Entrevista

Boss AC, rapper
O emprego «bom» de Boss AC

BOSS7.jpgNas músicas, que o país inteiro canta, está lá tudo. As pessoas ouvem, gostam e identificam-se. Como diz na letra é um «gajo normal», um «tuga do Mindelo», mas foi «Sexta-Feira» que o projectou como um dos maiores fenómenos de popularidade do presente ano. Quando fosse grande gostaria de ter sido inventor, mas acabou como rapper. E de sucesso. Senhoras e senhores, «Boss AC» ou simplesmente AC, para os amigos…

Em que medida é que as raízes cabo-verdianas condicionaram a sua carreira musical?

Tive uma influência indirecta dos meus pais, mas as coisas aconteceram espontaneamente. O meu pai, Toi Firmino, formou-se para ser professor, mas a vocação acabou por desviá-lo para a pintura. A minha mãe, Ana Firmino, é uma cantora e actriz de Cabo Verde. Admito que este convívio desde tenra idade com o universo musical tenha facilitado a minha incursão no meio artístico.

Apesar da sua mãe interpretar as mornas e você o rap, pensa que podem coincidir numa música?

A minha mãe já participou num dueto comigo, no primeiro álbum, mas tenho esperança que possamos repetir a experiência, desta feita num disco da autoria dela.

Sempre teve ouvido e queda para a música?

BOSS6.jpgQuando eu andava na escola gostava de ser inventor ou cientista. Nunca quis ser artista nem nada que se parecesse. De qualquer forma, enquanto rapper, indirectamente também estou a inventar, enquanto criador musical. Por isso, constato que não estou assim tão longe do meu sonho de criança.

Diz em várias entrevistas que enquanto criança fazia questão de se sentar na primeira fila. Era bom aluno? 

Eu gostava muito da escola. Na escola primária, as minhas disciplinas preferidas eram o Português, a Matemática, as Ciências e a Biologia. Já na altura, as composições e os ditados saíam em rima.

Escreveu no seu Facebook : «Já levo uns aninhos de estrada mas com este álbum tem-me acontecido uma coisa inédita: é a primeira vez que os meus amigos compram o disco». É um sinal de maturidade na sua carreira?

É um sinal de reconhecimento. Sempre tive o apoio incondicional dos amigos em todos os meus lançamentos anteriores, solicitando os discos, autógrafos com dedicatória, etc. Mas admito que este, tanto pela reacção dos meus mais íntimos, como para o público em geral, ultrapassou todas as expectativas e tem um simbolismo especial.

Como encara o fenómeno descontrolado da pirataria em paralelo com a internet, em que os discos vão parar integralmente ao público ainda antes do seu lançamento?

É preciso muita calma e evitar extremismos quando se fala deste tema. No meio está a virtude. A música não vai deixar de existir, mas o negócio tem claramente de ser repensado. Evidentemente que prejudica a indústria e quem nela trabalha. Os custos são muito elevados para as editoras e dói imenso perder dinheiro. A partir daí começa o ciclo vicioso. As editoras não investem, os artistas não gravam, etc.

Mas a internet tem o lado virtuoso de promover músicas e trabalhos que sem ela estariam condenados ao anonimato… 

Esse é o lado positivo que importa não negligenciar: sem esta globalização não seria possível chegar a determinados recantos que jamais pensariam que me ouviriam. Recebo e-mails de imensos lusófonos espalhados pelas diferentes partes do mundo, mas também de estrangeiros, por exemplo, da Polónia, Austrália, etc. No final do mês de Fevereiro, a música «Sexta-Feira, emprego bom já», contabilizava 1,5 milhões de visualizações no YouTube e continua a crescer a um ritmo galopante. Não me importava nada que me pagassem um cêntimo por cada visualização (risos)…

Na música «Sexta-feira, emprego bom já» tece uma crítica social e creio que também visa uma certa juventude que quer ter tudo sem esforço. Admite que é uma crítica de duplo sentido?

Eu procurei uma fazer uma caricatura adequada à situação actual. As pessoas vão interpretar a música como quiserem, por mais explícito que eu queira ter sido em termos de letra. Como assinala, e bem, a minha visão aponta culpas às políticas dos governos, mas esta geração não está isenta de responsabilidades por cair num certo conformismo.

Não é inocente eu dizer «alguém me arranje um emprego já». Dizer emprego ou trabalho é uma diferença subtil, mas importante, que muda tudo.

Alguma juventude peca por excesso de preguiça?

No trabalho há os que não conseguem e há os que não querem. Mas às vezes temos de nos sujeitar, mesmo que não gostemos.

Considera-se um músico de intervenção?

Fujo sempre do rótulo de música de intervenção. Antes de ser músico, sou um cidadão. Sou um cidadão activo e quero ter voz activa. Contesto os que protestam por tudo e por nada e depois no dia das eleições, vão para a praia. Quando o barco bate na rocha já sabemos todos o que aconteceu. Todos temos convicções, mas abdicamos de expressá-las. Muitos esquecem que o voto em branco é válido.

