Ricardo Mexia, médico epidemiologista
«Estamos a aprender todos os dias com este vírus»
O médico Ricardo
Mexia admite que após a passagem do coronavírus existam sequelas em
termos mentais para muitos, mas ao mesmo tempo acredita que,
enquanto a pandemia permanecer em crescimento, o distanciamento
físico deve ser compensando por uma nova socialização, com o
recurso às novas tecnologias.
Que fatores
contribuíram para o coronavírus se ter transformado numa espécie de
"tempestade perfeita"?
Há uma grande diversidade
de aspetos que complicaram a resposta. Para começar, o agente tem
características de fácil disseminação e de transmissão pessoa a
pessoa, o que é um dado importante. Para além disso, a própria
existência da possibilidade da transmissão da doença ainda antes de
manifestação de sintomas faz com que este vírus seja especialmente
difícil de conter. Adicionalmente, o mundo hoje, globalizado como
é, facilita que as doenças se disseminem um pouco por todo o
lado.
O epicentro na
China, o país mais populoso do mundo, também foi
decisivo?
Foi e para mais quando
estavam a decorrer as comemorações do ano novo chinês, uma data com
especial significado naquela cultura e que determina uma grande
mobilidade de milhões de pessoas ao longo de todo o território. Não
esquecer que a população chinesa está distribuída pelo mundo,
nomeadamente através dos turistas que visitam as principais
capitais do mundo - e também há muitos ocidentais a visitar a
China. É isto que explica que seja uma pandemia que afeta todo os
continentes e a esta altura serão poucos os países que não terão
casos.
Pode afirmar-se
que este é o primeiro vírus à escala global?
Não diria isso. No passado já
tivemos outras pandemias, como foram o caso da gripe espanhola e da
peste negra, por exemplo. O que acontece é que os registos não eram
tão fidedignos como são agora. Atualmente, temos meios de
informação que nos permitem apreender de forma tão rápida e
expressiva a dimensão do problema. O que se pode dizer é que é a
primeira pandemia deste século, suplantando a gripe A, pelo seu
alcance e pela mortalidade que tem associada. Bem sei que a gripe A
afetou mais pessoas, mas a projeção mediática e através das redes
sociais permitem, atualmente, disseminar informação - nem toda ela
verdadeira - à escala mundial.
Os primeiros
casos na China remontam ao final de dezembro, início de janeiro. Em
Itália, por exemplo, os primeiros casos reportados são de final de
fevereiro. O ocidente e o resto do mundo subestimaram o que se
passava a oriente?
Houve uma tendência inicial para se
desvalorizar o que se passava na China, na província da Hubei, na
cidade de Wuhan, e eventuais consequências que isso podia ter para
o resto do mundo. Veja-se o impacto de casos em Itália, Espanha,
Reino Unido, Estados Unidos e até mesmo Portugal para podermos
afirmar que os líderes desses e de outros países não mediram bem o
impacto que a doença teve e está a ter. Agora, mais do que ser
proativos, estão todos a ser reativos ao problema.
Até à data, o que
é que sabemos com segurança da doença?
Esta é uma doença de
fácil propagação e contágio, se não se respeitar a distância física
entre pessoas. Por outro lado, a letalidade é, de um modo geral,
relativamente baixa, face aos casos reportados. De qualquer forma,
o caso italiano é diferente: quase 1 em cada 10 doentes acabaram
por falecer.
E o que ainda não sabemos
com toda a certeza? A tosse e a febre são caraterísticas dos
sintomáticos, mas já há relatos de ausência de olfato e paladar e
de transmissão nas fezes. O que se pode avançar com
certeza?
A transmissão nas fezes não está
comprovada, o que está comprovado é haver registo de amostras de
fezes nos doentes com o vírus. Por isso, potencialmente pode ser
uma via de transmissão, o que poderá fazer com que contamine uma
instalação sanitária ou os objetos que a pessoa manipule. Ainda
assim não é, para já, a via de transmissão mais frequente. Ainda
está a ser estudada. Quanto à perda da capacidade olfativa ou do
paladar, aparentemente é uma característica que tem acontecido em
diversos doentes e não estava na lista dos sintomas habituais. Mas
sendo uma reação tão rara, pode dar um contributo importante para o
diagnostico e a deteção da doença.
