Joana Carneiro, maestrina
«A música é beleza, felicidade e inspiração»
Ainda
não tem 40 anos, mas já tocou com algumas das mais célebres
orquestras em míticos palcos por esse mundo fora. Joana Carneiro é
uma portuguesa de sucesso, que coleciona elogios no seu país e no
estrangeiro e que deseja que todos o seus compatriotas tenham
acesso a educação musical. Maestrina convidada da Orquestra
Gulbenkian e diretora artística do Estágio Gulbenkian para
Orquestra, assumiu em 2009, as funções de diretora musical da
Sinfónica de Berkeley, sucedendo a Kent Nagano, tornando-se
no terceiro maestro a ocupar o lugar nos 40 anos de atividade da
orquestra. Em janeiro de 2014 foi nomeada maestrina principal da
Orquestra Sinfónica Portuguesa. Em 2004 foi agraciada pelo então
Presidente da República, Jorge Sampaio, com a Comenda da Ordem do
Infante Dom Henrique. Em 2010 recebeu o Prémio Helen M. Thompson,
atribuído pela Liga das Orquestra Americanas. Nesta entrevista fala
da sua experiência e da importância da música.
Recebe-nos
na sua casa de Lisboa, onde não se encontra muito tempo devido às
temporadas que realiza na Europa e nos Estados Unidos. Em média
quanto tempo passa em Portugal?
Depende das temporadas. A temporada
14/15 foi muito internacional, o que me obrigou a estar ausente do
meu país. Estive dois meses em Londres e dois meses em Gotemburgo,
em produções operáticas. Isto para além de outros concertos que me
levaram a outros pontos do globo. Esta temporada estou um bocadinho
mais em Portugal. Procuro não fazer mais de 16 projetos fora do
país por temporada, entre setembro e junho. No verão estou sempre
em Portugal.
Sente-se
uma portuguesa de sucesso?
Confesso que não sinto ainda isso.
Esta carreira de maestro é normalmente muito longa. Tenho tido um
percurso interessante, com muitas oportunidades, mas penso que
ainda me encontro muito no princípio. Os meus mentores, com
60/70/80 anos, ainda continuam a trabalhar. Por isso, entendo que o
sucesso do maestro só se mede nessa altura. Ou seja, no meu caso,
daqui a 30 anos.
Como é que
Portugal é visto no exterior?
No mundo em que eu me movimento as
pessoas encaram o nosso país como sendo de pessoas muito
trabalhadoras. Ao nível da música, Portugal tem um ensino
reconhecidamente de qualidade. Os nossos músicos vão lá para fora e
entram nas melhores escolas e nas melhores orquestras. Isso
significa que a nossa formação está a dar frutos. Infelizmente, o
acesso à formação musical está longe de ser universal, pelo menos
na forma como gostaríamos que fosse.
Em suma,
temos uma imagem de competência?
Eu tenho oportunidade de falar com
muitas pessoas das comunidades das orquestras em que trabalho e a
visão que existe de Portugal é positiva. Está associada à
segurança, ao trabalho, à simpatia e, como não podia deixar de ser,
a uma gastronomia ótima. A reação que os estrangeiros têm ao
visitar Portugal é disso prova. Por outro lado, as pessoas também
não escondem a sua preocupação e solidariedade com as
dificuldades que o país atravessa, nomeadamente
nos três anos da permanência da troika.
Como
observa o fenómeno da emigração dos mais jovens, sejam eles
enfermeiros, arquitetos, engenheiros, ou meros desempregados? Vê
como um drama ou, por outra perspetiva, como uma oportunidade para
adquirir novos horizontes e novas competências?
Sou uma pessoa positiva e otimista
por natureza, mas este fenómeno da emigração preocupa-me bastante.
No meu caso concreto, de artista, eu era muito jovem, só existia
uma licenciatura em Portugal e não existia direção de orquestra cá,
por isso tive de ir para fora, até porque a natureza do meu
trabalho é internacional. Por isso, a minha emigração
não foi forçada. Continuei sempre a trabalhar com as
orquestras portuguesas e senti que não era uma impossibilidade
cumprir os meus sonhos no meu país.
