resolver problemas complexos reside na
metodologia de trabalho empregue, com a particularidade que para
além da vida académica, também a podemos usar, e com bons
resultados, na vida quotidiana.
É isso que
explica o elevadíssimo, quase total, índice de empregabilidade dos
alunos saídos do Técnico?
Sem dúvida. Os métodos que aqui são
ensinados servem para múltiplas áreas. Quando em engenharia
mecânica ensinamos os alunos a modelar e a resolver problemas
complexos, a aplicação pode ser em engenharia, mas também nos
serviços, no comércio ou na banca. Saber modelar sistemas complexos
tem aplicação em múltiplas áreas.
É uma
vantagem tremenda face aos cursos de lápis e papel, muito pouco
práticos…
Os cursos de engenharia pretendem
dar resposta a problemas complexos e no quadro de uma sociedade
cada vez mais dependente das máquinas.
É
investigadora, professora, autora, conselheira, foi deputada,
eurodeputada, ministra. Em qual destas peles se sente mais
confortável?
Provavelmente investigadora, apesar
de a docência também ser importante. E porque não existiu uma sem a
outra. É um binómio que não se pode separar. A minha atividade de
professora estava muito ligado aquilo que eu fazia na investigação.
Mas, para ser franca, onde eu me sentia mais realizada era na
formação de alunos de doutoramento. Formar pessoas que depois se
tornam grandes investigadores, grandes professores ou pessoas com
cargos de relevância na sociedade deu-me uma grande realização
pessoal.
Veio da
academia para a política. Sentiu um impacto forte e um choque entre
esses dois mundos?
Sabe que, também na política,
sempre tive uma perspetiva de aplicar os mesmos métodos que aplico
na engenharia. Por exemplo, no início da minha atividade
governativa deparei-me com um problema complicado para resolver:
tinha havido um aumento de propinas e os alunos estavam na rua em
protesto. Os alunos argumentavam que muitos ficariam excluídos do
sistema por razões económicas e foi preciso analisar em concreto o
que se passava. A minha primeira tarefa foi analisar o problema e
resolvê-lo. Tinha de ter dados, quantificá-los, saber o número de
casos, perceber quais os melhores modelos utilizados nos diversos
países e comparar os vários cenários, definir vantagens e
desvantagens e só depois propor uma solução em Conselho de
Ministros. E assim foi. Propus que se mantivesse o valor das
propinas, mas que se aumentasse consideravelmente a ação social, de
modo a que todos os alunos que não pudessem pagar as propinas
vissem estas serem pagas pela ação social. A contestação
praticamente cessou. Recordo-me, inclusive, que o meu grau de risco
de segurança que era definido pelo corpo de segurança pessoal da
PSP foi reduzido para zero. Isto para dizer que resolvi um problema
político seguindo a mesma metodologia com que eu costumava dar
resposta a um problema de engenharia ou científico.
Teve papel
preponderante na aprovação do programa Horizonte 2020, estimado em
77 mil milhões de euros e que é gerido pelo comissário português,
Carlos Moedas. Qual a sua importância?
É o maior programa de ciência,
inovação e investigação do mundo e tem como objetivo financiar
investigação fundamental, mas também a passagem dos resultados da
investigação fundamental para a prática e a inovação. Mas é preciso
referir que o programa Horizonte 2020 não vai resolver os problemas
da Europa por si só. É preciso que os Estados Membros também sigam
o exemplo da Europa e apostem cada vez mais na ciência e na
inovação. Para além disso, é necessário que os Estados Membros
ponham em prática medidas que conduzam à criação de um ambiente
propício à inovação. Enquanto no caso da ciência é crucial que haja
investimento público, no caso da inovação só investimento público
não chega. É preciso que se criem condições para que a inovação
floresça. Mesmo que se financie a inovação, se em paralelo existir
muita burocracia, se o mercado não funcionar convenientemente, se a
administração pública não colaborar, se as leis do trabalho não
forem favoráveis à atração dos mais qualificados, a inovação não
vai acontecer. A inovação é a passagem do conhecimento para a
realidade, para a economia e para a sociedade.