Os dados
coligidos pela Direção-Geral da Saúde (DGS) continuam a apontar a
tosse e a febre como os sintomas prevalentes. A tendência será para
manter?
Os três sintomas inicialmente
considerados na descrição de casos são a tosse, a febre e a
dificuldade respiratória, sendo que este último acaba por apenas
manifestar-se nos casos mais severos, não sendo assim tão frequente
na generalidade dos casos. Mas o quadro clínico dos doentes com
esta doença é muito heterogéneo e também podem acontecer distúrbios
gastrointestinais, corrimento nasal, etc. Por isso, é difícil fazer
um diagnóstico ágil e sem reservas sem recorrer aos testes
laboratoriais.
Os assintomáticos
são uns potenciais disseminadores silenciosos da doença, sendo
muitos deles jovens. Como a Organização Mundial de Saúde disse, «os
jovens não são invencíveis» ao coronavírus?
É preciso reconhecer que a doença
não é particularmente incidente e frequente em jovens. Os dados
mais recentes indicam que não há, a nível mundial, qualquer óbito
abaixo dos 10 anos. Contudo, não estão isentos de perigos e podem
adoecer, ter complicações e ser veículo para a transmissão da
doença, pese embora os quadros mais ligeiros apresentados. Por isto
se explica o encerramento das atividades letivas pelo papel
essencial que os jovens têm em manter a distância física,
contribuindo para a menor disseminação da doença. Faço daqui um
apelo aos jovens para que procurem resguardar os mais vulneráveis,
nomeadamente os idosos ou pessoas com doenças de base. No caso de
coabitarem com algum familiar nessas condições, devem ter cuidados
adicionais com a higiene das mãos, a etiqueta respiratória e o tal
distanciamento físico.
Quando a
tempestade passar, ou seja, o Covid-19, os conceitos que os
portugueses têm de saúde pública e de civismo sairão
reforçados?
A saúde pública tende a emergir
sempre que surgem situações desta dimensão. Tivemos, recentemente,
surtos de sarampo em Vila Franca de Xira o que fez, desde logo, que
o tema tivesse mais visibilidade na opinião pública. Da nossa
parte, médicos de saúde pública, acreditamos que este seja um
contributo importante para preservar a saúde dos portugueses. Por
isso, as intervenções que fazemos na sociedade estão baseadas nos
seguintes eixos: proteção e promoção da saúde e prevenção da
doença. E esperamos que também nasça a consciência de que o país
necessita ter uma estrutura de saúde pública robusta e que seja
capaz de reagir e responder em situações de ameaça, como a que
estamos a viver. Julgo que após debelar a doença, estou convicto
vamos fazer uma análise das fragilidades e das insuficiências do
sistema e que consigamos corrigi-las em tempo útil, tendo em vista
uma futura emergência.
Que reflexos é
que este momento vai ter nos mais novos? Estamos a educar os mais
novos à força e em contexto de forte pressão?
Eu não diria que é à força. Para
começar uma série de rotinas tiveram de ser alteradas fruto deste
acontecimento excecional. Surgiram outras: o ensino à distância, a
distância física, a ausência dos avós - que é uma medida importante
para proteger os mais velhos - que são medidas que até têm sido
encaradas com uma certa boa vontade e com a naturalidade possível.
Uma criança, com a energia inesgotável que tem, estar confinada a
uma casa, torna-se complicado. Estamos confrontados com uma ameaça
à nossa saúde e ao nosso estilo de vida, mas temos de a converter
numa oportunidade para os pais estarem mais tempo e mais próximos
dos filhos. Criar e fazer coisas diferentes, aproveitando o muito
tempo que temos disponível. Pode ser um ponto de partida para
repensar as nossas prioridades e a forma como nos posicionamos.
