Entrevista

Alceu Valença, cantor brasileiro, em entrevista
Uma Ponte sobre o Atlântico

alceu5 copy.jpgO seu primeiro trabalho data de 1972 (Quadrafônico) e o último de 2009 (Ciranda Mourisca). Como carateriza a evolução da sua música nestes mais de 30 anos?

Minha música descende diretamente do agreste e do sertão do estado de Pernambuco, no Nordeste do Brasil, onde nasci, fui criado e adquiri minhas primeiras referências. Cresci escutando a música dos aboiadores que tangem seu gado pelas fazendas, dos cantadores, dos cegos de feira, dos emboladores, dos tocadores de sanfona de oito baixos. São expressões típicas da chamada "Civilização do Couro", que marcou os hábitos e a cultura da gente do sertão. Foram Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro os grandes responsáveis por formatar toda esta extensa musicalidade - diretamente influenciada pela arte mediterrânea, portuguesa e mourisca - e popularizar gêneros como o baião, o forró, o xote, o xaxado, o coco, o rojão, a embolada, entre outros. Mais tarde, quando fui morar na capital do estado, Recife, é que tive contato com as manifestações do litoral e da zona do mata de Pernambuco. Aí, o frevo, o maracatu, o caboclinho e a ciranda entraram na minha formação. Ao longo destes 40 anos de carreira, sempre me mantive fiel às minhas raízes e procurei desenvolver uma sonoridade que fosse também popular, moderna e universal. Do primeiro álbum ao mais recente, todas essas influências são bastante explícitas.

É um dos músicos e intérpretes mais respeitados no Brasil. Na sua opinião, como é que a música portuguesa é vista (ou ouvida) pelo público brasileiro?

O público brasileiro deveria conhecer mais a música portuguesa. Mas como fazê-lo se o que toca nas rádios e nos programas de TV é o pop americano e o brega? Sou um dos artistas que mais reivindica a influência portuguesa em nossa música. Temos vários exemplos de canções diretamente influenciadas pelas sonoridades lusitanas. Os frevos-de-bloco do carnaval pernambucano, que possui um andamento mais dolente, descende diretamente do fado. Mesmo clássicos do samba, como "As Rosas Não Falam", de Cartola, se você for avaliar direitinho, possui esta influência muito claramente.

Gravou um disco, quase todos os anos, desde 1972, mas, a partir de 2009 não editou mais nenhum trabalho. A que se deve essa paragem?

Ultimamente não tenho visto muito sentido em lançar um álbum repleto de canções inéditas, se elas não tocam no rádio. Tenho gravado e lançado músicas pela internet. Em 2010, lancei o "Frevo da Lua", que não tocou no rádio, mas tornou-se conhecido do público por causa da internet. No ano passado, regravei "Sala de Reboco", clássico de Luiz Gonzaga, em dueto com a jovem cantora e sanfoneira Lucy Alves, do grupo Clã Brasil, do estado da Paraíba. E este ano, lancei uma nova versão do "Homem da Meia Noite", um frevo que compus nos anos 80, ambos como uma aceitação muito boa na rede. Não paro de fazer shows, sempre lotados, no Brasil e no exterior e tenho dois DVDs ao vivo engatilhados para serem lançados em 2013. Minha carreira vai muito bem, a indústria fonográfica é que precisa se repensar.

Recentemente esteve em Portugal. Sentiu a crise?

Sou completamente apaixonado por Portugal. Realizamos três shows antológicos no Espaço Brasil, em Lisboa, em janeiro, e eu realizei uma série de vídeos onde apareço recitando poemas de mi-nha autoria nas ruas da Mouraria. Estes vídeos podem ser vistos no You Tube e na minha página do Facebook e têm tido muitos acessos. Há algum tempo, fiz uma canção chamada "Loa de Lisboa", que evoca a Rua da Mãe D´Água e a Praça da Alegria, onde viveu um grande amigo, o intelectual português Duda Gaines, e onde eu costumava me hospedar. Este ano, fui até a cidade de Valença do Minho, de onde saíram alguns dos meus antepassados, e pude contemplar ainda mais a relação profunda que possuo com este país. Sobre a crise, tenho certeza que Portugal poderá superá-la. E acredito que o Brasil pode ser um interlocutor de grande valia para ajudar o país a reverter este momento de dificuldade econômica.

Em tempo de crise os portugueses não têm muito dinheiro para comprar música. O recurso à internet acaba por ser o caminho escolhido por muita gente. O mundo virtual é um perigo ou uma oportunidade para os artistas?

Pra mim, o mundo virtual é a grande esperança, justamente porque não há imposições de cima pra baixo e a possibilidade de manipulação dos meios por parte da grande indústria fica de alguma maneira reduzida. Adoro conversar diretamente com meus fãs pela internet e faço isso com frequência pelas redes sociais. Para responder à sua pergunta, poderia parafrasear o escritor brasileiro João Guimarães Rosa, que dizia que "viver é muito perigoso", mas prefiro encarar a vida no mundo virtual como uma preciosa e democrática oportunidade de estabelecer novos parâmetros para as relações humanas, não só na arte, mas em termos gerais.

Neste momento está a decorrer o ano de Portugal no Brasil e o ano do Brasil em Portugal. De que modo estes eventos podem estreitar as relações entre os dois países, através da cultura?

A cultura é um dos principais instrumentos de que dispomos para aprofundar as relações entre diferentes povos. Sobretudo no caso de Portugal e Brasil, que possuem uma identidade tão atávica. É incrível um país com as dimensões do Brasil ter apenas um idioma preponderante, que é o português. Isso certamente colaborou na construção da identidade brasileira e nos torna inseparáveis de Portugal numa certa medida. Defendo abertamente que as relações entre os dois países se tornem cada vez mais estreitas e, à minha maneira, me sinto em condições de ser um dos porta-vozes deste diálogo nos campos artístico e cultural

 
João Vasco
 
 
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