Entrevista

Mário Cordeiro, Pediatra
«Nunca houve tantos meios de comunicação, mas nunca houve tanta solidão»

É uma entrevista em que não se fala apenas dos comportamentos dos mais pequenos. O médico pediatra, Mário Cordeiro, aborda a influência da tecnologia nas relações humanas, os horários escolares, as praxes e defende que se deve «repensar o sistema educativo de alto a baixo».

Tem um novo livro chamado «Nasceu uma estrela». Trata-se de um álbum para registar os primeiros anos de vida do bebé, em que partilha com os pais dicas para lidarem com diversas situações que fazem parte desta fase inicial. É um contributo seu para memória futura - numa altura em que se vive alucinantemente do presente - dos que serão os adultos do amanhã?

É uma forma de tentar que fiquem memórias palpáveis e duradouras, acessíveis e que, quer aos pais e familiares, agora, quer aos bebés retratados, no futuro (designadamente quando forem pais), permitam um olhar sobre o nascimento e os primeiros meses de vida que seja calmo, tranquilizador, com tempo e fruição, à medida do ser humano. Haverá muita coisa guardada em computadores, pens, clouds, mas de tanto haver pouco se usa, e perde-se na voragem dos bytes e na sequência acelerada das entradas de blogues, Facebook ou outras redes sociais. Ou ficam esquecidas em ficheiros perdidos num qualquer servidor. O ser humano tem cinco (ou mais) sentidos - não pode reduzir-se ao audiovisual. Este livro é como um bebé: deve ter tato e cheiro…

«Não há educação sem amor, nem amor sem educação» , escreveu num livro anterior. Qual é, para si, o valor supremo e indispensável na difícil arte de educar, seja na relação pai-filho ou professor-aluno?

Amor. Empatia. Compreensão. Firmeza. Assertividade. Termos a certeza do que queremos e não queremos para o percurso de vida dos nossos filhos, respeitando-os, quer na sua personalidade, quer em algumas das suas opções, mas entendendo que somos pais (ou professores) e temos o direito e o dever de os educar, numa perspetiva de ensino/aprendizagem que deve detetar talentos, desenvolvê-los, dar informação, mas sobretudo gerar conhecimento e sabedoria, e olhar para todas as capacidades do ser humano, designadamente as estéticas, éticas, afetivas e lúdicas.

Defende que os pais devem ensinar e educar os filhos para a frustração, sob pena de criarem pequenos e terríveis ditadores. Os pais dizem menos vezes «não» do que deviam?

Não gosto de generalizar; assim, diria que muitos pais têm algum receio de dizer "não" porque acham que a criança ficará frustrada e sentem um misto de medo que ela, criança, deixe de gostar dos pais e que eles, pais, estejam a não dar amor. Pelo contrário. A frustração, ou seja, entender que as expectativas não podem ser demasiadamente distantes da realidade, embora permitindo sonhos e fantasia, mas exigindo rigor e trabalho, é necessária, mesmo que "amaciada" com alguns "airbags". Uma criança, a partir do ano e meio, tem de ser ensinada no sentido de perceber que não é um Deus e que é um ser humano, o que comporta erros, lacunas, hiatos, perdas, tristezas, mas também vitórias, sucessos e êxitos. O "não", quando justo, proporcionado, adequado e atempado, é fundamental.

Consegue enunciar-me três ingredientes que podem fazer a felicidade de uma criança?

Limites, sentido de humor, desenvolvimento de talentos.

P1170605.jpgNo ensaio que fez para a Fundação Francisco Manuel dos Santos "Crianças e Famílias Num Portugal em Mudança" retratou a saúde e o bem estar dos mais novos.  Chamou-me a atenção a abordagem que faz aos casos de regulação parental que demoram, em média, 30 meses a resolver-se. Esta exasperante lentidão do Estado é passível de criar pessoas irremediavelmente traumatizadas?

É um dos aspectos mais tenebrosos da Justiça. Não é admissível e, todavia, é um assunto muito pouco falado nos meios de comunicação, por exemplo. O tempo das crianças não é o tempo da Justiça nem o dos adultos. É fundamental que os Tribunais de Menores e de Família sejam muitíssimo mais expeditos, evitando manobras dilatórias por vezes patéticas e moralmente indecentes.

Ainda está para tomar posse o governo com um naipe coerente e estruturado de políticas globais para a infância e para a família?