Fale-nos um pouco do que esteve na base da concepção do vídeo «Sexta-feira». Muitos dizem que é inspirado nos bonecos da Playmobil, outros dizem que são Legos. Afinal do que se trata?

Garanto que a Lego não pagou nada (risos). São bonecos articulados concebidos por uma animação a cargo de um produtor e um designer em 3D. Apresentaram-me a maquete e eu disse «é isto mesmo». Quisemos transportar o espírito bem-disposto de toda a banda, através de um vídeo fresco, inovador e diferente de tudo.

A crise também já se faz sentir na frequência do ensino superior. Segundo dados recentes, 3300 estudantes cancelaram a inscrição na faculdade desde o início do ano lectivo, por incapacidade financeira. Não considera frustrante?

Faltam condições económicas, há muito desmotivação e poucos incentivos. Perante este contexto, o caminho rumo à desilusão é curto. Muitos estudantes formam-se em pura teoria para ter um emprego melhor e acabam na caixa de um supermercado. Isto é o exemplo acabado de que possuir formação superior não é garantia de nada.

Diz na sua música «Sexta-feira» que «não tirou o curso superior de otário». É uma mensagem para muitos jovens que formam-se direitinhos para os centros de emprego?

Estou consciente que não vou mudar o mundo com uma música, mas com tantas discussões que se continuam a gerar, tenho a sensação que já fiz a minha parte.

A exposição da sua música pode convertê-la num hino de uma geração?

Não sei. Gosto da identificação e do retrato, encaixam bem no momento delicado, mas só o tempo dirá se será hino. Uma vitória, por mais pequena que seja, já foi conseguida, estou satisfeito. Mas como tudo indica que a situação vai piorar, provavelmente em 2013 ou 2014 vão surgir outras músicas, na senda desta.

Como comenta o convite à emigração feito por dois governantes deste executivo?

Considero ridículo e inédito. Em vez de incentivar a nova geração e os novos quadros, de promover a investigação e o desenvolvimento, dizem «tás mal, muda-te». Trata-se de mais um sintoma do claro divórcio entre o povo e os políticos.

O que mais o preocupa no desemprego jovem: a emigração de portugueses qualificados ou a clara sensação de que o país não tem um projecto para os jovens?

Os organismos oficiais são os últimos que podem fomentar este tipo de discurso. Têm é de tudo fazer para arranjar soluções. Esta debandada dos jovens licenciados vai deixar marcas. Faz o lembrar o sentimento com que se fica quando um pai deixa o próprio filho na rua.

Para já ainda temos profissionais suficientes e capazes, mas se os realmente bons emigrarem em massa significa que ficaremos entregue aos medíocres?

O pior é que o sentimento de desilusão generalizada não se aplica apenas aos jovens. As perspectivas futuras são cada vez mais sombrias. Estamos todos na corda bamba sem saber o que vai acontecer amanhã. Até os empregados com contratos efectivos não sabem os que lhes espera. As leis laborais foram suavizadas para facilitar os despedimentos. Nada é seguro. Tenho casos de familiares e amigos próximos que estavam em empresas que aparentemente vendiam saúde e que, subitamente, foram despedidos. Vivemos num grande ponto de interrogação.

O futuro do país é uma incógnita e a juventude está no meio do turbilhão. Que papel têm desempenhado os movimentos dos indignados e outros congéneres para mudar o actual estado de coisas?

Eu creio que a mobilização é sempre positiva. Com uma cidadania activa, juntos podemos mudar as coisas. Mas não chega. Creio que há muita inconsequência no passar das ideias à prática. Não se sabe muito bem contra quê está o movimento dos indignados, por exemplo. Do mesmo modo que continuar a apelidar de «geração à rasca» uma determinada geração é um mero truque de linguística, sem consequências práticas.

O almirante Pinheiro de Azevedo dizia que o «povo é sereno». Os brandos costumes vão fazer com que os confrontos não passem das palavras?

Os confrontos não resolvem nada. Veja que na Grécia e em Espanha só agravaram a situação. Mas o aperto económico e financeiro vai em crescendo. Não estou a dizer que devemos pegar em «cocktails molotov» e em paus e pedras e começar uma guerra, mas como eu digo na minha música, qualquer dia «a bolha rebenta» 

Dentro ou fora da Europa, com ou sem euro, este país tem futuro?

Quero acreditar que sim. O governo e a oposição têm que acabar com as guerrinhas de comadres. Trabalhar em prol do bem comum e fazer prevalecer o bom senso.

Sente-se um privilegiado no actual contexto? 

Quem assim pensa esquece-se que eu próprio tenho uma profissão bastante volátil. Cíclica, tem momentos bons e outros menos bons. Já me perguntaram; «que autoridade tens para falar em emprego bom se tens um super emprego?». Esta análise é fruto do mediatismo que me rodeia, só que ser figura pública ainda não paga contas. Tenho de pagar a renda como todos, abastecer o carro como todos, ir ao supermercado como todos. Com a agravante de não haver «fim do mês». Isto aplica-se a qualquer profissão liberal na área do entretenimento. Está longe de ser um mar de rosas.

Nuno Dias da Silva
Universal Music
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
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