Costuma
cruzar-se com compatriotas nossos por essa Europa fora?
Acontece. Há umas semanas, estava a
jantar num restaurante em Estocolmo, e travei conhecimento
com um jovem português que me confidenciou que tinha deixado a
família para trás porque, sem emprego, não lhe restou alternativa
que não fosse ir para a Suécia, o que lhe permitia enviar algum
dinheiro para casa. Isto parece-me um tipo de emigração dramática e
forçada. Infelizmente, existem alguns casos desta natureza. Já a
emigração que é por iniciativa própria e para procurar novas
experiências parece-me francamente positiva e Portugal só tem a
lucrar, porque muitos desses ativos acabam por regressar para
devolver aquilo que o país investiu neles.
Aos
nove anos disse que queria dirigir uma orquestra. Soa a
predestinação. Há algo inato ou o ambiente familiar condicionou a
sua escolha?
Creio que o talento, no sentido de
ter uma apetência natural para algo, existe. Acredito que o nosso
talento pode ser variado e posto ao serviço de muitas áreas. Um bom
ouvido pode ser posto ao serviço das artes musicais, por exemplo.
Uma capacidade natural de liderança pode ser colocada ao serviço de
muitas vocações. Dito isto, acho que o talento é um ponto de
partida, uma tendência para uma orientação, seja para comunicar,
para expressar alegria ou uma extroversão natural para exercer
determinada atividade. No caso da música o ideal é tentar encontrar
o meio através do qual possa tornar essa habilidade natural ainda
melhor e apurar outras qualificações, não tão desenvolvidas. E isto
contribuiu para um todo. Por isso, entendo que o talento natural é
algo mais vago do que se possa pensar.
Quer
concretizar?
Para ser bom músico, não basta ter
bom ouvido. Pode ser um ponto de partida, mas não é suficiente. Um
bom ouvido com falta de comunicação natural, serve de pouco. Da
mesma forma que ter facilidade em comunicar e não ter um ouvido tão
apurado, não faz dessa pessoa um bom artista.
Pensa então
que o trabalho e a repetição acabam por gerar os grandes talentos
nas várias profissões?
O meio que nos circunda e,
sobretudo, o trabalho representam cerca de 90 por cento do sucesso
de uma pessoa.
O exemplo
de Cristiano Ronaldo é paradigmático. Tem um talento inato, mas
treina como poucos…
Ele há de ter características
naturais para o seu desporto, mas sem o trabalho não teria chegado
onde chegou. Mas isso acontece em qualquer área. Não tenho dúvidas
que o trabalho representa a melhor parte e explica o nosso
sucesso.
Sei que foi
uma excelente aluna, mas o calcanhar de Aquiles era a educação
física…
Era muito fraquinha, mas confesso
que não me esforçava. Fazia tudo para não participar nas atividades
desportivas escolares, e até me esquecia do equipamento. Podia até
ter melhores resultados, mas a aptidão física nunca ajudou. Sempre
tive uma relação muito difícil com qualquer tipo de desporto.
Felizmente tenho uma profissão que me mantém em forma e com uma
saúde cardiovascular muito boa.
Teve uma
educação muito privilegiada e os seus oito irmãos partilham o bom
desempenho académico. Quantos doutores tem a família Carneiro?
Atualmente, temos quatro doutorados
e dois em vias de terminarem o doutoramento.
Os seus
pais são figuras sobejamente conhecidas dos portugueses. Roberto
Carneiro foi ministro da educação e Maria do Rosário Carneiro foi,
entre outros cargos, deputada. Pensa que nós somos aquilo que é a
nossa educação?
Aquilo que se passa na nossa
juventude e na infância tem, com certeza, um impacto enorme. O meio
e os estímulos que uma criança recebe têm muita influência naquilo
que ela se torna, no futuro. Não chega, é certo. É preciso saber
crescer com responsabilidade e aproveitar os dons e a generosidade
que recebemos da família.
