João Perry, ator e encenador
«Ser ator é a possibilidade de viver várias vidas»
São seis décadas de um carreira intensa de um dos
mais aclamados atores portugueses. João Perry, na peça em cena no
Teatro Aberto, interpreta um dos mais desafiantes papéis da sua
carreira: o portador de uma doença degenerativa.
Em «O Pai», peça que está
em exibição no Teatro Aberto, até 26 de fevereiro, Interpreta
André, um homem entre 70 e 80 anos, que padece de uma doença
degenerativa. Li que se emocionou quando leu o guião pela
primeira vez. O que é que o tocou?
Tocou-me a forma que o autor (o
francês, Florian Zeller) arranjou para consciencializar o leitor ou
o espetador da confusão que se apodera da pessoa quando esta é
vítima de uma doença de senilidade, com a consequente não
identificação do mundo que a rodeia. Isso impressionou-me, também
pelo facto de recentemente ter assistido à saída da existência de
uma pessoa mais ou menos intima que tinha tido essa doença. De
certa maneira corporizamos o outro e não gostaríamos que nos
acontecesse o mesmo. Foi uma forma de reviver esse receio que todos
nós sentimos perante as doenças degenerativas ou similares.
Para um ator que tem na
memória um dos principais instrumentos de trabalho é difícil
representar este tema?
A memória para um ator é
imprescindível. A perda da memória é uma castração. Neste momento
há uma peça em cena que foca o caso de uma atriz francesa que
perdeu a memória recentemente, Annie Girardot, que se tornou um
símbolo no combate à doença de Alzheimer em França. Ela deixou de
perceber onde estava.
Para o espetador é, de
alguma forma, um murro no estômago?
É sempre, porque estamos todos
incluídos na possibilidade de nos vermos afetados. É preciso que os
cientistas avancem nas suas pesquisas e investigações para que
possam contornar essa realidade cada vez mais quotidiana que é os
seres humanos terem uma vida mais longa, mas não necessariamente
com uma boa qualidade.
Esta peça é um retrato do
que é ser velho nos dias de hoje. Os velhos são um empecilho para
as sociedades?
Nas nossas sociedades o fator
rentabilidade é sempre levado em conta. Só que os velhos são o
conhecimento, o conhecimento anterior. E são os comunicadores dos
afetos, provavelmente porque têm mais noção da durabilidade,
especialmente para os mais novos e que iniciam o seu percurso de
vida. São mais caritativos e afetivos porque estão menos envolvidos
em produzir dinheiro, em produzir bens, e estão mais interessados
em comunicar experiências aos outros.
Esta peça pode contribuir
para se dar a conhecer mais sobre esta doença?
Pode, até porque há pouco
conhecimento para lidar com as pessoas afetadas por essas doenças.
Elas não são atrasados mentais, mesmo que regridam afetivamente, e
detestam ser tratadas como crianças e com modos pejorativos.
Nas quase duas horas de
duração da peça faz praticamente as despesas quase por completo da
mesma, sem pausas. Como é que um ator com 76 anos gere o desgaste
físico e mental ?
Já fiz várias personagens ao longo
da minha vida, já fiz de mortos, pós-mortos. Já estive do lado de
lá. Acho que conheço muito bem este corredor do fim da existência,
pelo menos na ficção. Não sei mesmo se conseguirei destrinçar
quando acontecer a coisa na realidade. Ou se é um ensaio geral, sem
regresso. Mas em resposta à sua pergunta, de facto, a peça é muito
intensa. Quando termino fico como se estivesse a boiar num charco
de óleo. Estou a ver, os erros que cometi, o que quero melhorar.
Porque este é um trabalho em progresso. Nunca acaba. Há sempre
espaços a preencher. E com a particularidade de esta peça ser
escrita por um autor francês de 35 anos. Por muita análise que
tenha feito sobre este tema, a doença é muito mais constante e
estrelar na sua dimensão do que ele imaginou ou o ator pretende
comunicar.
Começou aos 12 anos nos
palcos. Perdeu-se um arquiteto e ganhou-se um grande
ator?
Eu precisava de ganhar dinheiro
muito cedo e foi o fator financeiro que ditou essa minha escolha.
Fiquei órfão aos 9 anos e essas coisas implicam uma autonomia
forçada. Não me sinto nada vitimado pelo que vivi, porque aprendi
imenso a ser a pessoa que sou e não desgosto totalmente da pessoa
que sou.
Qual é a melhor definição
de ator que já ouviu?
Ser ator é a possibilidade de viver
várias vidas. Para um mandrião, é obrigado a abrir vários livros,
sondar várias matérias, progredir com um motivo que é obter o
conhecimento para por em prática uma ideia.
Eunice Muñoz dizia que o
teatro é insubstituível. O que é que o teatro tem de
distinto?
O teatro tem coisas que não são
comparáveis com os outros meios de expressão do espetáculo. Tem uma
elaboração - ensaio, abordagem e análise - mais lenta do que
qualquer outra. O teatro tem um lado sedutor que a televisão e o
cinema não têm. Estas duas últimas formas têm mais de habilidade e
resposta rápida a situações onde somos postos à prova.