Sim. Espero que o próximo governo consiga ter a noção dessa questão fundamental, a bem da resolução dos problemas demográficos e da qualidade de vida das crianças e famílias. Basta começar a pensar o que se fez no primeiro governo de António Guterres e que, depois, não teve qualquer continuidade.

Diz o físico Carlos Fiolhais o seguinte: «A Escola inquieta-nos a todos. Temos de encarar as escolas como fábricas do futuro». Partilha desta visão?

Há que repensar totalmente o sistema de ensino, no sentido de pensar o que se pretende, atualmente, quando tudo mudou a nível da informação, tecnologia, psicologia, educação… e refletir sobre o que é a aprendizagem e o que pretendemos do enorme espaço de tempo que as crianças estão na escola e do que se pretende, não apenas no hoje mas também face ao amanhã, mesmo que esse amanhã tenha ainda enormes pontos de interrogação. Mas até para esses pontos de interrogação há que desenvolver fatores protetores e habituar as crianças a que a mudança será um ponto essencial da sua vida presente e futura - até familiar! - sem que isso seja um drama, pelo contrário, uma oportunidade.

Confessou em artigo recente as suas «ansiedades» na compra dos manuais escolares para os seus filhos do 3.º ciclo, revelando que despendeu cerca de 1200 euros. Na sua opinião é o lóbi das editoras que impede a reutilização dos manuais? O que devia fazer o Ministério da Educação?

Não sei se é propriamente um lóbi, mas que o Ministério da Educação tem de pensar o assunto e tomar decisões, é um facto. Não vou repetir aqui o escândalo de que este assunto por vezes se reveste, porque as famílias sabem bem do que falo, mas havendo, em cada disciplina, um grupo de professores credenciados, pelo próprio ministério e pelos outros professores, que por exemplo elaboram testes e exames, daí poderia sair um grupo que elaborasse os manuais, em que os seus membros fossem bem pagos porque é um trabalho muito difícil, e que a Imprensa Nacional se encarregasse de produzir os manuais, até inclusivamente em fascículos para evitar o peso excessivo nas mochilas, e em que os apontamentos e escritos não fossem no próprio manual - e que esse manual pudesse ser utilizado durante muitos anos, com eventuais erratas e aditamentos. As especificidades locais seriam geridas na sala de aula e não no manual: dou um exemplo: deve falar-se do terramoto de 1755. Mas em Lisboa, o assunto será naturalmente abordado de forma diferente, porventura mais exaustiva, do que em Viana do Castelo.

Pais, professores e médicos defendem que os horários escolares devem começar mais tarde, adaptando-se ao relógio biológico dos alunos. Concorda?

Concordo, embora creia ser difícil esse objetivo, dado que pertencemos a um tecido social que forma um puzzle com escassos graus de liberdade. Todavia, acho que, do ponto de vista das crianças, as atuais horas escolares são muito desadequadas. Em cada bairro, vila e aldeia pode repensar-se o horário escolar (as realidades são tão diferentes!) e não é preciso que na Lourinhã ou no Porto as coisas sejam iguais. Para isso, todavia, é fundamental que os responsáveis ouçam os técnicos e quem sabe de psicologia infantil, pediatria, desenvolvimento, urbanismo, etc.

Afirma que na vida são precisos quatro T's: talento, técnica, trabalho e tempo. Na escola, o doseamento equilibrado desses T's gera, necessariamente, um bom estudante?

Obrigatoriamente não se pode dizer, mas que pode ser uma grelha para conduzir o barco a bom porto, creio que sim. E se os alunos interiorizarem estes aspetos, podem, eles próprios, estruturarem-se melhor.

P1170607.jpgUm dos grandes debates da atualidade é a forma como a tecnologia condiciona o nosso modo de estar em sociedade. Caminhamos para uma sociedade desmaterializada, onde o toque pessoal está em vias de extinção, onde já não se telefona, manda-se um SMS ou um Whatsapp. Em que medida este contexto afeta a reação e o comportamento dos mais jovens?