Mas acredito que crescer numa família bem estruturada e com muito
amor, em que a liberdade de expressão era pilar fundamental, foi
muito importante para o meu desenvolvimento pessoal e o dos meus
irmãos. Os meus pais sempre privilegiaram que os filhos tivessem
uma educação muito completa, para além de sucesso escolar nas
atividades académicas, queriam que participássemos em atividades
extracurriculares. Tínhamos música, fazíamos desporto (natação,
ginástica), estivemos nos escuteiros, etc. Creio que esta educação
despertou a nossa curiosidade e melhorou a forma como estudamos.
Perante isto, não tenho dúvidas em afirmar que o meio em que cresci
foi decisivo para ser a pessoa que sou hoje.
Apesar da
queda para a música desde muito cedo, começou por entrar na
faculdade em Medicina…
É verdade, mas estive muito pouco
tempo. Eu só experimentei dirigir uma orquestra quando comecei a
estudar Medicina, aos 18 anos, após concluir o curso do
Conservatório. Fiquei só até ao segundo ano de Medicina, porque ia
deixando muitas cadeiras para trás, privilegiando o lado da música.
Tornou-se evidente que a minha escolha seria a música, abandonando
a Medicina. Mas casei-me com um médico cirurgião, por isso, o
destino acabou por fazer-me regressar, de algum modo, à
Medicina…
Divide a
sua atividade nos Estados Unidos, em Berkeley, na Orquestra
Sinfónica Portuguesa, em Lisboa, e mais recentemente tem atuado na
Escandinávia. Já se diz que só lhe falta tocar em África…
É o único continente em que ainda
não trabalhei. Talvez haja a possibilidade de um dia atuar na
África do Sul. Vamos ver.
Em que
difere o comportamento dos diferentes públicos para os quais atua
na liderança das orquestra?
Os públicos têm em comum o facto de
se interessarem por música e acreditarem que esta lhes traz mais
felicidade à sua vida quotidiana. Não creio que exista um público
mais ou menos participativo. Agora a diferença reside na interação
entre a comunidade e as orquestras e nos Estados Unidos essa
diferença é vincada, porque lá as orquestras são administradas por
membros da comunidade. As orquestras têm um conselho de
administração, do qual fazem parte membros eleitos da comunidade,
que atribuem, anualmente, um donativo mínimo, estipulado pelos
órgãos dirigentes. Há toda uma estrutura que se divide na parte
financeira, artística e musical, que não tem paralelo na
Europa.
Portugal
vive numa realidade muito longínqua…
Ao nível da intervenção da
comunidade é um facto, mas já existem grupos de amigos das
orquestras e o grupo de amigos do Teatro São Carlos está a ser
recuperado.
A
oferta cultural e musical em Portugal aumentou exponencialmente nos
últimos anos e não estarei a exagerar se disser que a maioria dos
espectáculos tem casa cheia. Este tipo de música, o produzido pelas
orquestras, ainda está apenas ao alcance de uma elite?
Em certa medida, sim. Tem que se
ter algum poder financeiro para assistir a um espectáculo de ópera,
por exemplo. Mas a raiz desta situação reside no facto de apenas
uma pequena parte da população ter acesso ao ensino musical. Mais
do que escassez de poder económico, falta o poder que seria dado
pela própria educação e formação musical. Infelizmente, em
Portugal, não existe o acesso universal à cultura. Mas estou
otimista quanto ao futuro. O público está a ser renovado. Temos
muitos jovens e famílias inteiras que assistem aos nossos
espectáculos. E é justo destacar o papel de instituições como o
Teatro Nacional São Carlos ou a Fundação Gulbenkian através dos
seus programas pedagógicos.
Como
caracterizaria os projetos educativos e pedagógicos do Teatro São
Carlos e da Fundação Gulbenkian?
São variados. No São Carlos existem
concertos pedagógicos em alguns sábados do ano que são dedicados a
crianças que vêm acompanhadas dos seus pais. Pode ser as «4
estações de Vivaldi», pode ser «O livro da selva», etc. Também
fazemos concertos para escolas, nomeadamente alunos do 1.º e 2º
ciclos, e temos muitas crianças que assistem aos nossos ensaios e
aos nossos concertos sinfónicos. Fazemos também workshops de ópera
para crianças e adolescentes. Temos ainda a nossa temporada de
concertos nas férias de Natal e da Páscoa, tanto no São Carlos como
no Teatro Camões. Na Gulbenkian também existem concertos para
escolas e eu tenho feito vários. Temos igualmente os concertos
participativos em que as pessoas da comunidade podem entrar nos
coros, por exemplo. São exemplos que as nossas instituições estão a
investir bastante neste setor.