Jorge Silva Melo diz que é
um «ator exato». Revê-se neste elogio?
Não sou exato. Tenho imenso medo de
ser apanhado, sem saber como responder. De maneira que faço o
possível para me munir de um vasto leque de argumentos e
conhecimentos para poder responder às perguntas quem me colocam. Eu
gosto de pensar em voz alta.
Contracena com Ana Guiomar
e outros atores, muito jovens, que podiam ser seus filhos. Que
ensinamentos procura transmitir às gerações mais novas de
atores?
Esse sentimento de transmitir
coisas aos mais novos é muito ingrato, porque atribui- -se a essa
pessoa um conhecimento adquirido pela idade, pela permanência e
pela persistência. As minhas ideias têm vindo a mudar tanto, desde
que eu me conheço, sempre na mesma linha de egoísmo e de pensar que
quero, porque quero e não vou explicar a ninguém porque quero.
Quero! Sabe, eu gosto muito daquilo que faço. E sei que quando
termina uma peça, ainda não acabou. Segue no dia seguinte e depois
e depois. E quando acabo, vem outro trabalho. Aliás, eu nunca deixo
de trabalhar, mesmo quando não estou em peça ou a ensaiar. Trabalho
imenso a ler e a investigar em casa. O prazer de encontrar, de
diminuir a dificuldade e de chegar a um sítio e ser claro, e entrar
em diálogo comigo e depois com os outros, é fundamental.
Recuperando ainda umas
declarações de Jorge Silva Melo, este encenador escreveu no seu
Facebook que «as condições de trabalho dos atores estão a
degradar-se todos os dias. Degradar-se muito». É esta a visão que
tem?
Não conheço a realidade lá fora. O
mundo muda, os consumidores mudam. Isto é como o mar, há dias em
que há acalmia e noutros vem a tempestade, e o barco tem de
continuar a navegar. As condições de trabalho diminuem? Sim, porque
há menos exigência dos colaboradores, maior frivolidade e um
diálogo quase simultâneo entre o pagador e o vendedor. Ou seja, eu
ocupo-te menos, pago-te menos.
Esse é o discurso da
precariedade…
Vivemos uma realidade de
subvalorização e precariedade. Quando há muita gente desempregada,
é sempre muito fácil para quem paga, comprar barato. Faz parte. E a
qualidade não é elegível para o comprador, a qualidade é dada, por
vezes, pelo consumidor, que quase sempre exige pouco. O consumidor
exige aquilo que lhe dão em troca da sua atenção momentânea.
O português vai mais ao
teatro, mas ainda conhece mal aquilo que vê?
Há mais público presentemente do
que no passado e há mais público jovem a ver espetáculos. De
qualquer forma, se para um número reduzido de pessoas já entrou na
rotina ir ao teatro, para a maior parte ir a um espetáculo ainda
está nas escolhas opcionais, por decisão própria ou porque
simplesmente não têm orçamento para gastar em adquirir um bilhete.
Os bens culturais em Portugal ainda estão ao alcance de poucos.
Como viu o processo do
encerramento do Teatro da Cornucópia de Luís Miguel Cintra ao fim
de 40 anos?
O Luís Miguel tem as suas razões
pessoais para isso, ao fim de tantos anos de dedicação constante e
de ter feito um trabalho ímpar. É uma pena que um espaço daqueles,
completamente diferente dos espaços de teatro em Lisboa, se perca.
Podia ser um espaço livre, uma montra, aproveitado por pequenos
grupos de teatro. É lamentável deixar morrer a Cornucópia.
Atribuir responsabilidades
pela falta de apoio do Estado é uma desculpa fácil?
Sabemos que as verbas são
diminutas. Era desejável que aumentassem para a cultura. Tudo isto
é verdade, mas há anos que isto se diz. E só dizer não chega, tem
de haver um propósito e uma ideia, real e não enunciada, para que
isso se concretize. É preciso investir na sementeira. Os orçamentos
aplicados na cultura, seja na educação, seja na formação de alunos,
são investimentos para o futuro, porque formam as pessoas que nos
vão governar amanhã e vão pensar por nós.
Depois da troika e de uma
certa "descrispação", o país está a reganhar o sorriso
perdido?
Alguma vez tivemos o sorriso? Se
tivemos eu não estava cá (Risos). Esta última sessão do
"animatógrafo" do país foi complicada, difícil de engolir. A
película queimou-se, ardeu, parou. Felizmente, o "filme" não acabou
mesmo. Porque senão tinha terminado connosco de maneira ainda mais
pungente e estaríamos numa situação ainda mais complicada do que a
que estamos a viver. É preciso dizer a verdade: vamos precisar de
vários anos para recuperar o que perdemos nos anos da troika e da
austeridade. E agora o que temos pela frente é a não menos
assustadora crise mundial. Os ingleses a dizerem que são uma ilha,
mas que querem continuar a vender os seus produtos, enquanto em
Washington mora agora um homem inacreditável que custa a
admitir que exista. Nem personagem de peça de teatro estou a
imaginar que Trump pudesse ser. Por isso, esperam-nos tempos muito
difíceis.
Nuno Dias da Silva
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