Estamos a aprender todos
os dias com este vírus, por isso, torna-se difícil fazer uma
projeção sobre a sua evolução. O que estamos a procurar apurar é se
há ou não a capacidade para manter a imunidade e se essa imunidade,
sendo desenvolvida agora numa proporção grande da população - não
transmitindo a doença - , poderia funcionar de forma a que
progressivamente fossemos «libertando» os de maior risco e que esta
faixa etária pudesse ficar protegida pela nossa imunidade de grupo,
quer pela maior disponibilidade dos recursos do Serviço Nacional de
Saúde num cenário de exposição mais gradual e não abrupta.
A segunda vaga do surto é
provável no próximo inverno?
Estamos a aprender todos os dias
com este vírus, por isso, torna-se difícil fazer uma projeção sobre
a sua evolução. O que estamos a procurar apurar é se há ou não a
capacidade para manter a imunidade e se essa imunidade, sendo
desenvolvida agora numa proporção grande da população - não
transmitindo a doença - , poderia funcionar de forma a que
progressivamente fossemos «libertando» os de maior risco e que esta
faixa etária pudesse ficar protegida pela nossa imunidade de grupo,
quer pela maior disponibilidade dos recursos do Serviço Nacional de
Saúde num cenário de exposição mais gradual e não abrupta.
Quanto tempo poderá levar
para ter a vacina?
O processo para a produção da
vacina é sempre moroso, para além de existir um quadro normativo
apertado. Até admito que dado o contexto de emergência que vivemos
pudesse existir alguma flexibilidade, mas seria preciso garantir
que a vacina fosse eficaz. Em resumo, são precisas todas as
cautelas para produzir a vacina. Por isso, não acredito que num
horizonte muito breve tenhamos essa arma à nossa disposição.
O coronavírus
gerou nas últimas semanas o que se pode chamar uma «epidemia de
informação», nem sempre fiável. O medo é também ele um vírus, a
informação credível pode ser a vacina?
Foi a própria OMS que lançou esse
termo, a «epidemia de informação» («infodemia»). No passado os
"media" eram o filtro que passava a informação às pessoas, agora,
as redes sociais alteraram por completo este paradigma. Hoje em dia
qualquer pessoa com um telemóvel consegue produzir informação que
em segundos chega aos quatro cantos do mundo. É nesse sentido que
nós, médicos de saúde pública, nos temos disponibilizado para
colaborar com todos os órgãos de comunicação social. É preciso
fazer chegar à população informação que seja útil, permitindo tomar
decisões mais informadas e que essas decisões possam contribuir
para proteger a sua saúde e todos os que lhes são próximos. O
acesso à informação fidedigna é fundamental, até para rebater a
proliferação de informação falsa que tem circulado -
deliberadamente ou baseada em conceitos errados. Este contexto só
contribui para que as pessoas se sintam inseguras e façam escolhas
erradas.
Que sequelas, nomeadamente
ao nível da saúde mental, é que estas semanas de isolamento dentro
de quatro paredes podem ter no imediato na população
mundial?
Julgo que o confinamento é um
desafio importante para qualquer pessoa, nomeadamente com um
histórico de problemas de saúde mental. Creio que aqui deve ser
enfatizado que se deve promover o afastamento físico, mas não o
distanciamento social. Na era digital, devemos utilizar os
telefones, o Skype, as videochamadas, para procurar compensar esse
afastamento temporário. À margem das questões mentais, temos ainda
as consequências sócio-económicas que contribuirão para uma
recessão mundial, com incontornáveis reflexos na vida e na saúde
das pessoas. Com a agravante de este cenário se ir prolongar por
mais tempo do que a própria epidemia. Temos pela frente um período
difícil e vamos precisar todos uns dos outros.
CARA DA
NOTÍCIA
Pela defesa da saúde
pública
Ricardo Mexia tornou-se
uma cara conhecida dos portugueses durante a emergência sanitária
do coronavírus, com presença regular nas televisões e nos jornais.
É presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública
(ANMSP) e epidemiologista no Instituto Nacional de Saúde Doutor
Ricardo Jorge. É licenciado em Medicina pela Universidade de
Lisboa, pós graduado em Gestão pela Universidade Católica
Portuguesa e Mestre em Saúde Pública pela Universidade Nova de
Lisboa. A vigilância epidemiológica, os eventos de massas e os
migrantes, são as suas principais áreas de investigação.
Nuno Dias da Silva
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