Mas as
carências ainda são muitas ao nível do ensino escolar público. O
que devia ser feito?
Não tenho dúvidas que a música
devia ser ensinada como o Português e a Matemática, ao longo de
toda a escolaridade. Gostava, sinceramente, que todos os
portugueses tivessem acesso à educação musical.
Quer
explicar por que é que diz que um maestro é um líder que tem a
obrigação de contribuir para a construção da identidade do seu
país?
Um maestro que tenha um cargo de
titularidade numa orquestra pode incentivar a produção nacional,
trabalhando com os artistas do seu pais, quer ao nível da
composição, quer ao nível da dramaturgia, quer ao nível da
encenação, quer em termos do design, da luz, figurinos, etc. Esta
pessoa deve ter como responsabilidade primeira o incentivar e
investir nos talentos que tem no seu país e na sua comunidade para,
deste modo, se formar a identidade nacional e perpetuar nas obras
de arte a história de uma nação.
Quais são
as suas referências em termos de maestros?
O maestro Esa-Pekka Salonen, de
quem fui assistente na Orquestra Filarmónica de Los Angeles,
continua a ser para mim uma grande referência e um mentor, com quem
converso várias vezes, sobre a minha vida e a minha carreira. Ele
personifica o que é um diretor musical no século XXI. Mas há mais.
Zubin Mehta é, sem dúvida, uma referência muito importante, que se
relaciona com a orquestra com uma naturalidade inusual. Não posso
esquecer também Marius Jensen, um maestro que em determinado tipo
de repertório é uma referência.
Em 2010, em
cerimónia que decorreu no CCB, aquando da visita de Bento XVI a
Portugal, o Papa disse que «os artistas têm a obrigação de tornar
todos os dias um lugar de beleza». São palavras inspiradoras, ainda
para mais vindas do Santo Padre?
Sem dúvida. Foi uma cerimónia que
me tocou muito e jamais esquecerei. Tive um pequeno momento com o
Santo Padre, e com o cineasta Manoel de Oliveira, oferecemos-lhe
uma escultura. O Papa Bento XVI transmitiu uma mensagem
espiritual para os artistas e o seu poder de trazer beleza ao
mundo. Noutras intervenções, o Santo Padre realçou o papel muito
importante que os artistas têm na sociedade, em retirar as pessoas
do seu quotidiano, nem sempre fácil. Ou seja, elevar as pessoas
para um plano imediatamente superior, espiritual, bem entendido,
independentemente das suas convicções religiosas. Os artistas têm a
função de trazer beleza ao mundo. É essa responsabilidade que nos
anima, ainda mais.
A música é
beleza, felicidade e inspiração…
É tudo isso, mas também é
abstração. Mas, acima de tudo, a arte musical é uma forma de
expressarmos quem nós somos, enquanto seres humanos, recriando
momentos da história passada, à luz dos nossos olhos
contemporâneos.
A música
tem um alcance global e é justo dizer, já salvou muitas vidas.
Lembro-me dos projetos «Live Aid» e «USA for África», nos anos 80.
A música pode salvar o mundo tão convulso e violento em que
habitamos?
Se o mundo dispensasse mais
recursos e energia para a cultura e para a expressão e criação de
beleza, e tivesse mais momentos de parar para refletir através da
arte, acredito que haveria mais paz entre todos nós. A música
produzida pelos artistas é construir beleza em comunidade e eu
acredito que o ensino e a experiência musical podem ser muito
importantes na formação da paz, da pessoa e da relação com o outro,
independentemente do que são as nossas convicções. A música é um
veículo fundamental de promoção dos valores humanos e também ao
nível da reflexão. Se contemplássemos a beleza que o mundo tem
através da arte, seria possível ultrapassar muitos problemas.
Nuno Dias da Silva
Dave Weiland; Franco Tutino; Rodrigo Souza