De que
maneira o comissário Moedas tem procurado melhorar estes
aspetos?
O Comissário Moedas tem
desenvolvido toda uma política para dinamizar o ecossistema da
inovação. Trata-se de um sistema muito complexo, que não é linear e
que - repito - não depende apenas da existência de
financiamento.
A Europa
estar a braços com muitas dificuldades e a várias velocidades não é
um obstáculo adicional?
Felizmente há bons resultados em
vários países, incluindo Portugal. O nosso país é um dos casos em
que os indicadores da ciência e da inovação têm mostrado progressos
assinaláveis ao longo dos anos. Mas não se pode parar o trabalho.
Este esforço representa uma batalha contínua.
O ministro
Manuel Heitor disse em entrevista o ano passado, pouco depois de
ter assumido a pasta da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que
quer vencer o problema do emprego precário na ciência, que passa
por mais autonomia das instituições e contratos laborais mais
flexíveis. É o fim dos cientistas de bolsa em bolsa e dos
precários?
Há aqui duas questões a analisar.
As bolsas devem existir quando são verdadeiras bolsas. O que o
ministro Manuel Heitor está a procurar fazer, e muito bem, é evitar
que as bolsas sejam usadas em condições em que não são bolsas e são
usadas para substituir necessidades permanentes de trabalho. Agora,
a bolsa genuína é um instrumento que existe em todo o mundo e é
muito útil, mas não deve ser usado com outras finalidades.
Mas a
precariedade ainda é grande na comunidade científica?
Sim, mas está a ser feito um
levantamento dessa precariedade pelo Governo. Não é fácil,
precisamente por ser necessário distinguir entre as verdadeiras
bolsas e o uso abusivo de bolsas. É um trabalho difícil, mas que é
da maior justiça que seja feito.
Portugal
ainda é um país com potencial científico por explorar?
Sim, é verdade. O número de
cientistas e de doutorados tem aumentado de uma forma constante.
Este facto é fruto de uma política que tem sido seguida de uma
forma continuada de atribuição de um número crescente de bolsas de
doutoramento. Há cerca de 15 anos eram atribuídas, salvo erro, 500
bolsas por ano. No meu tempo no Governo, há 10/12 anos, passou-se
para 1000 ou 1200 e neste momento atingiu-se a marca das 2500 por
ano. Só conseguimos ter excelência se alargarmos a base e o domínio
de onde partimos. É por isso imprescindível ter cada vez mais
cientistas, na academia, em institutos de investigação, mas
principalmente nas empresas. E é com pessoas muito qualificadas que
se constrói uma sociedade baseada no conhecimento. Ainda existe um
défice de doutorados em Portugal, especialmente nas áreas da
tecnologia da informação e da computação, em que existe
manifestamente um défice de engenheiros, mestres e doutores.
O
presidente desta casa onde estamos, o Técnico, Arlindo Oliveira,
escreveu um artigo no «Público» chamado «uma revolução na edução»,
em que afirma que «dois terços dos alunos que agora iniciam a sua
formação escolar irão trabalhar em profissões que ainda não
existem». A formação ao longo da vida e a adaptabilidade serão duas
armas mais poderosas de quem quiser vingar?
Sem dúvida. Já no meu tempo, o
Técnico me preparou para esses desafios que agora são cada vez
maiores. A capacidade de analisar, pensar, trabalhar e de organizar
aprende-se na Universidade. Para além disso, há uma evolução da
ciência e da tecnologia que é vertiginosa, em que as coisas mudam
com uma velocidade tremenda. Perante este cenário de mudança
constante é preciso ensinar os alunos a lidar com os problemas mais
do que com o conteúdo dos problemas.
Há
dificuldade em fixar licenciados em certas áreas como engenharias.
A fuga de cérebros pode ser estancada?