Afeta em muito. O ser humano tem cinco ou mais sentidos,  e o tato e o olfato são dos mais apurados. O toque é essencial. Na adolescência, então, à semelhança dos primeiros anos de vida, ainda é mais premente esse contacto sensorial. Aliás, é ver adolescentes em conjunto: dão-se as mãos, empurram-se, tocam-se. Cheiram-se. Por outro lado, a comunicação deve ser olhos nos olhos, para lá da que é estritamente operacional e técnica. Quando se está com outro à frente aprende-se a medir as palavras, a ler as reações e a comunicação não são só frases mas expressões faciais e gestos, caretas, sorrisos, etc. Ler o outro é essencial. Mas ler sem ser pelas palavras. Até a entoação diz muito. Há pessoas, aliás, que a ler o conteúdo de um mail dão a expressão que acham que o outro emprestou à frase, e que pode estar completamente errada. Por outro lado, na presença do outro não podemos fugir, temos de o ouvir, de o escutar, de argumentar e não há nenhum botão de "erase" ou "delete" que o apague ou que ponha cobro à conversa. Nunca houve tantos meios de comunicação, mas nunca houve tanta solidão. Os amigos do Facebook não são amigos, são contactos, e o que lá se partilha é, de forma geral, circunstancial, epifenómenos e, até, coisas muito desinteressantes e montras de narcisismos vários. Depois, soltam-se os fantasmas, e entre os "liindos" e os "és uma besta!", aparecem os extremos da adulação ou do insulto… o que é muito mau, convenhamos!

É um crítico das praxes, por envolverem o que diz ser um «cocktail demasiado perigoso». Qual deve ser o papel das instituições de ensino superior no disciplinar desta espécie de ritual de passagem universitário?

Acho as praxes um ritual de passagem que não se coaduna com o tempo em que vivemos. Concordo com a "enturmação", se o verbo existe, dos novos alunos numa instituição, mas para os esclarecer, arranjar amigos e conhecidos, aprender o que são colegas, mas tudo o que seja imposição, humilhação, demonstrações de poder e afirmação de "machismos-alfa" causam-me "urticária" e não acredito que contribuam para a boa formação das pessoas enquanto cidadãos. As universidades deveriam ser bastante mais firmes e, nos casos em que se ultrapassam limites, designadamente se pressionam alunos, os infratores deveriam ser banidos porque nunca terão arcaboiço civilizacional para virem a ser profissionais.

A escola vive um momento particularmente conturbado, nomeadamente a classe docente, que é das mais expostas e pressionadas, com exemplos recorrentes de crises de autoridade na relação com os alunos. Foi a escola, como instituição que perdeu força, ou os professores que perderam autoridade?

O sistema educativo deve ser repensado de alto a baixo. Temos de pensar no que são crianças nas diversas idades, em termos de desenvolvimento, capacidades de atenção e cognitivas, necessidades lúdicas e de movimento, também como são capazes de manipular e de provocar, mas também no que se pretende em termos de ensino-aprendizagem, no que são os talentos e competências e na contribuição que a escola pode e deve dar para o futuro profissional e o futuro cidadão. Os professores têm sido muito maltratados; todavia, na sala de aula devem ser quem decide e não devem prescindir desses graus de liberdade, pese as políticas educativas sem nexo, a "examinite aguda" e as metas estapafúrdias que cada ministro impõe.

Elvira Fortunato, um dos rostos mais importantes da ciência nacional, declarava há dias que «não temos ouro, petróleo, nem diamantes, mas temos pessoas». É este o nosso maior recurso/ativo enquanto país?

É, juntamente com a Natureza e a capacidade humana e técnica dos portugueses. Não é por acaso que, no estrangeiro, somos quem somos. Faltam-nos líderes políticos, empresariais, em praticamente todos os níveis. A cultura da mediocridade vem de cima, e o desinteresse pela parte humana, estética e ética da civilização e da sociedade é uma demonstração clara desta cupidez, desta ganância que está a asfixiar uma sociedade. Esperemos que algo mude…

Vivemos numa sociedade crispada, tanto política, como socialmente. De que forma é que este contexto pode contaminar/condicionar a forma de estar das gerações mais jovens?

Claro que contamina. Não podemos dizer que somos modelos a copiar se os exemplos que damos são, muitas vezes, maus e defeituosos. Uma coisa é entender que a condição humana comporta defeitos e virtudes, uma parte má e uma parte boa. Outra é a demonstração diária da injustiça, a falta de rigor, a laxidão, o ignorar áreas primordiais do ser humano. Temos de cultivar a frugalidade, a empatia, a solidariedade e ignorar a arrogância, o narcisismo e a ganância. Há uma sociedade que tem mudado e é globalmente muito melhor do que era. Há uma sociedade a mudar, mas só mudará se houver "motores e ventos para a mudança" - não percamos, contudo, a esperança.

Nuno Dias da Silva
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