O sistema académico e o sistema
público não são suficientes, nem deve ser, para absorver todos. É
muito importante que os doutorados e os engenheiros tenham um papel
importante na sociedade e que não fiquem confinados ao sistema
público ou académico. Uma forma de diminuir o número de licenciados
e doutorados que vai para o estrangeiro é melhorar a economia. Essa
é a grande solução para a fuga de cérebros. Mas também há o
raciocínio inverso. Eu não tenho ainda dados suficientes para
afirmar o que vou dizer, mas acredito que um dos motivos que levou
Portugal a reagir relativamente bem à crise foi a grande
qualificação dos seus jovens. Não só porque alguns foram para fora,
como outros tiveram a preparação e a imaginação de criarem
alternativas, como o nascimento de start-ups. A base de
qualificação foi essencial. Ter feito um curso, ter feito Erasmus,
ter tido acesso a informação foi essencial para dar novos
horizontes, promover novas ideias e dinamizar novos conceitos e
novos negócios. Acho que é isso que está a acontecer em várias
cidades do país, em que Lisboa é, porventura, o melhor exemplo.
Pensa então
que este processo de reação à crise, doloroso para muitos, pode, ao
fim e ao cabo, ter ilações positivas?
Nunca é bom as pessoas terem de ir
para o exterior por imposição. Mas a mobilidade é positiva. Falo
por experiência própria. A minha experiência no estrangeiro
valorizou-me e deu-me perspetivas que nunca teria tido de outro
modo. No entanto é negativo um país formar os seus recursos humanos
para outras economias de forma generalizada. Esta situação
acontece, por exemplo, nos cursos de enfermagem, em que estamos a
beneficiar outros países com o investimento nos nossos recursos
humanos. O prestígio dos enfermeiros portugueses está no topo ao
nível europeu e estes jovens são imediatamente absorvidos ou no
Reino Unido ou na Suíça. Acontece que o curso de Enfermagem é uma
licenciatura complexa e dispendiosa. Espero que, com a melhoria da
economia em Portugal a situação se altere. Há muita necessidade de
técnicos da saúde no nosso país em consequência do envelhecimento
da população.
Concorda
com o argumento dos politécnicos que querem atribuir doutoramentos
como as universidades?
Eu entendo que os politécnicos têm
uma missão diferente das universidades e um papel muito importante,
mais próximo dos setores locais e regionais. Defendo que devem
existir politécnicos e universidades, mas acho que os politécnicos
que tenham capacidade para isso deverão dar doutoramentos, com um
perfil diferenciado relativamente aos doutoramentos que as
universidades atribuem. A capacidade de uma instituição dar
doutoramentos deve ser baseada numa avaliação de qualidade com base
em indicadores estabelecidos, por exemplo, por uma agência
independente.
A
concretizar-se, não podemos estar perante uma banalização dos
doutoramentos?
Não, pelo contrário. Todas as
instituições, sejam politécnicos ou universidades, podem dar
doutoramento se desenvolverem investigação que justifique essa
atribuição e desde que cumpram critérios de qualidade para tal. A
índole dos doutoramentos será diferente consoante a missão da
instituição.
Uma questão
final sobre a União Europeia e o mundo. Como profunda conhecedora
dos corredores de Bruxelas, como vê o projeto europeu, no rescaldo
do brexit?
Estou otimista. Acho que a Europa é
mais necessária do que nunca porque os problemas são complexos,
cada vez mais globais e para enfrentá-los temos de estar juntos.
Aqueles que queiram estar juntos, naturalmente…
A situação atual é propícia a que
os Estados Membros se unam cada vez mais para terem a capacidade de
enfrentar questões tão complicadas com a globalização, o mercado
internacional, as crises das migrações, as alterações climáticas.
Um país, de pequena e média dimensão, não consegue sozinho combater
estes desafios.
Com Trump a
ignorar a Europa, o desafio do velho continente será combater a
irrelevância?
A Europa nunca será irrelevante em
termos mundiais. É uma Europa de valores, que defende o ambiente,
os direitos humanos, a cultura, a qualidade de vida, o conhecimento
e não é por acaso que é o local mais procurado do mundo para viver.
É esta a nossa força.
Nuno Dias da Silva
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